RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 19. 2

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Artigo Original

Análise da frequência de trauma ocular em pacientes de 0-10 anos no setor de plástica ocular do Hospital São Geraldo

Frequency analysis of ocular trauma among 0 to 10-year-old patients at the ocular plastic surgery section of the Sao Geraldo Hospital

Juliana Senna Figueiredo Barbi1; Ana Rosa Pimentel de Figueiredo2; Clarissa Leite Turrer3; Enéias Ricardo Bevilaqua4

1. Aluna do Curso de Especialização em Oftalmologia do Centro Oftalmológico de Minas Gerais. Ex-bolsista pela FAPEMIG da Professora Doutora Ana Rosa Pimentel de Figueiredo
2. Professora Adjunta do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Chefe do Setor de Plástica Ocular do Hospital São Geraldo (Hospital das Clínicas/UFMG)
3. Especialista em Cirurgia Crânio-Facial. Aluna de pósgraduação (Doutorado) - Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Universidade Federal de Minas Gerais
4. Especialista em Oftalmologia pela Universidade Federal de Minas Gerais e pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia

Endereço para correspondência

Juliana Senna Figueiredo Barbi
Av. Bandeirantes, 637/701 - Bairro Sion
CEP: 30315-000
E-mail: jubarbi@terra.com.br

Recebido em: 15/01/2008
Aprovado em: 18/02/2009

Este artigo foi publicado no v.19, n.1, p.13-18, jan./mar.2009, com incorreções, ora sendo republicado na íntegra

Instituição: Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)/Hospital São Geraldo (Hospital das Clínicas/UFMG)

Resumo

INTRODUÇÃO: As lesões do globo ocular na infância correspondem a considerável parcela dos casos de cegueira infantil no Brasil e refletem a grande exposição da criança ao trauma. O presente estudo tem como objetivo analisar a frequência dos tipos de trauma que levam à perda do globo ocular na faixa etária de 0-10 anos.
MÉTODOS: Realizou-se levantamento no arquivo do Setor de Plástica Ocular do Hospital São Geraldo, correspondente a 4.940 prontuários. Foram identificados 643 pacientes na faixa etária de 0-10 anos, portadores de cavidades anoftálmicas, admitidos entre dezembro de 1970 e junho de 2005, dos quais 143 (22,24%) devido à perda do globo ocular.
RESULTADOS: As causas mais frequentes de perda do globo ocular na faixa etária de 0-10 anos foram: trauma (58,04%, n=83), infecções (11,89%,n=17) e retinoblastoma (30,07%, n=43). Em relação à distribuição de causas por tipo de trauma foi encontrada a seguinte proporção: domésticos (53,01%, n=44), por arma de fogo (6,02%, n=5), automobilísticos (1,21%, n=1), recreativos extradomiciliares (6,02%, n=5), trauma cirúrgico (2,41%, n=2) e por violência interpessoal (2,41%, n=2). O mecanismo causador do trauma não foi descrito em 28,92% (n=24) dos prontuários. Este grupo foi excluído da análise de resultados.
CONCLUSÃO: o trauma ocular doméstico prevaleceu como principal causa de cavidade anoftálmica em pacientes com menos de 10 anos, reforçando o dado de que os acidentes são importante causa de morbidade na infância brasileira.

Palavras-chave: Traumatismos Oculares/epidemiologia; Infância; Cegueira/prevenção & controle; Saúde Ocular.

 

INTRODUÇÃO

O trauma é importante causa de morbimortalidade na população jovem e resulta em fortes repercussões econômicas para o país. Seu custo para a comunidade inclui, além dos gastos diretos com o tratamento, os indiretos com a perda da produtividade, especialmente quando se trata de crianças e adolescentes, pela expectativa de vida mais longa.1

As lesões do globo ocular na infância correspondem a considerável parcela dos casos de perda visual infantil no Brasil e refletem a grande exposição da criança ao trauma.2 Os traumatismos, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) e especialistas em Oftalmologia Comunitária, representam a principal causa de cegueira, junto aos glaucomas, tracoma, oncocercose, xeroftalmias e cataratas.3 No Brasil, ainda não há um sistema unificado de registro de traumatismos oculares. Os estudos em centros oftalmológicos, entretanto, têm sido realizados com a finalidade de analisar as principais causas e características epidemiológicas do trauma ocular. Constitui ponto comum a todos esses estudos a constatação da deficiência da educação e da conscientização da sociedade sobre as medidas preventivas relacionadas ao trauma ocular.4 Deve-se ressaltar, entretanto, que antes de educar a população para a prevenção do trauma ocular, é de fundamental importância o conhecimento do agente causal e das condições de ocorrência dos acidentes.2,5

A perda do globo ocular na infância é problema de saúde pública.6 A incapacidade temporária ou permanente do olho acometido pode acarretar repercussões sociais e econômicas passíveis de prevenção por intermédio do atendimento adequado e educação preventiva.4

O trauma ocular associa-se a incontáveis agentes causais e à diversidade de mecanismos de agressão envolvidos na sua gênese. A importância de cada agente em ocasionar acidentes é determinada pelos hábitos e costumes de cada região avaliada, salientando-se a necessidade de análise epidemiológica atualizada de cada região ou país.5

A presente pesquisa objetiva analisar a frequência dos tipos de trauma com perda do globo ocular na faixa etária de 0-10 anos em Serviço de referência em oftalmologia e contribuir para o seu registro em casuísticas nacionais, alertando para aspectos preventivos e educativos.

 

METODOLOGIA

Trata-se de estudo retrospectivo no qual a coleta de dados foi realizada a partir do levantamento do arquivo do Setor de Plástica Ocular do Hospital São Geraldo, Anexo do Hospital das Clínicas da UFMG. Foram encontrados 643 prontuários de pacientes portadores de cavidades anoftálmicas admitidos no período de dezembro de 1970 a junho de 2005. Os prontuários foram analisados e as seguintes variáveis foram registradas: idade, sexo, data de ocorrência do trauma, local do acidente e mecanismo causador. Foram separados 155 prontuários (24,16%) referentes a pacientes que perderam o globo ocular na idade de 0-10 anos. Foram excluídos desta investigação 12 casos de microftalmias congênitas, por não se tratar de fatores determinantes de perda do globo ocular, resultando em 143 prontuários. A análise estatística dos dados foi realizada no programa EpInfo 6.04, sendo usada como teste de escolha a partição do quiquadrado. Em todos os casos, fixou-se em 0,05 (5%) o nível de rejeição para a hipótese de nulidade. Valores estatisticamente significativos foram marcados com um asterisco(*). Os valores sem significância estatística receberam a sigla N.S. (não significativo). Em situações em que o teste da partição do qui-quadrado não pôde ser utilizado devido às restrições quanto ao tamanho da amostra em uma das categorias, optouse por utilizar o teste exato de Fisher.

Foram classificados como acidentes domésticos aqueles ocorridos no ambiente intradomiciliar, considerando-se atividades recreativas, acidentes com facas, tesouras, produtos químicos e outros utensílios domésticos. Os acidentes por arma de fogo foram separados do grupo de violência interpessoal, uma vez que foram considerados agressões físicas que culminaram com contusões e/ou lacerações oculares graves. Embora tenham ocorrido em ambiente domiciliar nesta pesquisa, não se optou por englobá-los neste grupo devido à gravidade da circunstância do acidente com projétil tendo a criança como vítima. Foi nomeada como trauma cirúrgico a perda do globo ocular que ocorreu no período pré ou pós-operatório de cirurgias oftalmológicas cujo objetivo não era a sua enucleação, evisceração ou exenteração. As atividades recreativas extradomiciliares foram caracterizadas como jogos e brincadeiras realizados pelas crianças nas escolas, ruas ou outro ambiente que não o seu domicílio. Os acidentes automobilísticos englobaram todos aqueles em que a criança vitimada estava dentro do veículo acidentado.

 

RESULTADOS

As causas mais frequentes de perda do globo ocular na faixa etária de 0-10 anos foram: trauma (58,04%, n=83), infecções (11,89%,n=17) e retinoblastoma (30,07%, n=43).

O trauma prevaleceu sobre as infecções (p<0,001*) e sobre os tumores intraoculares (p<0,001*) como principal determinante de cavidades anoftálmicas nessa faixa etária. A relação da distribuição da frequência dos tipos de trauma encontra-se na Figura 1.

 


Figura 1 - Distribuição da freqüência dos tipos de trauma em pacientes de 0-10 anos

 

O mecanismo causador do trauma não foi descrito em 28,92% (n=24) dos prontuários. Esse grupo foi excluído da análise de resultados. O trauma doméstico prevaleceu sobre os demais tipos nas faixas etárias de 0-5 anos (n=36) [doméstico=80,56% (n=29), outros=19,44% (n=7); p<0,001*] e de 6-10 anos (n=23) [doméstico=65,2% (n=15), outros=34,8% (n=8); p=0,039*].

Houve maior proporção de traumas oculares (Tabela 1) em meninos na faixa etária de 0-10 anos [meninos=62,65% (n=52), meninas=37,35% (n=31); p=0.001*]. Neste estudo a diferença entre os sexos foi estatisticamente significante na faixa etária dos 0-5 anos (Tabela 1).

 

 

 

DISCUSSÃO

Este foi o primeiro estudo realizado no Hospital São Geraldo com o objetivo de determinar-se o perfil epidemiológico do trauma ocular infantil nos pacientes admitidos.

Houve a prevalência de traumas domésticos nesta casuística (74,59%), o que corrobora outros autores.2,4-10 Kara José et al.5 demonstraram que 79,1% dos traumas oculares ocorrem em ambiente domiciliar. A presença de um adulto no momento do trauma foi levada em consideração por Moreira et al.10, que ressaltaram o aspecto preventivo desta variável na diminuição da frequência de acidentes na faixa etária de 0-5 anos. Neste trabalho, a ausência de um adulto, especialmente em famílias de baixo nível socioeconômico, pode aumentar a ansiedade e agitação da criança, tornando-a mais susceptível a acidentes domésticos.10 Esta variável não foi avaliada no presente estudo, uma vez que nos prontuários revisados não constavam informes detalhados sobre as circunstâncias do acidente.

A maior parte dos acidentes (56,62%) ocorreu com crianças de 0-5 anos. Moreira et al.10 encontraram percentual de 61% dos acidentes acometendo essa faixa etária. As crianças com menos de cinco anos são um grupo de risco significativo para traumas oculares, necessitando de assistência integral por parte dos responsáveis.10 Há mais desenvolvimento motor nessa faixa etária e, portanto, mais capacidade de locomoção da criança, diversificando e ampliando as possibilidades de acidente.6 Em estudo mais recente, realizado por Cariello et al.2, foi relatada porcentagem mais alta de acidentes em escolares.2 A possível explicação para esse achado é o fato de que as crianças no período escolar são mais independentes que as mais novas, porém mais imaturas que as mais velhas, tornando-se vulneráveis ao trauma.2 Outra justificativa é que nessa idade há desejo de mostrar suas habilidades e firmar-se diante dos colegas, levando a criança a realizar proezas acima de suas possibilidades.6

A grande ocorrência de traumas oculares em meninos é consistente com o verificado por outros autores.2,4-12 Isso se justifica pela maior liberdade dada aos meninos em quase todas as sociedades, além da natureza agressiva e mais contato físico nas brincadeiras entre eles.10 Moreira et al.10 descreveram que os traumas oculares em meninos seria significativa apenas a partir dos cinco anos de idade.10 Neste trabalho é encontrado justamente o contrário, ou seja, a diferença estatisticamente significativa entre os sexos foi apenas na faixa etária de 0-5 anos. A sua alegação poderia ser a mudança na rotina da criança a partir dos cinco anos de idade - início do período escolar no Brasil. Kara José et al.5 relatam que na escola os objetos mais comumente associados ao trauma estão fora do alcance das crianças, resultando em menos acidentes nesse ambiente.5 Os garotos que são naturalmente mais arteiros e que permanecem a maior parte do tempo em ambiente domiciliar com fácil acesso a tintas, diluentes, inseticidas, aerossóis e utensílios domésticos ingressam na escola onde o contato com esses objetos de risco é dificultado. O fundamento para essa afirmação11 pode ser o tipo de comportamento e brincadeiras realizadas pelas crianças nessa faixa etária, geralmente envolvendo objetos pontiagudos.11

O conhecimento do agente causal tem muito valor na elaboração de medidas preventivas.10 Estudos brasileiros2,5,10 concordam que objetos pontiagudos como facas, garfos e tesouras são responsáveis por mais de 50% dos ferimentos oculares penetrantes. Essa informação reforça a necessidade de se atentar para a manutenção de ambiente doméstico arquitetado de modo a manter longe do alcance das crianças esses utensílios, além de substâncias químicas, que constituem a segunda maior causa de acidentes intradomiciliares.5,10 Deve-se destacar um aspecto importante da presente pesquisa: cinco acidentes por arma de fogo ocorreram em ambiente doméstico. Como já mencionado no método do estudo, do ponto de vista preventivo seria inadequado agrupá-los entre os acidentes intradomiciliares dada à gravidade do instrumento que culminou com o trauma. Acidentes por projéteis em ambiente domiciliar denotam a violência desse contexto, uma vez que se considera que a criança vitimada teve acesso a uma arma de fogo dentro da própria casa.

O estágio de desenvolvimento da criança também ajuda a identificar os riscos e a direcionar as orientações que devem ser feitas. Dados epidemiológicos sugerem a relação entre idade, ou estágios de desenvolvimento, e tipos e incidência de acidentes.6 Neste sentido, a participação do pediatra, além da do oftalmologista, na promoção da saúde ocular da criança também torna-se fundamental.

É importante realçar que, na presente investigação, em 28,92% (n=24) dos prontuários o mecanismo causador do trauma não foi descrito. Ou seja, houve significativa perda dos casos devido à falta de rigor no preenchimento dos dados do paciente. No Brasil, os hospitais universitários fazem parte do nível de maior complexidade do Sistema Único de Saúde e, por essa condição, é de se esperar que disponham de prontuários de melhor qualificação. Nesses hospitais, o prontuário é especialmente útil porque, além das atividades de assistência, há atividades de ensino e pesquisa. A avaliação feita por Silva et al.14 abordou os modelos de prontuários utilizados em 77 (73,3%) dos 105 hospitais filiados à Associação Brasileira de Hospitais Universitários e de Ensino (Abrahue). Nos itens relativos à anamnese, considerada parte essencial da história clínica, encontrou-se a média de 4,3 pontos, enquanto o escore máximo esperado eram 22 pontos.14 Esses números confirmam o aparente descaso no registro de informações em prontuários médicos, o que contribui de forma negativa não só com a assistência médica prestada, como também com o ensino e a pesquisa no Brasil.

 

CONCLUSÕES

o trauma ocular doméstico prevaleceu como principal causa de cavidade anoftálmica em pacientes menores de 10 anos, reforçando que os acidentes são importante causa de morbidade na infância brasileira;

o médico oftalmologista e o pediatra devem estar envolvidos não só com as questões de abordagem inicial do traumatismo ocular, mas também com questões preventivas;

a perda do globo ocular é condição grave que causa importante deformidade funcional e estética e é passível de prevenção por meio de projetos educativos;

é necessário adotar nos hospitais mais rigor no preenchimento dos prontuários médicos, evitando-se, assim, reflexos negativos na assistência ao paciente e na continuidade de ensino e pesquisa na área da saúde.

 

REFERÊNCIAS

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