RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 19. 4

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Relato de Caso

Síndrome de Vohwinkel: relato de quatro casos na mesma família

Syndrome de Vohwinkel: reports of four cases in a same family

Michelle Bruna Souza1; Nicole Duarte Discacciati1; Graciela Silva Dias1; Helena de Oliveira2; Milton Campos de Souza3

1. Médicas formadas pela Faculdade de Medicina de Barbacena - FUNJOB
2. Doutora em Saúde Coletiva
3. Médico formado pela UFMG e diretor clínico do Hospital Monumento às Mães de Ibertioga-MG

Endereço para correspondência

Michelle Bruna Souza
Rua Perdões, 85 bairro Cruzeiro
CEP: 37270-000 Campo Belo - MG
Email: mibruna@yahoo.com.br

Recebido em: 21/12/2007
Aprovado em: 11/06/2008

Instituição: Faculdade de Medicina de Barbacena - FUNJOB

Resumo

A ceratodermia hereditária mutilante, displasia ectodérmica palmoplantar tipo VII ou síndrome de Vohwinkel, é afecção dermatológica rara, geneticamente determinada. É caracterizada por distúrbios de ceratinização das palmas, plantas e dorsos de mãos e pés por anéis fibrosos constritivos digitais e, raramente, alopecia universal congênita ou cicatricial, perdas auditivas neurossensoriais, surdez e retardo mental. São relatados neste trabalho quatro casos de síndrome de Vohwinkel na mesma família, envolvendo duas gerações.

Palavras-chave: Ceratodermia Palmar e Plantar; Dermatopatias Genéticas; Síndrome de Vohwinkel.

 

INTRODUÇÃO

As ceratodermias palmoplantares (CPP) compreendem um grupo complexo e heterogêneo de doenças geneticamente determinadas, caracterizadas por distúrbios de ceratinização. Podem ser classificadas baseando-se no quadro clínico, que leva em consideração a morfologia das lesões, modelo de herança genética, idade de aparecimento, presença ou ausência de lesões localizadas além das regiões palmoplantares e envolvimento de mais de uma estrutura ectodérmica.1-3

A ceratodermia hereditária mutilante, ectodérmica palmoplantar tipo VII ou síndrome de Vohwinkel é transgressiva de herança preferencialmente autossômica dominante.4-6 Ocorre mais em mulheres e em caucasianos e usualmente inicia-se na infância. As alterações que provoca são, principalmente, caracterizadas por: hiperceratose palmoplantar difusa, com aparência de favo de mel; anéis constritivos digitais; placas ceratóticas em forma de estrela-do-mar no dorso de mãos e pés, podendo acometer cotovelos e joelhos; e lesões verruciformes em dorso de mãos e pés.7 Encontra-se, também, em menor número de casos, alopecia universal congênita ou cicatricial4,6,8, distrofia das unhas e onicogrifose, perdas auditivas neurossensoriais, surdez e retardo mental.6-10

Este artigo relata quatro pessoas de uma mesma família portadoras de síndrome de Vohwinkel, encontradas no município de Ibertioga, Minas Gerais. Foi encontrado apenas um relato de caso dessa doença até o momento no Brasil.

 

DESCRIÇÃO DOS CASOS

Caso 1

Paciente feminino, 42 anos de idade, leucodérmica, do lar, nascida de parto normal sem complicações, décima filha de família com 10 irmãos, pais não-consanguíneos. A sintomatologia inicial da doença surgiu no primeiro ano de vida, como lesões em forma de placas que se coalesciam nos pés e depois nas mãos. Houve o aparecimento, concomitantemente, de um anel constritivo em falange distal do quinto quirodáctilo da mão esquerda. Ao longo dos anos e com o progredir da doença, as lesões se disseminaram em mãos e pés, surgindo hipoacusia aos 15 anos de idade. Ausência de casos semelhantes anteriormente na família. As lesões foram caracterizadas como placas de hiperceratose em palma das mãos e planta dos pés em forma de "favo de mel", enquanto as faces dorsais de mãos e tornozelos exibiam placas em forma de "estrela-do-mar". Observou-se, ainda, na mão esquerda um leve anel fibroso em falange distal do quarto quirodáctilo e amputação cirúrgica de falange distal do quinto quirodáctilo (Figura 1), ocorrida aos 37 anos de idade, após evolução constritiva do anel fibroso que culminou em necrose da extremidade do dedo. Apresentava também anel fibroso constritivo em falange distal de segundo e terceiro pododáctilo do pé direito, sem dor ou outros sinais flogísticos. Não foram encontradas alterações ceratóticas em joelhos e cotovelos, lesões periorificiais e distrofia das unhas e onicogrifose.

 


Figura 1 - Face dorsal da mão esquerda com placas em forma de "estrela do mar", leve anel fibroso em falange distal do quarto quirodáctilo e amputação da falange distal do quinto quirodáctilo.

 

O estudo radiológico das mãos e punhos evidenciou sinais de rarefação óssea e ausência da falange distal do quinto quirodáctilo da mão esquerda. A audiometria revelou perda auditiva neurossensorial bilateral acentuada.

Foi tratada com corticoide tópico e oral e aplicação tópica de creme de ureia a 10% em óleo de amêndoas, sem melhora. Atualmente não está sob tratamento.

Caso 2

Paciente feminino, 18 anos de idade, estudante e empregada doméstica, nascida de parto normal e filha de pais não-consanguíneos. É a primeira filha da paciente do caso 1, de uma família de quatro irmãos. Suas alterações clínicas surgiram no primeiro ano de vida, com o aparecimento de lesões verruciformes que progrediram ao longo dos anos para placas hiperceratóticas em forma de "estrela-do-mar" em mãos e placas hiperceratóticas em forma de "favo de mel" em pés. Aos dois anos de idade, iniciou formação de anel fibroso constritivo em quarto e quinto quirodáctilos da mão esquerda (Figura 2) e quinto quirodáctilo da mão direita, sem dores locais. Negava queixas auditivas. Ausência de placas em joelhos e cotovelos, lesões periorificiais, distrofia das unhas, onicogrifose e alopecia.

 


Figura 2 - Placas difusas em dorso da mão esquerda comconstrição em falange medial do quarto e quinto quirodáctilo.

 

O exame de audiometria revelou limiares auditivos dentro do padrão de normalidade em orelha direita e esquerda.

Nunca realizou qualquer tipo de tratamento.

Caso 3

Paciente masculino, 16 anos de idade, estudante, nascido de parto normal sem intercorrências, segundo filho da paciente do caso 1. A doença teve sua manifestação inicial no primeiro ano de vida. As alterações principais caracterizavam-se por lesões hiperceratóticas em dedos e eminências ósseas das articulações de mãos, pés e em joelhos, com anel constritivo em quinto pododáctilo de ambos os pés (Figura 3), que manifestavam dor local e prurido esporádico. Ausência de queixas auditivas e de lesões periorificiais, distrofia das unhas, onicogrifose e alopecia.

 


Figura 3 - Presença de lesões hiperceratóticas difusas e anel constritivo em quinto pododáctilo esquerdo.

 

A audiometria revelou perda auditiva neurossensorial leve, com configuração ascendente em orelha esquerda e direita.

Nunca se submeteu a tratamento.

Caso 4

Paciente masculino, 12 anos de idade, estudante, nascido de parto normal, terceiro filho da paciente do caso 1. Apresentava lesões verruciformes, iniciadas no primeiro ano de vida, localizadas em articulações do metacarpo e metatarsofalangianas e hiperceratose em palmas de mãos e em couro cabeludo, com alopecia têmporo-parietal direita (Figura 4). Constatada hiperceratose em planta dos pés, com episódios de bolhas plantares. Ausência de anéis constritivos, de placas em cotovelos e joelhos, de distrofia das unhas e de onicogrifose ou lesões periorificiais, mas verificada hipoacusia.

 


Figura 4 - Hiperceratose em couro cabeludo, com área de alopecia em regiao temporo-parietal direita.

 

A audiometria identificou perda auditiva neurossensorial leve, com configuração descendente em orelha esquerda e direita.

Nunca realizou qualquer tipo de tratamento.

 

DISCUSSÃO

A síndrome de Ainhum foi inicialmente considerada a principal suspeita para o diagnóstico dessas quatro pessoas da mesma família, caracterizadas, principalmente, por anel constritivo interfalangiano. Essa afecção particulariza-se por formação de anel escleroso em torno dos pododáctilos, principalmente o quinto, os quais progressivamente são estrangulados, tornam-se globosos e acabam por se destacar.11,12 Por ser mais incidente entre homens e negros e ocorrer, geralmente, a partir da terceira década de vida,13,14,15 essa síndrome não se enquadrou adequadamente nos achados clínicos dessa família. A síndrome de Olmsted também tem características comuns com os casos descritos, como o possível método de transmissão, idade de início, ceratodermia palmoplantar com mutilação e alopecia, porém existem lesões ceratóticas periorificiais típicas (perinasal, perioral e perianal) aqui não encontradas.16 Tomando as ceratodermias hereditárias como ponto de partida para o diagnóstico diferencial dessas alterações clínicas, como unna-thost, greither, meleda e vorner, foi na síndrome de Vohwinkel que ocorreu a maior similaridade com as aqui descritas em pessoas nascidas na mesma família no município de Ibertioga.

O início da doença ocorre no primeiro ano de vida, como se verificou em todos os casos deste relato, e evolui gradativamente ao longo dos anos. Assim como na literatura, os indivíduos apresentam maciça ceratodermia em palmas e plantas de mãos e pés, áreas sobre articulações metacarpofalangianas, alopecia e déficit auditivo.5 Todos os pacientes possuem hiperceratose palmoplantar em dorso de mãos e pés. Mãe e filha exibem lesões em "favo de mel" e "estrela-do-mar", o que não foi encontrado nos dois filhos do gênero masculino, cujas lesões eram mais caracteristicamente verrucoides. Apenas um deles, terceiro filho, não tinha anel constritivo ao redor dos dedos, sendo o único a manifestar alopecia, localizada em região têmporo-parietal direita, e episódios de bolhas plantares. A amputação cirúrgica por estrangulamento de anel fibroso foi observada apenas na mãe, no quinto quirodáctilo da mão esquerda. O segundo e o terceiro filhos apresentavam perda auditiva neurossensorial comprovada pela audiometria.

O heredograma dos casos relatados (Figura 5) demonstra o padrão dominante de transmissão da doença.17

 


Figura 5 - Heredograma da família mostrando 3 gerações e o padrão dominante.

 

A síndrome de Vohwinkel tem como tratamento apenas o alívio paliativo da ceratodermia e prevenção da autoamputação dos dígitos. O tratamento dermatológico limita-se ao uso de agentes ceratolíticos locais (ureia e ácido salicílico) e também o tratamento cirúrgico das faixas de constrição5,18, o que foi realizado na paciente do caso 1. Alguns estudos atuais defendem o uso de retinoides aromáticos, que trataram com êxito algumas ceratodermias, embora com recaídas, uma vez suspensa a medicação, e alguns efeitos colaterais como aumento da fragilidade e sensibilidade cutâneas.5,9,19,20 Nenhum resultado positivo com esses medicamentos foi comprovado na síndrome de Vohwinkel.

 

REFERÊNCIAS

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