RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 19. 4

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Educação Médica

Fundamentos epidemiológicos para a abordagem das doenças infecciosas

Epidemiologic basis for the approach of infectious diseases

Bernardino Geraldo Alves Souto

Professor do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos - SP

Endereço para correspondência

Rua Douvidor Cunha, 107 Bairro Jardim Cardinalli
13569-580 - São Carlos/SP
Email: bernardino@viareal.com.br

Recebido em: 22/09/2008
Aprovado em: 11/05/2009

Resumo

Os métodos epidemiológicos são empregados na abordagem das doenças infecciosas desde a Antiguidade. Ao longo dos anos, a epidemiologia foi, progressivamente, incorporando novos olhares sobre esse conjunto de agravos, bem como novas metodologias e técnicas para sua compreensão e controle. Este artigo expõe algumas ideias e recursos práticos que a epidemiologia usa atualmente no trato das doenças infecciosas, tanto no plano individual quanto no coletivo, úteis às pessoas que trabalham com vigilância em saúde e às que exercem a clínica médica.

Palavras-chave: Doenças Transmissíveis/epidemiologia; Aplicações da Epidemiologia; Epidemiologia; Notificação de Doenças; Vigilância Epidemiológica.

 

A HISTÓRIA DA EPIDEMIOLOGIA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

Na Era Mesolítica, os homens caçavam animais e os mantinham em cativeiro com o fim de se alimentarem de suas carnes e se protegerem com suas peles em épocas de escassez. Essa prática resultou na aglomeração de pessoas e animais em áreas restritas ao interesse das sobrevivências individual e coletiva. Os problemas de saúde decorrentes dessa relação dos homens entre si e com os animais suscitaram a necessidade de se buscarem a compreensão e a solução desses problemas: aqui começa a epidemiologia.1

A correlação entre fenômenos sazonais ou circunstanciais com menos ou mais ocorrência de determinadas doenças levava os homens dessa época a estabelecer medidas específicas de profilaxia.1

Já a Medicina arcaica, surgida no Egito e na Mesopotâmia há mais de 3.500 anos, observava e comparava os fenômenos relacionados às doenças infecciosas com a intenção de compreendê-las.1,2 Essa forma de abordagem é, essencialmente, um método epidemiológico.

Não obstante, o adoecimento ainda era atribuído a um castigo dos deuses ao pecador. Entre os pecados que, acreditava-se, poderiam ser punidos por meio do adoecimento, estavam as atitudes de cuspir ou urinar em canais hídricos, comer do prato de uma pessoa doente ou molhar o pé em água suja. Essa crença, apesar do empirismo da época, evidenciava a percepção de que havia algum vínculo entre o homem, a saúde e o meio ambiente. Mais tarde, no século V a.C., Hipócrates, em sua conhecida obra intitulada Ar, Águas e Lugares, procurou consolidar essa percepção.1,2

Marcus Terentius Varro e Lucius Junius Moderatus Columella (100 d.C.), 600 anos depois, advogaram a possibilidade da existência de micro-organismos patogênicos e propuseram medidas de quarentena para o controle de doenças, estabelecendo a primeira noção de contágio.1,2

A partir daí, diversas epidemias passaram a ser observadas e descritas. Baseado nessas descrições, Alberto Magno (1193-1280) produziu uma classificação sistemática das doenças infecciosas fundamentada em seus mecanismos de transmissão. Foi nessa mesma época, em 1246, que o monge franciscano Bartholomaeus Anglicus reconheceu que a peste bubônica era uma doença transmissível.1,2

Já no período Renascentista dos séculos XV e XVI, o médico e escritor Gerolano Fracastoro (1483-1553), em sua obra O contágio das doenças contagiosas e o seu tratamento, publicada em 1546, estabeleceu algumas bases para a compressão do conceito de contágio de doenças através de contato direto ou de fômites. Esse foi considerado um dos melhores textos já produzidos até então, versando sobre epidemiologia descritiva de doenças infecciosas.1,2

Mais de 100 anos depois, em 1662, John Graunt introduziu métodos de análise quantitativa em epidemiologia. Passaram-se mais 200 anos até William Farr utilizar esses métodos para pesquisar a morbidade e a mortalidade em algumas populações, meio pelo qual estabeleceu os conceitos de risco e exposição.1,2

Partindo desses conceitos, e associando os métodos descritivo e analítico para estudar registros de eventos vitais, John Snow desvendou a epidemia de cólera que grassou em Londres na segunda metade do século XVIII, solidificando as bases da epidemiologia moderna aplicada.1

Já nos tempos atuais, essa ciência projeta sua perspectiva além das doenças infecciosas, sem a perda desse elemento. Para isso, incorpora objetos e métodos da sociologia, geografia, demografia e estatística, entre outros. Tornou-se, pois, uma especialidade multidisciplinar que aproveita desde as ciências básicas de laboratório, altamente tecnológicas, até as ciências sociais, políticas e econômicas aplicadas, sem a perda das ferramentas que construiu ao longo da sua história.3

 

FUNDAMENTOS ATUAIS EM EPIDEMIOLOGIA DAS DOENÇAS INFECCIOSAS

A palavra epidemiologia tem origem grega e significa "estudo sobre a população". Portanto, vai muito além do estudo das epidemias.1

Na verdade, essa especialidade se ocupa de compreender o processo ecológico determinante do bem-estar ou do mal-estar físico, mental e social das coletividades e do impacto de suas propostas e intervenções sobre tal processo. Nesse objeto estão incluídas, entre outros fenômenos, as doenças infecciosas.

A saúde e a doença não são eventos dicotômicos, senão coisa única, derivada de um processo histórico, sociocultural e ambiental, em contínua interação e evolução, a determinar a oscilação para o lado do bem-estar ou do mal-estar de toda existência.3

A relação entre os seres e a sua complexidade ecológica envolvem componentes microbiológicos, fisiopatogênicos, sociais, ambientais, genéticos, adaptativos, culturais e existenciais, os quais têm definida importância na gênese, distribuição, repercussão e evolução das doenças infecciosas nos diversos contextos populacionais. A pandemia de AIDS é um grande exemplo dessa complexidade.3,4

Dessa forma, a doença infecciosa se configura não só a partir do modo como convivem os seres e como se correlacionam, os momentos vitais, os lugares, as coisas e as pessoas, mas, também, a partir da própria relação das doenças entre si no âmbito estrutural e funcional do ecossistema.5

Portanto, na é suficiente o combate direto às enfermidades infecciosas por meio apenas do antigo modelo, que propunha a quebra da cadeia epidemiológica do ciclo vital do patógeno de interesse. De fato, a busca ativa de casos e a intervenção sobre cada caso e seus contatos, individualmente, como forma isolada de controle de doenças transmissíveis na população têm se mostrado medida paliativa e de resultado precário. É preciso intervir, também, no ecossistema biológico e sociocultural por onde transita a doença infecciosa.

Assim, a epidemiologia moderna preconiza que a vigilância desse tipo de agravo precisa extrapolar os limites da história natural das doenças e seus desideratos estritamente microbiológicos e imunológicos.

 

RECURSOS EPIDEMIOLÓGICOS PARA A ABORDAGEM DAS DOENÇAS INFECCIOSAS NO PLANO DAS AÇÕES COLETIVAS DE SAÚDE

A compreensão epidemiológica das doenças infecciosas parte, na prática, do adequado registro de dados vitais, em especial o registro da ocorrência dessas doenças.

Para isto, existe, no Brasil, o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica - SNVE, que consiste no registro sistematizado de um grupo de problemas que interessam à saúde pública, na investigação de alguns desses problemas, na consolidação de dados e na avaliação e implementação de medidas que visem ao controle ou à erradicação de doenças ou outros agravos à saúde da população.6

As secretarias municipais de saúde dispõem de coordenadorias de epidemiologia ou equivalente, cuja responsabilidade mínima é assegurar o registro adequado das doenças de notificação epidemiológica compulsória listadas no Quadro 1, a partir de uma sistemática padronizada pelo Ministério da Saúde. Essa lista é de referência nacional, embora estados e municípios, a depender da necessidade epidemiológica local, possam acrescentar outros agravos à mesma.

A notificação epidemiológica compulsória é obrigação legal e ética dos profissionais da saúde. Diante de um caso suspeito de qualquer doença listada no Tabela 1, o profissional deverá, ao mesmo tempo em que presta assistência ao paciente, notificar a ocorrência ao serviço municipal de epidemiologia ou órgão equivalente. Esse serviço conduzirá a medida administrativa respectivamente indicada, quer seja a incorporação da informação a um banco de dados, a transferência da informação a uma instância administrativa superior, a investigação epidemiológica do caso ou o bloqueio focal de contenção epidêmica.7

 

 

A incorporação da notificação a um banco de dados

Todas as notificações são agregadas a um banco de dados, o qual é utilizado para a realização de diversos estudos epidemiológicos. Esses estudos se destinam a conhecer o perfil de distribuição da doença na população e suas tendências, com o fim de propor medidas de controle ou erradicação do agravo, assim como avaliar o impacto dessas medidas.

A transferência da informação a instâncias administrativas superiores

Da mesma forma que quem atende um caso suspeito de doença de notificação compulsória tem que comunicá-lo ao serviço local de vigilância epidemiológica, este está obrigado a repassar a informação ao nível estadual, o qual o repassa ao federal e este à Organização Mundial da Saúde. Cada instância dessa hierarquia administrativa tem sua própria lista de doenças de notificação, de modo que nem tudo o que é notificado em âmbito local precisa ser encaminhado ao estadual, ao federal ou ao internacional. O retorno das ações indicadas para o controle do agravo notificado poderá ser provido por qualquer dos níveis, de maneira administrativamente integrada entre os mesmos, a depender do quanto é necessária a participação direta de cada um em função da gravidade e da importância do evento notificado, bem como da capacidade técnica de cada instância. A ação destinada ao controle epidemiológico é de responsabilidade do nível local, mas o suporte técnico e a diretriz para a execução dessa ação, se necessário, poderão ser providos por uma ou mais instâncias superiores.

A investigação epidemiológica do caso

São investigadas doenças que, a depender da sua importância clínica e/ou epidemiológica, demandam vigilância mais rigorosa. Trata-se de um trabalho de campo no qual o profissional que atende ao caso e o paciente são visitados pelo serviço de epidemiologia, com fins à confirmação diagnóstica, ao acompanhamento detalhado da evolução clínica do paciente, à obtenção de informações úteis a estudos epidemiológicos mais refinados e precisos e à tomada imediata de medidas de controle da doença no âmbito populacional.

Bloqueio focal de contenção epidêmica

Essa prática visa a obstruir imediatamente a disseminação da doença na população. Por exemplo: um caso de sarampo precisa ser notificado imediatamente ao serviço de epidemiologia, o qual tem, no máximo, 48 horas de prazo para providenciar a investigação e o bloqueio vacinal. Trata-se de uma doença de elevada e rápida contagiosidade, portanto, de grande potencial epidêmico, cuja perda desse prazo poderá resultar em uma epidemia de grandes proporções a partir de um único caso. Então, mesmo antes da confirmação diagnóstica, apenas com a suspeita clínica, e enquanto se providenciam a investigação e os testes confirmatórios do diagnóstico, faz-se uma varredura em todos os contactantes próximos do paciente no período de incubação ou de estado da doença, efetuando-se cobertura vacinal específica. O profissional que negligenciar essa importância e não notificar o caso ao serviço de epidemiologia estará exposto a ações de ordem jurídica e administrativa.7

Outro exemplo interessante é quanto ao bloqueio focal que se faz diante da notificação de um caso suspeito de dengue: o serviço de saúde visita o paciente e, ao redor do seu domicílio, elimina todos os focos e potenciais criadouros de Aedes aegypti, pois, se esse paciente for picado por esse inseto na primeira semana da doença (fase de viremia), o vetor adquirirá o vírus e, posteriormente, o transmitirá a outra pessoa, e assim sucessivamente, podendo, desta forma, desencadear-se uma epidemia de dengue.7,8

 

O ESTUDO DA DISTRIBUIÇÃO DAS DOENÇAS INFECCIOSAS NA POPULAÇÃO: O MÉTODO OBSERVACIONAL

Todo levantamento epidemiológico inicia-se pela observação. A partir daí são feitos estudos descritivos que estabelecem hipóteses, as quais poderão ser testadas por métodos quantitativos.

As formas de observação são as mais variadas. Citam-se alguns exemplos muito simples e práticos, sem esgotar a potencialidade metodológica de cada um:

Construção de curvas endêmicas, por meio das quais se desenha uma linha histórica da incidência de determinado agravo cujo acompanhamento permite perceber se em determinado momento está ocorrendo elevação inesperada de casos (uma epidemia) ou diminuição da incidência (que pode ser resultado de medidas de controle da doença ou de subnotificação dos casos por parte dos profissionais de saúde) (Figura 1).

 


Figura 1 - Curva endêmica da caxumba, para Conselheiro Lafaiete, MG, baseada na experiência obtida pela vigilância epidemiológica compulsória entre os anos de 1987 e 19959

 

Aproveitando esse exemplo da Figura 1, à medida que os casos de caxumba vão sendo notificados, a respectiva incidência é marcada no gráfico. Se a incidência assim justaposta ultrapassar o limiar epidêmico, pode-se estar diante de uma epidemia de caxumba; se estiver abaixo do limiar de subnotificação, está-se diante de um bom controle da doença ou o serviço de epidemiologia não está sendo informado dos casos (a notificação epidemiológica compulsória não está chegando ao serviço de epidemiologia conforme deveria). Vale lembrar que curvas endêmicas devem ser atualizadas, pelo menos, a cada 10 anos.

A distribuição espacial dos casos por meio de técnicas de geoprocessamento permite descrever as relações entre a ocorrência dos agravos em estudo e a distribuição de outros fenômenos, de recursos naturais, recursos urbanos, etc. Por exemplo: pode-se verificar, pelo mapa, maior incidência de hepatites por vírus nas áreas por onde circulam mananciais hídricos naturais poluídos (Figura. 2); ou a menor incidência de dengue nas áreas de maior altitude.

 


Figura 2 - Distribuição geográfica do número absoluto de casos confirmados de hepatite viral "A", verificado em Conselheiro Lafaiete, MG, no ano de 1997, segundo a comunidade da ocorrência. O número do nome da comunidade representa o número absoluto de casos confirmados de hepatite - concentrados nas margens das partes baixas dos rios Bananeiras e Gigante. As setas indicam o sentido da correnteza.10

 

O geoprocessamento pode, também, permitir supor a forma de transmissão de uma doença que ocorre em surto agudo. Por exemplo: a) uma doença cuja fonte de contaminação foi comum a todos os doentes, ao serem pontuados no mapa os casos em relação ao tempo, poderá ser visto que quase todos os doentes iniciaram seus sintomas em uma área muito restrita e praticamente ao mesmo tempo; b) uma doença de transmissão interpessoal tende a seguir uma trajetória geográfica e temporal que forma uma linha contínua, como se caminhasse pela área em estudo; c) uma doença transmitida por vetor tende a surgir em locais independentes e sem relação cronológica entre casos subsequentes (Figura 3).

 


Figura 3 - Quadro A: seis casos da doença surgiram ao mesmo tempo, restritos a uma área definida - fonte de contaminação comum; Quadro B: 18 casos da doença se propagaram linearmente, onde houve sequência temporal e geográfica de ligação entre um caso e o subsequente - transmissão interpessoal; Quadro C: cada caso surgiu em um ponto do lugar, esporadicamente, sem ligação um com o outro - transmissão vetorial

 

Atualmente, existem técnicas de geoprocessamento bastante sofisticadas, que usam avançados recursos em tecnologia de informática e comunicação via satélite, permitindo refinados estudos descritivos e analíticos de agravos na população, e por entre os lugares.

A tabulação da distribuição da doença segundo a faixa etária, nível socioeconômico, fenômenos migratórios humanos ou animais, local de residência dos afetados, categoria ocupacional, sexo ou sazonalidade pode permitir a observação de fatores sociais ou ambientais relacionados ao adoecimento das pessoas.

Ainda se podem aplicar outros métodos epidemiológicos mais elaborados, quantitativos envolvendo diversos dados oriundos de uma investigação epidemiológica (cultura de espécimes, isolamento viral, sorologias, dados de anatomia patológica, etc.), buscando-se refinar o conhecimento médico e epidemiológico sobre o agravo que se estuda.

 

O RACIOCÍNO EPIDEMIOLÓGICO NA ABORDAGEM CLÍNICA INDIVIDUAL

Por ocasião do atendimento a um paciente, além da anamnese e exame físico adequados, precisa-se lançar mão do raciocínio epidemiológico. Nesse sentido, o profissional de saúde precisa conhecer o perfil de morbimortalidade das pessoas que vivem no lugar onde ele trabalha. Esse dado lhe permite atentar para os agravos que têm maior probabilidade de afetar seu paciente. Por exemplo: uma pessoa com febre, calafrios e anemia, atendido em uma cidade do interior do Pará, muito provavelmente estará afetada pela malária, mas, atendida no interior sul de Minas Gerais, com o mesmo quadro clínico e sem história de ter estado fora dessa região, a malária poderá, a princípio, ser pouco valorizada entre suas possibilidades diagnósticas.11

Além disso, a verificação de casos semelhantes na comunidade, a história de contato com outros doentes, relatos de viagens, acidentes (especialmente os ocupacionais com material biológico ou ambientais), o uso de soros ou vacinas, o envolvimento com situações de risco (enchentes, entrada em paiol e grutas, por exemplo) e o perfil da distribuição de casos, conforme mostrado na Figura 3, também ajudam o clínico na decisão que terá que tomar frente ao paciente afetado por uma doença infecciosa.11

Para ilustrar, cita-se o caso de uma pessoa que se apresentou com quadro clínico de sarampo de evolução benigna, porém afirmando ter recebido vacina antissarampo nos últimos 12 dias. Certamente, este será um caso de reação vacinal e não de sarampo selvagem. A abordagem clínica e epidemiológica dessa ocorrência é muito mais tranquila do que se se estivesse diante de um paciente com sarampo, mas sem essa história vacinal. Outro exemplo é o de um indivíduo com febre, mialgia, dores abdominais, alterações do hábito intestinal e história de envolvimento com enchentes nas últimas três semanas. Este último aspecto epidemiológico obriga a incluir a leptospirose no conjunto das hipóteses diagnósticas.7,11,12

A abordagem das infecções hospitalares constitui outro desafio importante. A flora infectante difere entre os hospitais, a depender de uma série de variáveis, que vão desde o perfil das nosologias atendidas no hospital ao padrão local de resistência bacteriana, o qual é construído, principalmente, a partir do arsenal antimicrobiano utilizado na casa. Portanto, cada hospital precisa conhecer sua epidemiologia própria de circulação de patógenos e infecções para, a partir desse conhecimento, estabelecer as condutas ideais frente às complicações infecciosas prevalentes em seu ambiente.11,12

No âmbito orgânico do próprio paciente, mais uma vez o raciocínio epidemiológico assume importância na abordagem da pessoa com doença infecciosa. A partir da cuidadosa avaliação do caso clínico posto à frente, pode-se inferir o nível de gravidade, o prognóstico e o provável agente etiológico. Por exemplo: indivíduo com quadro agudo de febre, mialgia, diarreia, conjuntivite, lesões orais, estado geral pouco comprometido e com melhora do mal-estar nos períodos de supressão da febre por antitérmicos muito provavelmente está acometido de uma infecção virótica, dispensando a indicação de tratamento antimicrobiano. Ao contrário, indivíduo com manifestações agudas mais localizadas, persistência do mal-estar a despeito da supressão da febre, e taquicardia persistente poderá estar acometido por uma infecção bacteriana e, portanto, necessitar do uso de antimicrobianos.11-13

Ademais, o perfil clínico e o entorno epidemiológico de uma mesma doença infecciosa podem ser diferentes entre os imunodeprimidos e os não-imunodeprimidos; entre os jovens e os idosos; entre os nutridos e os desnutridos; entre os com história de hospitalização recente e os sem essa história; e entre os que declaram uso prévio de antimicrobianos e os que não usaram.11,12

Comorbidades também podem interferir no comportamento e na etiologia das doenças infecciosas no plano individual, a exemplo do diabetes mellitus, da anemia falciforme, da associação de outras infecções (HIV, hepatite viral crônica e outras), do uso de medicamentos ou outras drogas, inclusive antimicrobianos.11,12,14

O sexo do indivíduo, o comportamento, a atividade ocupacional, a situação socioeconômica e a inserção cultural são outras variáveis que merecem consideração durante o trato com uma pessoa acometida por uma doença infecciosa. A maior vulnerabilidade feminina à infecção pelo HIV em meios socioeconômicos prejudicados, hoje, é um paradigma. Outro exemplo é a endocardite infecciosa em indivíduo previamente sadio, relacionada ao uso de drogas injetáveis, assim como o risco mais alto de leptospirose entre pessoas que trabalham em redes de esgoto.11,12,15

Não obstante, o conhecimento da epidemiologia microbiológica é, também, indispensável para o atendimento clínico a pacientes com doença infecciosa. O sítio de uma infecção pode sugerir o patógeno envolvido, segundo a distribuição da microbiota. Em infecções do trato genitourinário, por exemplo, prevalecem germes gram negativo, enquanto que, na pele, a maior parte das infecções é provocada por germes gram positivo.11-13

Em contrapartida, avaliações complementares simples podem ajudar na inferência etiológica. As infecções víricas, mais frequentemente, cursam com leucopenia e linfocitose; as infecções por gram negativo podem mostrar leucometria normal ou baixa, com desvio para a esquerda; as infecções por gram positivo podem destacar leucocitose, com desvio para a esquerda; e as infecções granulomatosas crônicas podem salientar leucograma normal ou leucometria global normal, com desvio para a direita.11,12,16

O clínico precisa conhecer bem todos esses aspectos porque, na maioria das vezes, não terá pronto acesso ao diagnóstico etiológico laboratorial ou não poderá esperar pelo mesmo para iniciar o tratamento.11-13

Outro aspecto importante é a virulência microbiana que, enfim, é o resultado da interação parasito-hospedeiro, a qual pode ser influenciada por vários fatores. Entre estes, podem-se destacar as características próprias do agente etiológico, as condições gerais do paciente e sua capacidade de resposta imunológica, as condições ambientais que o germe encontra no organismo infectado e o uso de antimicrobianos.13

Nesse sentido, deve-se chamar a atenção para o uso inadequado de antimicrobianos como uma forma de desequilibrar, imunologicamente, o organismo vítima desse tipo de intervenção. O principal aspecto dessa conjectura diz respeito à microbiota. Um indivíduo em vida intraútero está em ambiente estéril. A partir do nascimento, começa a incorporar germes de toda ordem. No aspecto ambiental do seu organismo, e sob influências inatas e fenotípicas, vai-se construindo seu ecossistema orgânico, do qual faz parte sua microbiota, um dos mais importantes elementos de defesa contra infecções. Para não se prejudicar essa construção, é preciso que o uso de antimicrobianos em pacientes muito jovens seja bastante judicioso. Mesmo no adulto, o desequilíbrio da flora residente, consequente ao uso de anti-infecciosos, pode comprometer a eficiência desse importante arsenal de defesa do organismo, pelo menos temporariamente.13

Diante de tudo que foi exposto, observa-se que a epidemiologia tem sido utilizada na abordagem das doenças infecciosas há mais de 5.500 anos. Evoluindo com a própria humanidade, ganha cada vez mais importância como eficiente ferramenta para o controle dessas doenças na população, assim como para o atendimento individual. Seu uso, portanto, agrega qualidade tanto às ações de vigilância em saúde quanto à prática clínica.

 

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