RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 19. 4

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História da Medicina

A descoberta da doença de chagas e a Faculdade de Medicina da UFMG têm origem comum*

The Chaga's Disease discovery and its common origin with the Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG

João Amílcar Salgado

João Amílcar Salgado é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais, pesquisador em História da Medicina e autor do relato do reencontro da paciente Berenice, sobre a qual publica um livro para comemorar o centenário da descoberta da doença de Chagas. Esse texto, com o título "As cidades de Oliveira e de Bom Sucesso e o centenário da descoberta da doença de Chagas" encontra-se em jamilcarsalgado.blogspot.com

Endereço para correspondência

Av. Alfredo Balena, 190
Belo Horizonte, MG CEP 30130-100

Recebido em: 19/10/2009
Aprovado em: 30/10/2009

Instituição: Centro de Memória da Faculdade de Medicina UFMG

 

O Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais, desde sua criação, guarda para com a família Chagas carinhosa e persistente admiração. O acervo desse Centro, localizado na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), foi inaugurado em 1977, com a doação, feita por Pedro Nava, de um busto de Pasteur que pertenceu a Carlos Chagas. Nava foi médico de dona Iris Lobo Chagas e a família, em retribuição à sua desvelada atenção à paciente, deu-lhe de presente a escultura. É uma representação muito bem feita de Pasteur, mandada confeccionar pelos médicos paulistas quando da recepção que ofereceram ao descobridor. Nele está inscrito: AO DR. CARLOS CHAGAS, LEMBRANÇA DA CLASSE MÉDICA DE SÃO PAULO - 16-9-912.

E há forte significado nisso, pois o acervo deflagrador do Centro coincide ser essa escultura e a documentação referente à paciente Berenice, caso inaugural da doença de Chagas, ainda viva na época. Ora, nada foi mais apropriado do que iniciar o principal núcleo de memória médica de Minas Gerais com elementos referentes ao mais significativo acontecimento da Medicina mineira e que também, decorridos 100 anos, continua sendo a maior realização da ciência brasileira: a descoberta, por processo original e único, de uma entidade mórbida que, por sua vez, apresenta várias peculiaridades únicas em toda a nosologia.

A partir daí, na mesma coerência, o Centro de Memória passou a fazer estudos referentes à família Chagas. O oliveirense Carlos Chagas não estudou na Faculdade de Medicina da atual UFMG, mas o teria feito se ela já existisse quando se matriculou no Rio. E, para compensar, ela o presenteou com um vínculo essencial: a investigação aqui feita da referida paciente Berenice. Demais, dois primos seus, os médicos Carlos Pinheiro Chagas e Paulo Pinheiro Chagas, também oliveirenses e também diplomados no Rio, estão ligados a essa escola médica por razões honrosas e fortes.

Carlos Pinheiro Chagas, apelidado de Carleto, para diferençar-se do autor da descoberta, diplomou-se no Rio e foi professor de Patologia na Faculdade mineira, de 1920 a 1932. Sua biografia parece roteiro cinematográfico, na medida em que une romantismo, heroísmo, ciência e suspense. Ele e Baeta Viana, na década de 20 do século XX, foram os primeiros a receberem bolsa de estudo da Fundação Rockefeller. Com isso, personalizaram a mudança havida na Medicina mineira e brasileira, quando o paradigma francês e europeu foi substituído pelo padrão norte-americano. Baeta Viana foi o criador da escola brasileira de bioquímica e Carleto teria feito algo semelhante na patologia, caso seu ativismo político e sua morte precoce não o tivessem impedido. Mas esse mesmo ativismo o imortalizou na história do Brasil, quando orou no sepultamento de João Pessoa. Nos 90 anos da descoberta, em discurso na Associação Médica de Minas, mencionei texto meu intitulado "Algozes e algozes", no qual afirmo que aquilo que Carleto disse sobre João Pessoa poderia ser dito, em alusão a outros algozes, no féretro de Carlos Chagas, falecido quatro anos depois: "agora, senhores, podereis levar o seu corpo para a morada derradeira, mas atendei: um homem como ele deveria ser enterrado de pé como sempre viveu, de pé, como não vivem muitos dos seus algozes, de pé como quis ser enterrado Clemenceau, com o coração acima do estômago e com a cabeça acima do coração.

Nas aulas de Carleto, na Belo Horizonte romântica da primeira metade do século XX, ficou legendária a presença de estudantes de Direito e de Engenharia ao lado dos alunos de Medicina, Odontologia e Farmácia, que iam ali ouvir não histologia normal e patológica, mas apreciar aquele orador de verbo fácil e candente. E os alunos forasteiros das ciências biológicas comentavam: não entendemos nada do que disse, mas que discurso maravilhoso! Tendo estagiado nos EUA com William MacCallum, então o maior nome da patologia ianque, consta ter este insinuado que, se aquele brasileiro fizesse carreira lá, talvez o sucedesse, tanta admiração causavam seus raros dotes intelectuais. Carleto teria respondido que poderia até voltar àqueles laboratórios, mas antes estava determinado a engajar-se numa revolução política em favor do futuro de sua pátria. Em função de tal posicionamento, que era também o de Baeta Viana, é que os apelidei em outro texto de tenentistas da saúde.

Já Paulo Pinheiro Chagas fez em Belo Horizonte os dois primeiros anos de seu curso, período em que foi agraciado com invejável duplo privilégio. De um lado, foi colega de turma de Guimarães Rosa, o mais criativo ficcionista do idioma, sendo que o próprio Paulo viria a ser também celebrado homem de letras. De outro, foi contemporâneo do doutorando Juscelino Kubitschek e do referido Nava, que cursavam o quinto e sexto anos, sendo Kubitschek aquele a quem chamaria de contemporâneo do futuro e de quem seria eficaz defensor no parlamento, com sua flamejante oratória.

Aqueles privilegiados que foram alunos do descobridor Carlos Ribeiro Chagas (um deles foi nosso querido professor Otávio de Magalhães) também consideravam notáveis suas aulas, inclusive a oratória do mestre. Donde veio a oratória dos Chagas? Veio da genética e do alto nível cultural da cidade de Oliveira, animada pelo brilho de uma pedagoga, oradora e declamadora, Manoelita Costa Chagas, afetuosamente a tia Lilita. A ela me refiro em meu livro "O riso dourado da vila" (2003), quando evoco os dotes oratórios de minha parenta, a nepomucenense Alice Lima, ex-aluna de dona Lilita, por sua vez também carinhosamente chamada de tia Alice. Isso significa que Oliveira irradiou pela redondeza a bela cultura aí acumulada, beneficiada por localizar-se perto de São João Del Rei e justo entre as picadas velha e nova para Goiás, além de remanso entre a azáfama da Estrada Real e a caça às quilombolas.

No Rio, a Medicina da virada do século XIX ao XX tinha subido a um patamar mais alto e naquela época diplomaram-se Cícero Ferreira, em 1885, e Carlos Chagas, em 1902. Entre os docentes, ligada a ambos e liderada por Miguel Couto, havia pequena elite que superara a velha guarda conservadora. Esta, ainda poderosa e ainda capaz de grandes maldades, era composta de lentes dogmáticos, recalcitrantes a novidades científicas e tecnológicas, principalmente às evidências de que muitas doenças, inclusive antigas torturadoras da humanidade, eram causadas por agentes infecto-parasitários. Para eles, aceitar tais novidades era confessar que mentiram para várias gerações. Como se sabe, a febre amarela e outras pragas, com morbimortalidade insuportável, jogaram a favor do novo, mas, mesmo assim, o governo teve a prudência de localizar o Instituto Manguinhos, trincheira debeladora delas, bem longe dos redutos contrários, que eram a Academia Nacional de Medicina e a própria Faculdade.

Daí se pode imaginar o despeito e a irritação na capital da República quando chegam de Minas duas notícias. A primeira, de 1909, era de que foi descoberta uma doença absolutamente nova, ou seja, até então em tudo desconhecida. Ainda mais: era também parasitária e seu descobridor, Carlos Chagas, era dali mesmo de Minas e, não contente em descobrir a nova doença na própria Minas, realizou a façanha de descobrir, ele próprio, também seu agente parasitário. E seu autor chegou ao cúmulo da irreverência: ao agente parasitário que acabara de descobrir deu o nome de Trypanosoma cruzi, homenageando não um de seus professores na Faculdade, mas a Osvaldo Cruz, o homem da parte contrária, aquele entrincheirado em Manguinhos.

A outra notícia era igualmente afrontosa: dois anos depois, em 1911, outro ex-aluno, Cícero Ferreira, originário da mesma região do primeiro, conseguira - sobrepondo-se a objeções e obstáculos jogados em seu caminho - estruturar nova Faculdade de Medicina, em pleno sertão, obviamente aberta ao ensino sem tutela e a modernidades suspeitas, como a doutrina pastoriana, a química médica, a histopatologia, o darwinismo, a iatroeletricidade e a política sanitária.

Aos olhos de hoje, as duas realizações - a descoberta da doença e a inauguração da escola médica - têm de fato forte ligação, bem longe, porém, da mente conspiratória dos conservadores da época. Ou melhor, enquanto alguns temiam as modernizações internas da Medicina, a nova doença e a nova Faculdade decorreram de modernizações externas, determinadas pela Revolução Industrial, em andamento. Foi, de fato, para atender interesses desta que surgiu a quantificação do minério mineiro, até então considerado não-precioso. Quando transpirou a fabulosa quantia de minério de ferro puro à flor da terra, da qual a frente industrial estava sedenta, revalorizou-se o sertão mineiro, antes tido como exausto de ouro e gemas. Daí surgiu a linha férrea, em cujo saneamento Carlos Chagas fez sua descoberta, em 1909, surgindo nova capital para Minas, ineditamente planejada, para cuja assistência médica Cícero Ferreira ergueu nova Faculdade de Medicina, em 1911.

Mesmo reconhecendo que a descoberta da doença e a inauguração da Faculdade decorreram de fatores econômico-sociais - e que estes não se restringiam a dimensões nem locais, nem regionais, nem nacionais, mas internacionais -, não se pode esquecer que seu teatro era Minas. E como sói acontecer em Minas, na ligação dos dois fatos há o surpreendente vínculo consanguíneo entre os dois autores: Cícero Ferreira não só tinha laços de parentesco com Carlos Chagas, mas era casado com Laura Chagas, prima de Carlos. Será que os opositores de Chagas e da nova Faculdade sabiam disso?

Recebi de Yone Gonzaga da Fonseca o livro "História de Oliveira" (1961), escrito por seu esposo, o pesquisador, erudito e poeta Luiz Gonzaga da Fonseca. Nele e nos textos de Cid Rebelo Horta, em "Famílias governamentais de Minas" (1956); de Paulo Pinheiro Chagas, em "Este velho vento da aventura" (1977); e de Pedro Nava, no opúsculo "1ª Ferreirada" (reunião da família Ferreira, 1982) e nas suas memórias conheci o que há de oliveirense na personalidade e na genialidade de Carlos Chagas.

Diz Cid Rebelo Horta: "a família Chagas foi, com os Ribeiros, com os quais desde cedo se aparentou, a fundadora de Oliveira, ali dominando desde então". Ligaram-se daí aos Lobatos, Pinheiros, Assis e Castros, de que resultaram políticos em evidência estadual e nacional: João Evangelista de Faria Lobato, no senado imperial; João das Chagas Lobato, deputado geral; Carlos Justiniano das Chagas, constituinte republicano e senador; e os Pinheiros Chagas, daí em diante (Djalma Pinheiro Chagas, Carlos Pinheiro Chagas, Armando Pinheiro Chagas e Paulo Pinheiro Chagas). O posicionamento das famílias oliveirenses no final do Império foi assumido por José das Chagas Andrade, como conservador, João Ribeiro da Silva, como liberal, bem assim José Ribeiro, José das Chagas Lobato e Carlos Justiniano das Chagas, como ativistas pró-República. O querido poeta Belmiro Braga acrescentou: "Bendigo as ditosas plagas, / Berço de honrados mineiros, / Terra dos Castros, dos Chagas, / Dos Lobatos, dos Ribeiros / ... / Costas Pereira, Diniz / Bernardes, Mouras, Andrades, / Pinheiros, Olímpio, Assis, / Mendes, Leites, mil saudades!" Eis aí um lado que investigo, o qual, somado aos posicionamentos do sul-mineiro, senador e ministro Fernando Lobo Leite Pereira, sogro de Carlos Chagas, e do jogo da política do café-com-leite, deve ser considerado na análise da sórdida campanha contra o gigantesco feito do cientista mineiro.

Recebi do bom-sucessense Osvaldo Carvalho Monteiro, pugnaz advogado e admirável erudito, preciosos dados longamente coligidos pelas famílias Monteiro e Ribeiro, de Bom Sucesso e região. Entre eles, há importante documento, que é a árvore genealógica elaborada pelo capitão Elpídio Gonçalves Costa, pai do célebre dermatologista Osvaldo Costa. Traça a origem dos Monteiros, segundo a qual os dois Osvaldos (Costa e Monteiro) são parentes, sendo descendentes comuns de gente fidalga da Espanha que se refugiou em Minas, cedo consorciada com os Ribeiros da Silva e com os Resendes, ligados às cidades de Oliveira, Bom Sucesso, Itapecerica, Passa Tempo, Entre Rios de Minas, Resende Costa (Lage) e Lagoa Dourada.

Só assim se desvenda a providencial tecitura genealógica e a feliz amálgama humana que levou Cícero Ferreira (Cícero Ribeiro Ferreira Rodrigues é seu nome completo) ao casamento com sua prima Laura das Chagas Ferreira. Com ela, tornou-se possível que a prima do descobridor da doença de Chagas se matrimoniasse com o institucionalizador da primeira Faculdade de Medicina de Minas.

Assim, a ligação dessa Faculdade com os Chagas é assinalável desde sua fundação e, somada ao caso Berenice, se estende na irradiação da citada fraterna amizade entre Carlos Pinheiro Chagas e Baeta Viana. Vale insistir que esses dois colegas, que se tratavam mineiramente de Carleto (Carlos Pinheiro Chagas) e Juca (José Baeta Vianna), além de sua importância na história de nossa Ciência e Educação, foram personagens políticas durante e após o movimento de 1930. Faço um estudo inspirado em Nava, em que verifico a presença, no erguimento dessa Faculdade, de regiões, cidades e famílias de Minas, cabendo a Oliveira e a Bom Sucesso excepcional papel.

Se considerarmos que Gonzaga da Fonseca, na epígrafe de seu livro, disse que Oliveira, berço de Carlos Chagas, é a encruzilhada de Minas, que Diogo de Vasconcelos declarou que Ibituruna, vizinha de Bom Sucesso, esta berço de Cícero Ferreira, foi o primeiro núcleo urbano de Minas e que nessas montanhas as vertentes do Prata e do São Francisco apontam em vértice para os Céus, é necessário que os cidadãos dessa abençoada região tenham consciência de que, por essa encruzilhada, por esse núcleo e por esse altiplano perpassa um meridiano fundamental da história mineira. Daí que as façanhas de Carlos Chagas e de Cícero Ferreira devem ser evocadas conjuntamente, como decorrências proféticas de uma grandeza que é exclusiva de Minas e de mais ninguém.

 

* Comemoração do Centenário da Doença de Chagas