RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 19. 1

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Educação Médica

Analogias em medicina - parte III

Medicine analogies - part III

José de Souza Andrade Filho

Patologista, professor de Patologia na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, ex-professor de Patologia Geral da UFMG, membro da Academia Mineira de Medicina

Endereço para correspondência

José de Souza Andrade Filho
Praça Carlos Chagas, 55/1502
Belo Horizonte - MG CEP 30170-000

Instituição: Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais

Resumo

Trata-se da uma compilação de verbetes que, por analogia, passaram a ser utilizados como termos das diversas especialidades médicas. Essa compilação vem sendo efetuada ao longo dos anos de exercício das atividades de professor e de anatomopatologista. Os verbetes estão organizados em ordem alfabética e, devido ao seu número, a publicação dar-se-á em três partes, sendo todas completas.

Palavras-chave: Medicina; Educação Médica; Terminologia.

 

INTRODUÇÃO

Várias locuções e termos comparativos estão espalhados nas diversas especialidades médicas, sendo criados em grande velocidade com o progresso da ciência. Este trabalho tem sido de investigação e pesquisa, há cerca de 10 anos, na tentativa, sempre que possível, de fazer uma enxertia em cada tema de modo a torná-lo mais interessante e atraente.

Barril no tórax

Barril ou tonel é grande recipiente de madeira que lembra um cilindro abaulado, formado por dois tampos planos e aduelas unidas e presas por arcos metálicos. Destina-se a conservar ou transportar algo, especialmente líquidos, como bebidas e petróleo. Atualmente, pode ser feito de metal ou de plástico.

- A relação entre os diâmetros ântero-posterior e lateral no tórax humano normal é de 1:2, ou seja, o diâmetro lateral é duas vezes maior que o ântero-posterior. Em doenças que cursam com obstrução crônica ao fluxo aéreo, há aumento do diâmetro torácico ântero-posterior. A relação entre este diâmetro e o lateral tende a ser 1:1 e o tórax vai adquirindo uma forma globosa e arredondada. Pode ocorrer na bronquite crônica e no enfisema (DPOC/ doença pulmonar obstrutiva crônica), especialmente em tabagistas pesados, na asma crônica e até na bronquiectasia difusa. A configuração globosa decorre da hiperinsuflação pulmonar que acompanha essas doenças e do aumento da resistência ao fluxo aéreo ou da perda da força elástica e retrátil dos pulmões, especialmente no enfisema. No quadro de enfisema predominante, sobretudo em fumantes, os pulmões estão hiperinflados, provocando aumento do diâmetro ântero-posterior da caixa torácica e abaixamento da cúpula diafragmática, em posição inspiratória constante, como se vê em radiografias do tórax. Este aspecto motivou a denominação de tórax em tonel ou em barril (ingl. barrel-chest ou barrel-shaped thorax). Os pacientes são conhecidos como "sopradores róseos" (ingl. pink puffers), pois apresentam aumento da frequência respiratória e têm dispneia acentuada com níveis normais de pCO2, sem cianose. Quando predomina a bronquite, ocorre retenção de CO2 (hipercapnia), hipoxemia e cianose, quando os pacientes recebem a alcunha de "azuis pletóricos" (ingl. blue bloaters).

- Muito conhecido pelos profissionais da parasitologia e útil para o seu reconhecimento: o ovo do T. trichiura tem a forma de um barril microscópico (ingl. barrel-shaped ovum) e mede 50-53 mícrons por 22-23 mícrons.

Bolha de sabão

É a que se forma soprando por um canudo cuja outra extremidade imergiu-se em água com sabão ou similar ou balançando-se no ar um aro de arame com uma película da solução saponácea. As crianças gostam muito.

Muitas doenças e/ou lesões ósseas, quando estudadas à radiologia, enquadram-se na expressão comparativa imagem em bolhas de sabão. Trata-se de aspecto de comprovado valor propedêutico. A explicação para a imagem bolhosa, na maioria dos casos, baseia-se na presença de osteólise provocada pela doença de base e na preservação de algumas trabéculas ósseas de permeio, ou seja, "lesão osteolítica com trabeculações". Em certos casos, coexiste expansão do segmento ósseo afetado, reforçando a aparência bolhosa. O aspecto radiológico de bolhas de sabão (ingl. soap-bubble appearance) pode ser visto: no tumor de células gigantes (osteoclastoma); no mieloma múltiplo e solitário, principalmente quando na pelve, costelas e escápulas; no fibrossarcoma ósseo; nos angiomas do esqueleto; no mixoma da mandíbula; nos cistos ósseos; no adamantinoma e/ou ameloblastoma; em certos casos de doença de Paget; em algumas metástases osteolíticas, como de carcinoma da tireoide, etc.

- Na criptococose, principalmente em pacientes imunodeprimidos, os fungos não provocam praticamente reação inflamatória, de modo que massas gelatinosas do fungo crescem nas meninges e em outros locais, produzindo as chamadas lesões em bolhas de sabão.

Casas de força

A maior parte da energia exigida pela célula para manter suas várias atividades metabólicas é liberada de nutrientes, pelo processo de oxidação intracelular. Este processo ocorre na mitocôndria (gr. mitos: fio, filamento + chondria: grão, grânulo), termo introduzido por Carl Benda, médico alemão, em 1902.

As mitocôndrias são organelas membranosas em forma de salsicha ou charuto, contendo as cadeias enzimáticas responsáveis pelo metabolismo respiratório. Essas enzimas catalisam reações que fornecem à célula o importante composto rico em energia, o trifosfato de adenosina (ATP), que permite que a célula realize trabalhos mecânico, osmótico, elétrico e químico. Como as mitocôndrias produzem ATP e são responsáveis pelo suprimento da maior parte de energia celular, elas são consideradas casas de força da célula (ingl. cells' power sources). Tal similitude refere-se ao fato de as mitocôndrias produzirem ATP com a energia liberada na oxidação de moléculas orgânicas, isto é, análogas ao setor de uma usina que abriga a turbina e o gerador.

Embora raramente, a usina mitocondrial pode sofrer "apagões", resultantes do desgoverno ou de algum elemento corruptor, como se verifica nas chamadas mitocondriopatias. Estas são um grupo de doenças que se caracterizam por alteração estrutural, bioquímica ou genética, causadas por mutações localizadas nos genes nucleares ou mitocondriais. Curiosamente, as mitocondriopatias são transmitidas unicamente por herança materna, pois apenas o núcleo do espermatozoide penetra no óvulo durante a fecundação, ficando o seu citoplasma e suas mitocôndrias alijados e presos ao invólucro ovular. É digna de registro a presença dessas extraordinárias organelas em todos os seres eucariotos.

Doença da Toca da Raposa

A raposa (Vulpes vulpes) é mamífero da família dos canídeos, de hábitos noturnos, muito arisca e que caça continuamente do crepúsculo ao amanhecer. Para se abrigar, cava sua própria toca ou usa tocas abandonadas de outros animais, como as do cachorro selvagem e texugos. A raposa-orelhuda, uma espécie de menor porte, pode ser proprietária de uma toca com sete entradas e com túneis de cerca de 3 m de comprimento e 1,5 m abaixo do solo.

Uma condição infecciosa da pele chamada pioderma fistulizante crônica e profunda, causada por anaeróbios, acometendo partes moles e com fístulas que atingem o subcutâneo e se aprofundam e correm a grandes distâncias sobre a fáscia muscular, é também denominada doença da toca da raposa (ingl. fox den disease). Trata-se de afecção inflamatória que atinge a pele, formando múltiplas fístulas e tratos sinusais no subcutâneo que foram comparados ao covil ou à toca de raposas. (Guerra RM, Rodrigo Portilho, Flávio, Gontijo, GT. Serv. Dermatologia, FM-UFMG). É doença rara, descrita pela primeira vez em julho de 1995 (Pyoderma fistulans sinifica (fox den disease): a distinctive soft-tissue infection.(Wittmann DH, Schein M, Seoane D et al. Clin Infect Dis. 1995 Jul;21(1):162-70). Esses autores relatam o diagnóstico e o tratamento de 10 pacientes do sexo masculino, que constou de antibioticoterapia e de ampla excisão cirúrgica em bloco até a fáscia muscular, incluindo todas as fístulas. Outras regiões anatômicas, como crurais e genitais, podem ser afetadas, como registra publicação mais recente de médicos de Nova York: Mega scrotum in pyoderma fistulans sinifica (fox den disease)..Margolis M, Schein, M. Surg Infec (Larchmt). 2000 Summer: 1(2): 149-51).

Grande Muralha da China

Trata-se de fortificação de cerca de 6.700 km, considerada uma das grandes maravilhas do mundo, estendendo-se de leste a oeste pelo norte da China. Como um gigantesco dragão, atravessa desertos, florestas, planaltos e montanhas. Com uma história de 2.000 anos, atualmente está destruída em alguns pontos. Entretanto, continua sendo importante atração turística.

A poroqueratose de Mibelli é dermatose rara, hereditária, autossômica dominante, cuja lesão inicial é pápula que, alargando-se, forma crista córnea periférica proeminente, circundando área central, normal ou atrófica. Inicia-se em qualquer idade e as lesões localizam-se, preferencialmente, nas extremidades, face e órgãos genitais, podendo ocorrer também nas mucosas bucal e genital. (Sampaio e Rivitti, Dermatologia. 1998, Artes Médicas). A placa circinada com a crista periférica elevada e apresentando um sulco na sua superfície contendo material queratótico foi comparada à Grande Muralha da China (ingl. The Great Wall of China effect). Este aspecto é considerado, por alguns autores, patognomônico da poroqueratose de Mibelli.

Pipoca

Do tupi: "grão de milho que, estalado ao calor do fogo, se abre em floco branco, e que se come borrifado com sal ou banhado em mel" (Antônio G. Cunha, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa).

O corpo humano de um adulto tem, em condições normais, aproximadamente 99% de cálcio no esqueleto e nos dentes sob a forma de fosfato básico de cálcio ou hidroxiapatita. A calcificação dos modelos cartilaginosos no embrião e na vida extrauterina é um processo normal e indispensável à formação do esqueleto.

Por outro lado, a calcificação ou mineralização patogênica, dita distrófica - independente dos níveis de cálcio e de fósforo no sangue - ocorre em diversos processos degenerativos e necrosantes, podendo estar presente em qualquer lesão antiga e também em neoplasias. É comum em placas ateromatosas (aterosclerose), em valvas cardíacas, em nódulos de Gohn (tuberculose "curada"), em infartos antigos, ao redor de parasitas mortos (cisticercos e outros) e em certos tumores benignos e malignos, como mioma, meningioma, câncer de mama, ovário, tireoide, etc. Por isso, a calcificação anormal assume valor propedêutico imensurável em radiologia, permitindo esclarecer e diagnosticar numerosas doenças.

A pipoca, pela sua cor branca e pelo seu aspecto lobulado, é utilizada em várias comparações radiográficas, obviamente em doenças que cursam com calcificação em algum momento de sua evolução. No estudo radiológico da mama (mamografia), é clássica a imagem de calcificação em pipoca (ingl. popcorn-type calcification) no fibroadenoma, tumor mamário benigno muito comum em mulheres jovens e que se manifesta como massa lobulada e bem circunscrita e, às vezes, com calcificação grosseira. O câncer de mama apresenta outro aspecto (microcalcificações). Em radiografia de tórax, uma massa de bordas lobuladas e calcificada, semelhante a uma pipoca é muito característica de hamartoma pulmonar, atualmente, considerado um verdadeiro tumor, porém de comportamento biológico benigno. A calcificação em pipoca pode ainda ser vista em outras pneumopatias e em outros órgãos, bem como em tumores cartilaginosos, como no encondroma e condrossarcoma e até mesmo na osteogênese imperfeita, doença hereditária resultante de defeitos na síntese do colágeno tipo I.

Pirulito lambido no esqueleto

Pirulito é espécie de caramelo cônico ou cone de mel escuro ou em forma de disco, solidificado na extremidade de um palito, por onde se pega para consumi-lo.

A imagem de pirulito lambido (ingl. licked candy stick appearance) refere-se ao quadro radiológico caracterizado pelo afilamento cônico das cabeças dos metacarpos, metatarsos, falanges ou clavículas, como resultado de perda óssea ou osteólise. A absorção óssea das falanges, sobretudo as distais (acroosteólise), provoca um adelgaçamento em forma de cone, cujo vértice aponta para a extremidade livre do dedo. Este quadro patológico-radiológico pode ser observado em doenças degenerativas e inflamatórias/infecciosas, como na artropatia psoriásica, na artrite reumatoide e na hanseníase (bas., em parte, em Resnick D. Diagnosis of bone and joint diseases. 3ª. ed. Philadelphia: WB Saunders; 1995).

Na hanseníase, as lesões neuropáticas músculoesqueléticas são muito mais frequentes do que aquelas provocadas diretamente pelo bacilo de Hansen. A cessação da função devido ao processo de desnervação motora pode associar-se à atrofia e à absorção do osso esponjoso e ao desenvolvimento de atrofia óssea concêntrica. O resultado é um aspecto afilado e cônico das extremidades ósseas, mais evidentes nas falanges distais, comparado a um pirulito lambido (ingl. licked candy stick). Nos pés, ocorre reabsorção progressiva dos metatarsos e das falanges proximais. Nas mãos e nos pés, surge também reabsorção das falanges distais, que eventualmente resultam em perda das falanges (mutilações), especialmente quando o processo é complicado por infecção secundária.

Outras afecções que podem apresentar o mesmo quadro radiológico são a doença de Gorham - osteólise essencial - nos ossos longos, tornando o osso residual afilado, e o hiperparatireoidismo, principalmente na sua forma primária, com alterações mais marcantes também nas últimas falanges das mãos.

Queijo-suíço ou emmenthal

Trata-se de queijo de leite de vaca de massa cozida e compacta, casca brilhosa e amarela, de textura elástica, com muitos buracos de tamanhos diversos, denominados "olhos" e, originalmente, feito na Suíça. O nome emmenthal tem origem no vale do Emme, região de Berna, onde foi produzido pela primeira vez há cerca de 700 anos. São usados três tipos de bactérias na produção do emmenthal: Streptococcus thermophilus, Lactobacillus e Propionibacter shermani. Esta última consome o ácido lático produzido pelas outras bactérias e libera dióxido de carbono, que forma lentamente as bolhas, de 1 a 4 cm de diâmetro, características desse tipo de queijo.

São muitas as comparações patogênicas baseadas especificamente no aspecto esburacado do queijo-suíço.

 


Figura 1 - Papilomatose juvenil (doença em queijosuíço). Rosai, J. Surg. Path. 2004, Mosby.

 

- Na gangrena gasosa a absorção de enzimas elaboradas pelos clostrídios e a invasão sanguínea pelos mesmos provocam lesões diversas e formação de bolhas por todo o corpo, sobretudo no fígado, configurando o aspecto de queijo-suíço.

- Na genitália feminina são comuns os pólipos endometrial e endocervical, bem como a hiperplasia glandular do endométrio, contendo cistos de tamanhos diversos, que podem ser vistos a olho nu ou ao microscópio, lembrando também os buracos do emmenthal.

- O carcinoma adenoide cístico de glândulas salivares maiores e menores, composto de células pequenas, em cordões ou num padrão ductiforme, cuja porção central pode conter material mucoide, produz o aspecto de queijo-suíço ou de favos de mel.

- Coração. Os defeitos de septo ventricular são classificados de acordo com o tamanho e a localização, variando desde lesões puntiformes até aquelas suficientemente grandes para criar, virtualmente, um ventrículo comum. Cerca de 90% envolvem a região do septo membranoso. O restante situa-se abaixo da valva pulmonar. Embora mais frequentemente único, o defeito septal ventricular na porção do septo muscular pode ser múltiplo, quando é denominado septo em queijo-suíço (Ingl. swiss-cheese septum).

- Múltiplos cisticercos no encéfalo às vezes emprestam aspecto de queijo-suíço ao cérebro, com vesículas observadas na superfície de corte e também na superfície externa dos hemisférios cerebrais.

- A papilomatose mamária juvenil ocorre mais em mulheres jovens (média de idade 19 anos) e caracteriza-se por formação nodular com várias lesões císticas ao exame mamográfico e macroscópico, por isso denominada também de doença em queijo-suíço (Ingl.swiss-cheese disease). Ao estudo microscópico observa-se hiperplasia epitelial, cistos, com ou sem metaplasia apócrina, e áreas de adenose.

- Há ainda a rara síndrome ou displasia cartilaginosa em queijo-suiço de Kniest (W. Kniest, médico alemão que a descreveu pela primeira vez, em 1952). É forma congênita de condrodistrofia com nanismo acentuado, cifoescoliose, perfil achatado da face, palatosquise, nariz em sela, hipertelorismo, articulações alargadas e outras anormalidades esqueléticas, miopia, descolamento da retina e distúrbios da audição. A inteligência é normal. Trata-se de colagenopatia com mutação do colágeno tipo II. O estudo microscópico revela tecido cartilaginoso friável, irregularidades no tamanho dos condrócitos e matriz cartilaginosa perilacunar esponjosa, com condrócitos ocupando matriz muito vacuolada, configurando orifícios ("cartilagem esburacada"). Este aspecto inspirou a comparação com o queijo-suiço, sendo essencial para o diagnóstico da síndrome de Kniest (Ital. sindrome della cartilagine a formaggio svizzero; Ingl. swiss-cheese cartilage syndrome).