ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Segredos e impasses na gestão de um hospital público
Secrets and impasses in a public hospital management
Gastão Wagner de Sousa Campos1; Susana Maria Moreira Rates2
1. Médico. Professor doutor titular da UNICAMP/SP
2. Médica especialista em Administração Hospitalar. Superintendente do HOB
Suzana Maria Moreira Rates
Rua: Formiga, 50 - Bairro: São Cristóvão
Belo Horizonte - MG CEP: 31110-430
Instituição: Hospital Municipal Odilon Behrens / HOB - Superintendência
Resumo
Este trabalho traz uma breve análise dos modelos tradicionais dos hospitais públicos de urgência que, em geral, organizam a gestão e os processos de trabalho de forma centralizadora e por funções. Ressalta problemas comuns a esses hospitais, como a superlotação das urgências e a deficiência de vínculos, seja internamente, seja de um ponto de vista mais macro como o da sua interação em rede. A partir daí, insere diretrizes sobre uma nova forma de gestão que estimula organizações horizontais com Unidades de Produção e definição clara de responsabilidades das equipes de referência e de apoio matricial. O objetivo é estimular um debate sobre um modelo que busca ampliar a capacidade de análise e de intervenção dos sujeitos (gestores, trabalhadores e usuários), o estabelecimento de novas relações e compromissos e a integralidade da rede.
Palavras-chave: Gestão em Saúde; Administração Hospitalar; Hospitais Públicos; Hospitais de Emergência; Serviço Hospitalar de Emergência; Serviços Médicos de Emergência.
INTRODUÇÃO
Muitos desafios se apresentam para a organização da assistência à saúde com resultados eficazes e eficientes. Mas que resultados são estes? Sob qual ótica essa eficiência é avaliada? Do gestor? Do trabalhador? E o usuário, como participa dessa avaliação?
Os hospitais modernos, ainda que com seus conhecimentos técnicos, científicos e tecnológicos, trazem desafios organizacionais da assistência e do ensino acrescidos da crescente necessidade de financiamento.1
A superlotação das urgências é um problema comum a muitos prontos-socorros. Um estudo desenvolvido por O'Dwyer et al.2 analisou nove hospitais com prontos-socorros e constatou que o problema de superlotação era comum. As causas dessa superlotação são a facilidade de acesso geográfico e baixa resolutividade da atenção básica.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2006, são 7.155 os estabelecimentos com internação (incluindo públicos e privados) que possuem unidades de urgência. Em Belo Horizonte, a produção de consultas de urgências realizadas todos os anos equivale ao atendimento de 36% do total de sua população.3
Muitos usuários buscam nos serviços de urgência acesso à atenção especializada e às tecnologias médicas. A incorporação tecnológica e de especialidades trouxe grande potencial de resolutividade para a assistência.4 Esse crescimento da oferta de equipamentos médicos no País não acontece de forma uniforme pelas diferentes regiões3. As regiões Norte e Nordeste apresentam índices inferiores à média nacional, a região Sudeste acima e as regiões Sul e Centro-Oeste próximas da média nacional.3
Outras causas destacadas no estudo de O'Dwyer et al.2 dizem respeito à diversidade de vínculos dos trabalhadores (alguns temporários), à insuficiência de financiamento, ao gerenciamento precário de recursos e planejamento.
As dificuldades para internações de pacientes, pela insuficiência de leitos de alta complexidade ou para pacientes crônicos, é outra questão abordada. O IBGE salienta redução de 18,6% de leitos hospitalares de 1992 até 2005 no Brasil.3
É uma tendência mundial que os hospitais assumam cada vez mais a responsabilidade por pacientes críticos e complexos5. A idéia do hospital como centro de cuidados faz parte do passado, ainda que seja comum a dificuldade para "desospitalizar" moradores de rua, idosos solitários, portadores de necessidades especiais, entre outros. É fato que muitos países têm investido em programas de cuidados domiciliares que, além de mais baixos custos, possibilitam maior inserção do paciente no seu ambiente familiar.
Não é possível, atualmente, pensar um hospital como definidor de sua própria missão, seja por questões de mercado, seja pela idéia de integração em redes. Na lógica da integralidade em redes, o hospital torna-se referência para unidades de menor complexidade ou interage com outros hospitais para potencializar a capacidade dessa rede.
Quanto ao modelo de gestão, o que se vê, em geral, são organizações burocráticas, autoritárias e centralizadoras, com um diretor geral e o corpo clínico organizado em departamentos.1
A assistência é impessoal e fragmentada. Essa fragmentação já é verificada pela organização das jornadas de trabalho dos profissionais e se dá, de maneira geral, por plantões de 12 horas. O usuário não consegue saber quem é o responsável pelo seu cuidado.6 O paciente é avaliado cada dia por um médico, um enfermeiro e técnicos diferentes e, até em um mesmo plantão, é comum que diferentes médicos o avaliem.
Se considerarmos um hospital de maior porte, com diferentes especialidades, essa situação pode ser ainda mais crítica. A indefinição de responsabilidades e vínculos dos pacientes com os profissionais propicia o retrabalho, o aumento de solicitações de exames e de solicitações de interconsultas que - pela forma burocrática e desvinculada entre os profissionais que as solicitam e aqueles que as realizam - só atrasam o diagnóstico e a terapêutica.
Um serviço de saúde organizado exclusivamente no poder dos profissionais e sem estabelecimento de vínculos tende a gerar descompromisso, fragmentação do trabalho, insatisfação dos trabalhadores e não são potentes para enxergar a singularidade dos sujeitos e estabelecer a integralidade da assistência. Essa organização do trabalho em hospitais de urgência nem sempre possibilita assegurar a reabilitação da saúde do usuário e provoca alienação aos profissionais da saúde que não vislumbram os resultados do seu trabalho.
Três são as corporações com maior representação nos hospitais: a dos médicos, a da enfermagem e a do corpo administrativo.
Geralmente, a dos médicos representa o poder central que busca, segundo Cecílio7: "uma relação de autonomia em relação à organização, rejeitando qualquer processo gerencial que coloque em risco seu statu quo". Ainda segundo Cecílio:
O corpo médico funciona como cliente do hospital, no sentido de que vê tanto a enfermagem como o corpo administrativo como fornecedores de insumo para seu trabalho.
As enfermeiras são as gerentes efetivas das unidades assistenciais, embora as "chefias" sejam, em geral, os médicos. E o corpo administrativo que detém os recursos estratégicos para o cotidiano da vida da organização.
Não se pode negar os conflitos advindos dos interesses e poderes diferenciados e a conseqüente fragmentação da assistência ainda que, contraditoriamente, todas as categorias defendam a missão de prestar assistência humanizada e de qualidade.
Lembrando Benevides e Passos8: "transformar o modo de construir políticas públicas impõe o enfrentamento de um modus operandi fragmentado e fragmentador, marcado pela lógica do especialismo".
CONSTRUINDO UM NOVO MODO DE GESTÃO
A Política Nacional de Humanização (PNH) do Ministério da Saúde (MS) tem por objetivo a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde, norteados por valores como a autonomia, o protagonismo dos sujeitos e a co-responsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários, a participação coletiva no processo de gestão e a indissociabilidade entre atenção e gestão.9
Em geral, organizações estruturadas por função apresentam dificuldades para atender às necessidades dos usuários. Já a abordagem de construção do trabalho por processos, permeados pelos apoios administrativos e logisticos, potencializam resultados mais eficientes, no caso, a promoção à saúde.
A co-gestão privilegia organizações horizontais com Unidades de Produção e definição clara de responsabilidades das equipes de referência e de apoio matricial.
A co-gestão amplia a capacidade de análise e de intervenção dos sujeitos → co-produção → estabelecimento de novas relações com contratos de metas → contratos de gestão.
Unidade de Produção é o espaço onde o processo de trabalho é construído e desenvolvido por equipes multiprofissionais e não mais por um agrupamento de profissionais e pode mudar positivamente os resultados para os usuários e melhorar a satisfação dos trabalhadores que passam a enxergar os frutos do seu trabalho. A estruturação dessas e o estabelecimento de equipes de referência facilitam a reorganização dos processos de trabalho, da lógica gerencial e a pactuação pelos diferentes atores.
Equipes de referências passam a se responsabilizar pelo cuidado integral ao doente, cuidando de todos os aspectos de sua saúde, elaborando projetos terapêuticos onde o olhar de cada membro da equipe possibilita ampliar as visões do sujeito e seu projeto terapêutico.9 Ou seja, todo usuário passa a ter um profissional (ou equipe) de referência a quem se dirigir, ante suas demandas, como afirma Onocko10.
Segundo Campos e Domitti11:
A equipe de referência é um rearranjo organizacional que busca deslocar o poder das profissões e corporações de especialistas, reforçando o poder de gestão da equipe interdisciplinar" [...] "Que objetiva produzir um espaço em que ocorra intercâmbio sistemático de conhecimentos entre as várias especialidades e profissões" e [...] pretende assegurar maior eficácia e eficiência ao trabalho em saúde, mas também investir na autonomia dos usuários.
As equipes de referência contam com o suporte das equipes de apoio matriciais, também organizadas em jornadas diárias, responsáveis pelo suporte técnico-pedagógico. De forma compartilhada, as equipes estabelecem diretrizes clínicas que passam a nortear o trabalho e definir responsabilidades de cada integrante das equipes. Segundo Campos12, o apoio matricial tem um núcleo distinto daquele dos profissionais de referência; deve agregar conhecimentos e aumentar a capacidade da equipe em resolver problemas de saúde.
A definição das equipes de referência possibilita a ampliação da clínica propondo uma mudança de paradigma para além da tradicional terapêutica com fármacos. Um novo conceito, que combine a objetividade da clínica e da epidemiologia com a singularidade da história dos sujeitos, grupos e coletividades.
Campos13 avalia que a clínica ampliada reconhece os limites do conhecimento dos profissionais de saúde e das tecnologias por eles empregadas e busca outros conhecimentos em diferentes setores (intersetorialidade), combina semiologia e indicadores de risco, de morbidade e mortalidade com escuta à demanda dos sujeitos; amplia diagnóstico e terapêutica da racionalidade clínica considerando interesses e desejos dos usuários; busca a autonomia do sujeito. Autonomia como capacidade de compreender e de agir sobre si mesmo e no contexto no qual se insere.
Mattos14 traduz como integralidade a capacidade de resposta que a organização dos serviços de saúde deve ter na abordagem não só das doenças, mas também de perceber as necessidades da população atendida.
Sem dúvida, reconhecer o que o usuário, ainda que subjetivamente, considera como o necessário para o restabelecimento ou promoção de sua saúde, pode parecer simples, mas algumas vezes incompreensíveis para a equipe, seja pelas diferenças culturais, religiosas, raciais, políticas de cada um ou pela formação centrada exclusivamente nos conhecimentos técnicos. O reconhecimento dos diferentes saberes técnicos pela equipe, por si só, já é um grande desafio. Porém, a falta de uma área de intersubjetividade nos grupos, como Onocko10 ressalta, coloca toda a responsabilidade dos acertos e desacertos no outro. Isto é ainda uma questão freqüente. Por isso, a necessidade de estabelecer contratos.
Campos15 propõe uma metodologia para esses acertos: o Método da Roda. Esta nova racionalidade na gestão de coletivos reconhece a multiplicidade de lógicas e procura lidar com esta polaridade dos coletivos, tomando os trabalhadores como "sujeitos sociais". A gestão participativa cria uma rede de espaços coletivos para a co-gestão do trabalho em saúde: conselhos, colegiados, etc. Sujeitos com interesses, desejos e valores diferentes com capacidade de construir um pensar e agir coletivo capazes de enfrentamento de conflitos com pactuações de compromissos.
Os contratos indicam caminhos para co-construir as relações entre os trabalhadores e as instituições, apesar de diferenças de interesses e ideologias que possam existir. São construídos por meio de processos de cogestão e da prática política tomada em sentido amplo, com pactuação de compromissos e definição de metas.
CONCLUSÕES
Os desafios que se apresentam para aqueles que buscam para a organização da assistência à saúde com resultados eficazes e eficientes são gigantescos.
Do ponto de vista de sua organização interna, os hospitais com desenhos mais verticais e centralizadores não estimulam a capacidade de construir um pensar e agir coletivo com cada uma das pessoas envolvidas e inseridas no processo social, político e subjetivo. Tendem a trabalhar com os interesses individuais e desconsideram os desejos, desautorizam iniciativas não previsíveis.
A co-gestão convida os grupos à reflexão: críticas generosas para mudanças inevitáveis. Desenvolve mais capacidade reflexiva, mais capacidade de interferir sobre os fatores estruturados externos e internos (culturais, familiares, de personalidade e de caráter).
A organização em Unidades de Produção e a composição das equipes possibilitam o desenvolvimento do planejamento e pactuação de metas a partir de contratos internos de gestão.
A clínica ampliada, nos seus aspectos mais amplos, propõe construções de projetos terapêuticos singulares que valorizem os saberes dos profissionais (equipes) e também do usuário. O reconhecimento e respeito pelos conhecimentos do usuário e o encontro harmonioso dos saberes das diferentes categorias profissionais, atividades aparentemente simples, exigem disponibilidade para o repensar e recriação de toda a clínica.
O que não podemos é incorrer no erro de estabelecer uma forma única de implementação dessa organização, co-gestão, sem considerar as especificidades regionais e locais dos diferentes hospitais de urgências e emergências.
Também não se resolve o problema das urgências rotulando o paciente de menos gravidade como "inadequado ao serviço de urgência", tendo como única ação "encaminhá-lo" para outra unidade. Os hospitais assumem importante papel no desenho da rede. O caminho que se vislumbra é o da construção coletiva que potencialize a integralidade da rede com pactuações claras e transparentes para o objetivo maior que é a produção de saúde e vida.
REFERÊNCIAS
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2. O'Dwyer G, Oliveira SP, De Seta MH Avaliação dos serviços hospitalares de emergência do Estado do Rio Janeiro. Ciênc Saúde Coletiva. 2008;13(5):1637-48.
3. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Caderno de Estatísticas do IBGE. Brasília: IBGE; 2006.
4. Teixeira JMC. Sistemas médicos, técnicos e administrativos do hospital moderno: sua ordenação. In: Gonçalves EL, organizador. O Hospital e a visão administrativa contemporânea. São Paulo: Pioneira; 1983. p.19-51.
5. Silva KL. Internação domiciliar no Sistema Único de Saúde. Rev Saúde Pública. 2005;39(3):391-7.
6. Rollo AA. É possível construir novas práticas assistenciais no hospital público? 10. In: Merhy EE, Oncko R. organizadores. Agir em saúde. São Paulo: Hucitec; 1997. cap.10, p. 321-39.
7. Cecílio LCO. O desafio de qualificar o atendimento prestado pelos hospitais públicos. In: Merhy EE, Oncko R. organizadores. Agir em saúde. São Paulo: Hucitec; 1997. cap. 9, p.293-319
8. Benevides R, Passos E. Humanização na Saúde: um novo modismo? Interface Com Saúde Educ. 2005;9(17):389-406.
9. Brasil. Ministério da Saúde. Cartilha-Equipe de referência e apoio matricial. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. HumanizaSUS. Brasília: Editora MS; 2004.
10. Onocko R, Campos GWS. A Gestão: espaço de intervenção, análise e especificidades técnicas. Planejamento e Razão Instrumental. In: Campos GWS. Saúde Paidéia. 3ª ed. São Paulo: Hucitec; 2007. p.122-49.
11. Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad Saúde Pública. 2007;23(2):399-407.
12. Campos GWS. Clínica e Saúde Coletiva compartilhadas: teoria Paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In: Campos GWS, Minayo MC, Akerman M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; 2006. v.1, p.197-9
13. Campos GWS. Equipes de referência e apoio especializado matricial: um ensaio sobre a reorganização do trabalho em saúde. Ciênc Saúde Coletiva. 1999;4(2):393-404.
14. Mattos RA. Os sentidos da integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem serem defendidos. In: Mattos RA, Pinheiro R, organizadores. Os Sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde na atenção e no cuidado à saúde. 6ª ed. Rio de Janeiro: IMS/UERG- CEPESC- Abrasco; 2006.
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