RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 18. 4

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Relato de Caso

Síndrome de Fournier e câncer do testículo: apresentação de caso

Fournier's syndrome and testicular cancer: case report

Marco Olímpio Marra1; Alcino Lázaro da Silva2; Renato Riera Toledo3

1. Médico-Cirurgião Geral do Serviço de Urgência do Hospital João XXIII
2. Professor Emérito da Faculdade de Medicina da UFMG
3. Pós-Graduando em Cirurgia da Faculdade de Medicina da UNI-Fed-MG

Endereço para correspondência

Alcino Lázaro da Silva
Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG
Rua Guaratinga, 151 Bairro: Sion
Belo Horizonte - MG CEP: 30315.430

Instituiçao: Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

Resumo

Apresenta-se o caso de um paciente que desenvolveu câncer do testículo com metástase à distância em torno de cinco meses depois de ter sido internado, tratado e curado de síndrome de Fournier. Esse paciente evoluiu para o óbito sem qualquer oportunidade terapêutica, pela alta malignidade da evolução tumoral.

Palavras-chave: Testículo/patologia; Doenças Testiculares; Gangreana de Fournier; Neoplasias Testiculares; Agente Cancerígeno.

 

INTRODUÇÃO

A síndrome de Fournier (1883) é uma doença que pode ser primária ou secundária a infecções que ocorrem próximas do escroto. Entre estas, destacam-se urogenitais, coloproctológicas ou perineais, provocadas por associação de bactérias que atuam em sinergismo, causando inicialmente uma vasculite.

O câncer dos testículos atinge 0,5% da população masculina (1/80.000). É o tumor sólido mais freqüente na faixa etária de 20 a 34 anos e é raro em negros.1 Ele tem como fatores de risco2,3,4 as afecções seguintes:

Criptorquia

Entre todos os cânceres gonadais masculinos, 12% surgem em testículos criptorquídeos, sendo, portanto, a principal causa.2,4 Nestes, há 40 vezes mais possibilidade de se malignizarem quando comparados àqueles que migraram corretamente para o escroto. Essa transformação é ainda cinco vezes mais freqüente no testículo localizado no abdome em comparação com a localização deste no canal inguinal. Deve ser ressaltado que a orquipexia pré-puberal não previne o subsequente desenvolvimento de malignidade no testículo com defeito de descida até o escroto.5 Há dados que sugerem a possibilidade de predisposições genéticas ou eventos intra-uterinos no nível embrionário, resultando em anormalidades urogenitais graves, entre elas o defeito de descida gonadal, e até a presença de células germinativas neoplásicas. Vale dizer que o aumento da incidência de criptorquia coincide também com o aumento na incidência do câncer testicular.

Estrogênio Exógeno

Quando esse hormônio é usado durante a gestação por mães de pacientes com câncer do testículo, parece não haver nenhuma dúvida quanto à sua carcinogênese. Já se constatou que homens nascidos de mães tratadas com dietilestilbestrol (DES), estrógeno sintético não esteroidal, tiveram anormalidades de desenvolvimento do aparelho urogenital, incluindo hipoplasia testicular e defeito de migração. Tumores gonadais em cobaia podem ser produzidos, experimentalmente, pela administração de estrógenos3;

Politelia (mamilos extranumerários)

Esta é outra anomalia de desenvolvimento que tem sido identificada como tendo associação com câncer testicular, em torno de 4,5% dos homens portadores da mesma.4

Não há, até o momento, documentações comprobatórias relacionando orquite viral, exposição à radiação e trauma testicular, síndrome de Fournier, como fatores de risco para o desenvolvimento de câncer no testículo.4

Os objetivos deste artigo são a apresentação e discussão sobre um paciente que desenvolveu câncer do testículo depois da síndrome de Fournier.

 

APRESENTAÇÃO DO CASO

Paciente J.A.S. masculino, 63 anos, casado, jardineiro, natural e procedente de Belo Horizonte, tabagista inveterado, com alcoolismo associado, sem história de diabetes mellitus, internado em maio de 1992 com síndrome de Fournier. Havia queda do estado geral e sinais de choque. Durante a sua internação adotaram-se as seguintes condutas:

correção do estado de choque por meio de hidratação venosa e transfusões de derivados do sangue;

esquema tríplice de antibacterianos;

desbridamentos cirúrgicos consecutivos com perda total do escroto (Figura 1);

 


Figura 1 - Perda total do escroto com exposição testicular bilateral.

 

curativos diários;

correção plástica da extensa área acometida.

Em relação a esta última, cabe ressaltar que a perda total do escroto foi inicialmente corrigida pela reconstituição períneo-escrotal com retalho fáscio-cutâneo medial da coxa. Devido à perda parcial desse retalho, os testículos foram recobertos pela técnica de orquipexia femoral bilateral.

Nos controles ambulatoriais subseqüentes à sua alta hospitalar, o paciente queixava-se de discreta dor e desconforto nos testículos. Depois de cinco meses, foi reinternado com estado geral debilitado. Na gônada direita, previamente implantada na raiz da coxa, havia uma ferida úlcero-vegetante, além de dois tumores palpáveis e distinguíveis no hemiabdome direito.

O enema opaco afastou foco neoplásico no TGI baixo e a biopsia feita na lesão testicular diagnosticou carcinoma embrionário testicular. A ultra-sonografia abdominal sugeriu hepatomegalia acentuada com formações sólidas difusas nos lobos hepáticos D e E, que poderiam corresponder a metástases, além de outro tumor sólido na pelve, à direita

O paciente evoluiu para o óbito dois dias depois desta última internação.

 

DISCUSSÃO

O paciente evoluiu positivamente em relação ao quadro clínico agudo da síndrome de Fournier. No controle imediato e tardio surgiu um outro quadro clínico do tipo consumptivo. A nova situação decorreu do fato do testículo ter sofrido um processo degenerativo neoplásico com características invasivas, a ponto de levar o paciente ao óbito, cinco meses depois do tratamento da primeira afecção.

A literatura consultada relacionada aos agentes desencadeantes ou oncogênicos não descreve associação dessas duas doenças. Visto a gravidade e fatalidade ocorrida com o paciente, cabe especular-se alguns possíveis fatores que, isolados ou em associação, poderiam ter alguma contribuição, tais como:

baixa resistência imunológica global conseqüente à idade avançada;

alcoolismo e tabagismo crônico;

infecção grave em paciente já previamente debilitado;

choque com necessidade de transfusões múltiplas;

perda das funções de proteção testicular dada pelo escroto, acrescida da nova posição anatômica ocupada pelos mesmos;

traumatismos testiculares múltiplos no combate à síndrome de Fournier e na correção plástica da área acometida;

surgimento de condições ideais ou propícias para eclosão e multiplicação de células pré-cancerígenas até então latentes no parênquima gonadal.

Em vista destas hipóteses e da falta de orientação pela literatura quanto à síndrome de Fournier, pode-se sugerir condutas imediatas e tardias:

proceder à correção plástica local somente depois do desaparecimento total da infecção;

evitar a orquipexia femoral;

adotar a ultra-sonografia testicular no pré-operatório e no controle ambulatorial6 para se rastrear o parênquima à procura de focos com alterações pré-clínicas;

valorizar todas as queixas específicas e proceder a exame físico completo no seguimento ambulatorial;

dosar os marcadores tumorais principais como Alfa-Feto-Proteína e B - gonadotrofina coriônica humana no pré e pós-operatório.6-10

Conclui-se que, embora não haja comprovação, é importante alertar para o fato de ter ocorrido desenvolvimento de tumor no testículo em poucos meses depois da síndrome de Fournier. E, além disso, deve-se familiarizar com o tratamento dessa síndrome, uma vez que a sua frequência está aumentando consideravelmente.

 

AGRADECIMENTO

Agradecimento especial ao Prof. Roberto Junqueira de Alvarenga.

 

REFERÊNCIAS

1. Mostofi F. Testicular tumors. Epidemiologic. Etiologic and pathologic features. Cancer. 1973;32:1186-1201.

2. Batata MA, Chu FCH, Hilaris BS, Whitmore WF, Golbey RB. Testicular cancer in cryptorchids. Cancer. l982;49:1023-30.

3. Depue R, Pike M, Henderson B. Estrogen exposure during gestation and risk of testicular cancer. J Natl Cancer Inst. 1983;71:1151-5.

4. Henderson B, Benton B, Jing J, Yu M, Pike M. Risk factors for cancer of testis in young men. Inst J Cancer.1979;23:598.

5. Dow JR, Mostofi FU.Testicular tumors following orchiopexy. South Med J. 1967;60:193-5.

6. Peterson LJ, Catalona WJ, Koehler RE. Ultrasonic localization of a nor palpable testis tumor J Urol. 1979;122:843-4.

7. Brodsky GL. Pathology of testicular germ cell tumors. Hematol Oncol Clin North Am. 1991;5(6)1095-1126.

8. Catalona WJ. Tumor markers in testicular cancer. Urol Clin North Am. 1979;6:613.

9. Cochran JS. The seminoma decay: Measurement of Serum Human chorionic gonadotropin in patients with seminoma. J Urol. 1976;116:465-6.

10. Javadpour N, Mclntire KR, Wadmann TA. Human Chorionic gonadotropin (HCG) and alpha-fetoprotein (AFP) in serum and tumor cells of patients with testicular seminoma: a prospective study. Cancer 1978;42:2768-72.