RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 18. 2

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Artigo Original

Ato médico: visão de discentes da área de assistência à saúde

Medical act: students vision of the health care area

José Antônio Chehuen Neto1; Mauro Toledo Sirimarco2; Wélida Salles Portela3; Anna Luíza Paola Martins4; Fernanda de Abreu Toledo4; Mariana Maurício Matioli4

1. Professor Adjunto IV da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Cirurgião de Cabeça e Pescoço. Mestre e Doutor pelo Curso de Pós-graduação em Técnica Operatória e Cirurgia Experimental da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP-SP). Responsável pelas Disciplinas de Metodologia Científica em Medicina e Metodologia Científica em Saúde
2. Professor Adjunto I da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Proctologista. Mestre e Doutor em Cirurgia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Professor das Disciplinas de Metodologia Científica em Medicina e Metodologia Científica em Saúde 3. Monitora das Disciplinas de Metodologia Científica em Medicina e Metodologia Científica em Saúde - Disciplinas Optativas. Discente da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)
4. Acadêmicas de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e alunas da Disciplina de Metodologia Científica em Saúde

Endereço para correspondência

Prof. Dr. José Antonio Chehuen Neto
R. Halfeld, nº513/308, Centro
Juiz de Fora - MG CEP: 36010-001
e-mail: chehue@medicina.ufjf.br

Resumo

INTRODUÇÃO: apenas o ato médico, dentre as 14 categorias da área de saúde, ainda não é regularizado legalmente. Em 2001, o Conselho Federal de Medicina criou uma resolução que define as atribuições do médico, transformadas no Projeto de Lei do Ato Médico (PLS 25/2002), o qual têm despertado inúmeras reações.
OBJETIVO: verificar a percepção de discentes de cursos da área de assistência à saúde, segundo o conhecimento e o posicionamento a respeito do PLS 25/2002.
MATERIAL E MÉTODO: aplicamos um questionário a 376 discentes dos cursos de Medicina (grupo A), Fisioterapia, Enfermagem, Farmácia e Bioquímica, Educação Física e Psicologia (grupo B).
RESULTADOS: dos grupos A e B, respectivamente, 21,70% e 83,42% afirmam não ser justo o direito exclusivo do médico em diagnosticar enfermidades; o direito privativo da Medicina ao tratamento de doenças foi aprovado por 58,73% do (grupo A) e desaprovado por 91,98% do (grupo B); 71,12% do (grupo B) consideram que a elaboração do PLS 25/2002 denigre seu curso e sua profissão.
CONCLUSÕES: o aprimoramento dos meios de divulgação e de discussão sobre o tema poderá contribuir para o melhor conhecimento, esclarecimento e compreensão dos artigos que regem o PLS 25/2002.

Palavras-chave: Legislação Médica; Ética Profissional; Papel do Médico; Educação Médica

 

INTRODUÇÃO

Segundo Pereira Neto, no livro Ser médico no Brasil: o presente no passado, o conceito de profissão se constrói a partir de três aspectos: o domínio de um conhecimento específico, o monopólio do mercado de trabalho e a elaboração de normas de conduta.1

Dessa forma, a regulamentação de cada profissão é fator essencial para sua construção e exercício legal, ao estabelecer o espaço de trabalho a ser ocupado e as questões éticas a serem seguidas.

Das 14 categorias que compõem a área de saúde, apenas o ato médico não possui, explicitada em lei, a regulamentação de sua profissão. De acordo com Grisard (2002), "o ato médico, seu conceito, seus limites e suas propriedades sempre foram do conhecimento implícito dos médicos, dos juristas e de todas as pessoas letradas ou não. Portanto, não havia a necessidade de defini-lo explicitamente".2

Diante dessa realidade, o Conselho Federal de Medicina (CFM) criou, em outubro de 2001, uma resolução que define as atribuições do profissional médico, sua abrangência e seus limites. Em 2002, tal resolução foi transformada no Projeto de Lei do Ato Médico (PLS, nº 25/2002).2

O PLS 25/2002 foi elaborado com o objetivo apenas de regulamentar os atos médicos, e não de subordinar as outras profissões de saúde à Medicina, nem retirar das mesmas as competências atribuídas a cada uma.2

Assim, pretende-se fortalecer o conceito de equipe multidisciplinar, oferecendo, à população, a garantia ao acesso à saúde de boa qualidade, a partir do conhecimento pleno das funções que cada profissional deve desempenhar.3

Todavia, a tramitação do Projeto de Lei do Ato Médico, no Senado, tem despertado inúmeras reações das demais classes trabalhistas da área de saúde, por sentirem sobrepujadas suas competências e por acharem que o projeto foi criado com a tentativa de reserva de mercado e pela busca da supremacia da Medicina.4

Faz-se necessário o diálogo, a discussão, o esclarecimento e o entendimento a respeito da implementação do PLS 25/2002, nos meios médico e acadêmico, a fim de aprimorar a discussão e dirimir as dúvidas a respeito desse projeto, o qual poderá ser de grande importância para o exercício da Medicina, sem que a relação com as outras áreas de atuação profissional correlatas seja enfraquecida.2

Os discentes dos diversos cursos da área de assistência à saúde, como herdeiros de suas profissões, devem estar atualizados com as situações laborativa, social e política de cada área2, sendo essa percepção entre os alunos de suma importância para análise da participação, da compreensão e da divulgação do tema no meio acadêmico.

O objetivo do presente estudo foi verificar a percepção do conhecimento e o posicionamento a respeito da regulamentação da Lei do Ato Médico entre discentes de cursos da área de assistência à saúde.

 

MATERIAL E MÉTODO

Foi realizado um estudo transversal, utilizando um questionário padronizado, aplicado a 376 acadêmicos dos cursos de Medicina, Fisioterapia, Enfermagem, Farmácia e Bioquímica, Educação Física e Psicologia, respondido voluntariamente, após explanação dos objetivos e concordância com a pesquisa, através de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Os entrevistados foram divididos, neste momento, em dois grupos:

Grupo A: 189 discentes de Medicina, pertencentes aos 2º, 4º, 6º e 9º períodos;

Grupo B: 187 alunos de Fisioterapia, Enfermagem, Farmácia e Bioquímica, Educação Física e Psicologia, relativos ao 2º período e ao imediatamente anterior ao estágio de cada curso.

 

RESULTADOS

 

DISCUSSÃO

A definição de ato profissional, na qual se insere o ato médico, configura ação, procedimento ou atividade que a legislação regulamentadora de uma profissão atribui a agentes de uma dada categoria de trabalho.5

Os atos profissionais podem ser concedidos de maneira privativa a uma profissão, caso em que só podem ser executados por um agente profissional legalmente habilitado naquela categoria. Ou podem ser típicos de uma profissão ou mesmo específicos dela, sendo compartilhados com agentes de outras categorias profissionais.5

Quando um procedimento é privativo de uma profissão, deve ser chamado ato privativo profissional ou privilégio profissional. Atos profissionais privativos ou exclusivos configuram o que se chama monopólio profissional, que decorre, principalmente, da necessidade que a sociedade tem daquele serviço e da importância que lhe atribui. Como contrapartida, os agentes profissionais respondem pelos danos e prejuízos que causarem por imperícia, imprudência ou negligência, já que o princípio da beneficência deve ser sempre respeitado e é condição sine qua non para o ato profissional. Esta exigência de beneficência é particularmente importante nas profissões de serviço, em geral, e nas profissões de saúde, em particular.5

A profissão médica se enquadra numa modalidade de trabalho social a serviço da saúde do ser humano e da coletividade. O médico é definido como "o ser humano pessoalmente apto, tecnicamente capacitado e legalmente habilitado" para exercer as atividades relacionadas ao diagnóstico de enfermidades e ao tratamento de enfermos, bem como à profilaxia das doenças e a processos de reabilitação. A formação do estudante de Medicina deve estar legalmente instituída para essas finalidades específicas.2 Da mesma forma, a graduação das demais profissões da área de assistência à saúde deve compreender a aquisição de conhecimentos e o aprendizado de atribuições psicomotoras determinantes de cada uma.6

A lei federal que definiu a profissão médica no Brasil, em 1957, não especificou a limitação da sua área de atuação, possivelmente porque, desde a antigüidade, a Medicina é entendida como "ciência e arte de curar". As demais profissões da área de assistência à saúde tiveram seus campos de trabalho e suas atribuições legalmente estabelecidos. A fim de preencher essa lacuna, o CFM, em 2002, elaborou o PLS 25/2002, em uma época em que a avalanche de conhecimento, que se renova em alta velocidade, ditou o aparecimento de novos cursos e especializações que, por vezes, se sobrepõem e se confundem. Esse projeto de lei tem como objetivo explicitar o que é medicina e quais são os procedimentos específicos pertinentes a ela, enfatizando quais devem ser executados apenas por médicos e quais podem ser compartilhados com as outras profissões de assistência à saúde. Além disso, o PLS 25/2002 garante o direito da sociedade de saber o que pode e o que deve esperar das diferentes profissões de saúde.2

A fim de explicar a justificativa, a necessidade e a abrangência de tal projeto de lei, bem como de esclarecer possíveis dúvidas, a Comissão de Ensino Médico do CFM realizou a pesquisa "Os estudantes de Medicina e o Ato Médico".2 A despeito de algumas tentativas de divulgação e informação do PLS 25/2002, na presente pesquisa, verificou-se que 50,80% do grupo A e 57,22% do grupo B conhecem apenas parcialmente a regulamentação em lei do ato médico e, 44,97% e 36,36% dos grupos A e B, respectivamente, afirmam desconhecer a mesma (Tabela 1). Desses, o principal motivo alegado para a ausência ou deficiência de informação foi representado pela falha nos sistemas de discussão e divulgação do tema (57,20% do grupo A e 73,26% do grupo B - Tabela 2).

 

 

 

 

O PLS 25/2002 tem gerado inúmeras reações de resistência à sua aprovação, por parte dos diversos setores da área de assistência à saúde, motivados pelo sentimento de corporativismo. A ausência de um esclarecimento maior sobre o tema e seus reais objetivos tem suscitado a desconfiança desses setores, que se sentem ultrajados e destituídos de atribuições que nunca lhes pertenceram. A lei propõe apenas a regulamentação de funções que atavicamente são atribuídas aos médicos e já fazem parte do senso comum.5

Uma das prerrogativas levantadas pelas profissões que são contra o Projeto de Lei do Ato Médico é o possível prejuízo à sociedade determinado pelo estabelecimento do diagnóstico de enfermidade, como ato privativo aos médicos. Outro argumento que leva à contraposição ao PLS 25/2002 diz respeito ao entendimento amplificado de que a Medicina engloba quaisquer esforços ou tentativas de curar alguém. O inciso II do artigo 1 do Projeto de Lei do Ato Médico define os atos exclusivos ao médico - diagnóstico e indicações terapêuticas das doenças -, por ser esse o único profissional habilitado técnico-cientificamente para exercê-los.7 Nesse estudo, 83,42% do grupo B não concordam com o direito restrito da Medicina ao diagnóstico de enfermidades (Tabela 3) e, 91,98% do mesmo grupo discordam de o tratamento ser um ato privativo do médico (Tabela 4).

 

 

 

 

Faz-se necessário esclarecer que o ato de diagnosticar doenças significa possuir competência para estabelecer diagnósticos diferenciais e prescrever o tratamento adequado. Entretanto, os diagnósticos fisiológicos - identificação do rendimento de uma estrutura ou função somática - e psicológicos - reconhecimento de um estado do desenvolvimento psíquico ou da situação de ajustamento de uma pessoa - podem ser compartilhados com outras profissões, como odontologia, fisioterapia e psicologia.7

Curioso notar, neste trabalho, que a maioria de ambos os grupos (66,14% do grupo A e 52,10% do grupo B - Tabela 5) julga que a formação acadêmica de seus cursos os torna aptos para diagnosticar e tratar enfermidades, quando seria de se esperar que a tônica curricular do grupo B não fosse essa. Isso remete à tese de que o enfoque dado às atribuições profissionais na área de saúde tem sido alterado, determinando e alimentando a sobreposição de funções e limites imprecisos entre as profissões. O que talvez explique a contumaz defesa corporativa da Lei do Ato Médico, ciosa por manter seu mercado de trabalho bem como por corroborar seu papel frente à sociedade.

 

 

Tendo-se sempre em vista o interesse da sociedade, único motivo que realmente embasaria a proposta, os binômios benefício da classe médica x prejuízo das demais profissões de saúde e prejuízo da classe médica x benefício das demais classes tornam-se questões menores, porém de amplo debate e de difícil acordo. O que pode ser confirmado pelo presente estudo: embora a imensa maioria dos dois grupos entrevistados declararem não conhecer ou conhecer apenas parcialmente o tema, 72,22% dos discentes de cursos não-médicos afirmam que as propostas do PLS 25/2002 representam um retrocesso nas leis de saúde, contra apenas 14,81% dos discentes de Medicina (Tabela 6). Esse foi talvez, de todos os temas abordados, o que mais dependeu de um conhecimento prévio e mais aprofundado do assunto, e não simplesmente de uma opinião pessoal, o que demonstra claramente o viés corporativista das respostas, sectarismo, aliás, muitas vezes necessário para a sobrevivência de uma profissão.

 

 

A colaboração integrada das diferentes profissões da área de assistência à saúde deve estar embasada no conhecimento das atribuições e competências legais de cada uma. Dessa forma, a definição do ato médico não romperia com a relação interdisciplinar, mas fortaleceria a mesma, o que se mostra fundamental à consolidação de um serviço de saúde de qualidade. Vale ressaltar que uma equipe multiprofissional não significa ser formada por profissionais com multifunções, já que cada profissão tem suas atribuições específicas.8

Segundo a pesquisa "Os estudantes de Medicina e o Ato Médico", 84,8% dos discentes de Medicina entrevistados não acredita que a implementação do PLS 25/2002 irá romper com a interdisciplinaridade na área de saúde.2 No presente estudo, 80,21% do Grupo B (Tabela 7) acham que a regulamentação do Ato Médico irá interferir de forma negativa na relação multiprofissional.

 

 

Os conselhos de classe que se mobilizam em um movimento contra a lei do ato médico ressaltam que não se opõem à iniciativa dos médicos de regulamentarem sua profissão. Criticam o texto da lei, que julgam ter sido escrito de forma rudimentar e genérica. Para tanto, Alceu Pimentel, coordenador da Comissão em Defesa do Ato Médico, defende a inclusão de um artigo no texto da lei com o objetivo de esclarecer que as atribuições legais dos demais profissionais da área de saúde continuarão sendo respeitadas. Afinal, o que se pretende com o PLS 25/2002 é evitar a ausência de médicos nos programas de saúde, como acontece em alguns municípios brasileiros, bem como impedir o avanço de outras profissões que não têm o conhecimento e o direito legalizado de atuar no diagnóstico e no tratamento de doenças.9

O Ministério da Saúde é a favor da regulamentação das profissões, desde que subordinadas às diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS). Seguindo o princípio da integralidade defendido pelo SUS, os pacientes devem ser atendidos como um todo, passando por avaliações de todos os profissionais da área de saúde, o que também não exclui o médico.8

Quando questionados se a lei de alguma forma denigre os demais cursos da área de saúde 19,05% do grupo A responderam sim contra 88,77% do grupo B (Tabela 8) o que renova a necessidade de melhores esclarecimentos e discussão.

 

 

CONCLUSÕES

O aprimoramento dos meios de divulgação e discussão sobre o tema poderá contribuir para o melhor conhecimento e entendimento dos artigos que regem o PLS 25/2002, dirimindo dúvidas e mistificações.

Esforços devem ser voltados principalmente ao esclarecimento e à justificativa sobre a exclusividade médica em diagnosticar e tratar enfermidades.

Uma redação mais clara e objetiva da concepção final da Lei do Ato Médico poderá auxiliar na regulamentação necessária dessa profissão, sem, no entanto, romper com a unificação de trabalho na área de assistência à saúde.

 

REFERÊNCIAS

1. Bonelli MG. Os médicos e a construção do profissionalismo no Brasil. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos. 2002;9(2):431-6. [Citado em 24 set 2006]. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702002000200011&lng=en&nrm=isodoi:10.1590/S0104-59702002000200011

2. Pimentel AJP, Andrade EO, Barbosa GA. Os estudantes de medicina e o ato médico: atitudes e valores que norteiam seu posicionamento. Brasília: CFM; 2004.

3. Monteiro FCD. Em defesa do SUS e da sociedade, a lei do Ato Médico. [Citado em 24 set.2006]. Disponível em: http://www.atomedico.org.br/index2.asp?opcao=artigos&portal

4. Constantino CF. Ato médico: necessidade social. CFM. [Citado em 24 set. 2006]. Disponível em: http://www.atomedico.org.br/index2.asp?opcao=artigos&portal

5. Cavalcanti EFS. Ato médico, o que defender? [homepage na Internet]. CFM. [Citado em 26 set. 2006]. Disponível em: http://www.atomedico.org.br/index2.asp?opcao=artigos&portal

6. Colares MFA, Troncon LEA, Figueiredo JFC, Cianflone ARL,Rodrigues MLVPP, Piccianat V,et al. Construção de um instrumento para avaliação das atitudes de estudantes de Medicina frente a aspectos relevantes da prática médica. Rev Bras Educ Med. 2002;26(3):194-203.

7. Conselho Federal de Medicina. O ato médico. Brasília: CEFELN; 2003.

8. Dávila RL. O ato médico por seus autores. Universia; 2002. [Citado em 21 out. 2006]. Disponível em: http://www.universia.com.br/materia/materia.jsp?materia=5226

9. Siqueira N. Ato médico vai mudar. Congresso em foco; 2004 [Citado em 22 out. 2006]. Disponível em: http://www.cfn.org.br/variavel/ultimas/mudar.doc