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CAPES/Qualis: B2
O médico e a tecnologia: reflexoes com enfoque na cardiologia
The physician and the technology: reflections with focus on cardiology
José Agostinho Lopes
Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG.Titular do Instituto Mineiro de História da Medicina
Endereço para correspondênciaFaculdade de Medicina da UFMG Departamento de Clínica Médica
Av. Alfredo Balena, 190
CEP: 30130-100 Belo Horizonte - MG
E-mail: jaltin@terra.com.br
Resumo
Este trabalho discorre sobre a evolução tecnológica, sua incorporação na prática cardiológica e busca ajustar este processo evolutivo com as reais necessidades de cuidado e acolhida ao ser humano. Questiona as possíveis repercussões dos avanços tecnológicos ao exercício da medicina, seus benefícios e os aspectos negativos provenientes da sua utilização. Aborda, ainda, as questões do humanismo e do senso humanitário, que se perdem com a super e a hiper especialização.
Palavras-chave: Medicina; Cardiologia; Tecnologia Médica; Tecnologia Biomédica.
"Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana."
Carl Gustav Jung (1875 - 1961)
INTRODUÇÃO
O assunto novas tecnologias em medicina nos remete a reflexões que permeiam diversas áreas do conhecimento, como a ciência, a filosofia, a história, a ética, a economia e arte.
O método científico surgiu no Renascimento, quando o teocentrismo medieval começou a perder espaço para o antropocentrismo, humanismo e naturalismo.
A partir daí, surge um novo homem, que percebe sua capacidade de conhecer a natureza, transformá-la, e até de colocá-la a seu serviço. À época Galileu Galilei (1564 - 1642) dizia: "ela se expressa em linguagem matemática". E essa linguagem nós podemos compreender. Nasce uma nova ciência, ancorada no método experimental. Podemos dizer que, neste momento, é instituída a artificialização da experiência humana, que vai ajudar o homem a estender os limites de seus sentidos naturais e dotá-lo de recursos técnicos maravilhosos.
Para descobrir um novo mundo, cria-lhe as caravelas; para a sua dificuldade de enxergar ao longe, propõe-lhe o telescópio; para ver o muito pequeno, constrói-lhe o microscópio. Este novo homem vai extrapolando os limites do próprio corpo e se encantando com novas descobertas.
O grande inventor e gênio da fisiologia francesa, Etienne Jules Marey (1830 - 1904) escrevia, no final do século XIX, que a ciência geralmente se depara com dois obstáculos: a limitação de nossos sentidos em descobrir fatos e a incapacidade da nossa linguagem em descrevê-los. O objetivo da tecnologia - e aqui ele falava especificamente dos métodos gráficos - seria contorná-los, registrando detalhes imperceptíveis que, de outra maneira, não seriam identificados, e transcrevê-los com uma clareza superior à de nossas palavras.1
Várias tecnologias que a medicina usa, atualmente, são apropriações de descobertas de outras áreas do conhecimento, especialmente da química e da física. O desenvolvimento de técnicas e equipamentos acontecia sob os mais diversos apelos: ora necessidades bélicas, ora sede de prestígio, de poder ou dinheiro.
A tragédia do Titanic, em 1912, e a necessidade da localização de submarinos alemães durante a guerra incentivaram o aprimoramento do SONAR (abreviação de SOund NAvigation Ranging). Eis o berço da ultra-sonografia e sua afiliada cardiológica, a ecocardiografia.
Os conhecimentos da física nuclear, que possibilitaram a construção da primeira bomba atômica, incentivaram conhecimentos paralelos, que culminaram com a identificação e produção de novos radioisótopos. Com eles, ampliaram-se os horizontes da medicina nuclear.
Utilizando recursos da eletrônica, construiu-se, em 1945, na Universidade da Pensilvânia, o primeiro computador digital - o ENIAC (Electronic Numerical Integrator And Computer). Essa tecnologia se aperfeiçoou vertiginosamente, e a medicina a incorporou em inúmeros equipamentos, especialmente nos destinados a uma aquisição e processamento de imagens.
De uma maneira relativamente simples podemos dividir a tecnologia médica em três categorias: de informação, de diagnóstico e de tratamento. Neste texto refletiremos, principalmente, sobre a segunda delas - a partir da ótica de um cardiologista.
Dentro da medicina, a cardiologia é uma das áreas que mais lida com novas tecnologias. Não é sem razão que a sua certidão de nascimento, como especialidade, foi lavrada no início do século XX, com a introdução de um novo equipamento para o diagnóstico das doenças do coração. Estamos falando do galvanômetro de cordas de Einthoven (1860 - 1927), ancestral dos nossos atuais eletrocardiógrafos. Começou a ser visto como cardiologista quem tinha um aparelho e sabia fazer ou interpretar um traçado eletrocardiográfico.
Hoje, há um enorme desfile de tecnologia a nossa frente. A maioria delas, por sinal, apoiada em laureados com o Prêmio Nobel. A partir de 1895, vemos surgir, gradualmente, a radiologia simples (Wilhelm Conrad Roentgen Prêmio Nobel de Física de 1901), a eletrocardiografia (Willem Einthoven Prêmio Nobel de Medicina de 1924), o cateterismo cardíaco e a angiografia (Andre Cournand, Dickinson W. Richards e Werner Forssmann Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1956), a ecocardiografia e o Doppler, a cardiologia nuclear, a tomografia computadorizada (Godfrey N. Hounsfield e Allan M. Cormack Premio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1979) e a ressonância nuclear magnética (Paul Lauterbur e Peter Mansfield Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 2003). E todas elas, trazendo ainda muitas ramificações.
QUAIS AS POSSÍVEIS REPERCUSSÕES DESSAS MARAVILHAS PARA O EXERCÍCIO DA MEDICINA?
Refletindo sobre as conseqüências da tecnologia, o novelista e cientista britânico C. P. Snow (1905 - 1980) dizia: "A tecnologia é uma coisa estranha. Nos presenteia com uma mão e nos golpeia pelas costas com a outra". Seu contemporâneo, o historiador americano Will Durant (1885 - 1981), ecoou no mesmo sentido: "A ciência nos ensina a curar e a matar; reduz a taxa de mortalidade no varejo e depois nos mata por atacado na guerra"2.
Forçoso é admitir que estamos lidando com uma medalha de dupla face, uma brilhante, a outra, nem tanto. O lado brilhante nos mostra inquestionáveis benefícios. Os diagnósticos tornaram-se mais precoces e precisos. O médico decide com mais segurança e as intervenções são feitas com maior objetividade. Os riscos e o desconforto para o paciente, com freqüência, estão reduzidos. São grandes vantagens que, bem utilizadas, transformam-se em possibilidades concretas de uma melhor qualidade de vida e de maior sobrevida para o nosso paciente.
Existe, porém, o lado opaco dessa medalha. Paradoxalmente, caiu o prestígio dos profissionais da medicina e cresceram as queixas dos pacientes em relação a eles. Falta-lhes compaixão. Pouco nos ouvem. Estão mais técnicos e menos humanos. É realmente um estranho paradoxo. Maiores e melhores recursos e menor prestígio.3,4
Estariam as novas tecnologias trazendo conseqüências negativas para a atuação do médico? Quais seriam elas?
Em primeiro lugar, percebe-se uma menor valorização do exame clínico. Por um lado, investe-se menos na aquisição das habilidades a ele necessárias, pois, imagina-se, as máquinas podem dar o diagnóstico. Por outro, reduz-se o tempo a ele dedicado. Duplo e grave engano. É exatamente nesse tempo, precioso, quando avaliamos o paciente, e somos simultaneamente por ele avaliados, que ganhamos a sua confiança, parâmetro fundamental para o estabelecimento de uma boa relação. Esse é o momento em que o médico, além de conhecer melhor o seu paciente, ganha o grande privilégio de se transformar, ele próprio, em um instrumento terapêutico muito eficaz.5-8
Estaríamos abdicando de maneira espontânea desse privilégio? Certamente não. Existem entraves significativos a uma melhor atuação. A assistência à saúde no nosso país faz-se, predominantemente, pelo poder público (Sistema Único de Saúde - SUS) ou pelos planos privados de saúde.
O projeto institucional do SUS, nos moldes previstos pela Constituição Federal de 1988, trouxe para debaixo das suas asas uma multidão de excluídos. Correto do ponto de vista social, arriscado do ponto de vista econômico. Se houve uma previsão, não houve realização de um aporte de recursos compatível. Conseqüências funestas: massificação e burocratização da assistência.
Do outro lado, a comercialização dos planos privados de saúde transformou o médico e, inclusive, mudou a sua designação - ele passou a ser chamado de prestador de serviços. Como qualquer outro profissional, agora é também obrigado a sujeitarse às regras do mercado. Entretanto, lidar com a massificação, burocratização, intermediação e até com o cerceamento da livre escolha, de ambas as partes, acabou comprometendo a relação médicopaciente. Eis o desafio que o momento nos impõe: encontrar o ponto de equilíbrio em que possamos lidar com esses entraves sem comprometer a qualidade do exame clínico, sem perder a confiança do paciente e construindo com ele a melhor relação possível. Afinal, ela é suporte essencial, tanto na condução da propedêutica complementar, como da terapêutica que melhor se aplica a cada caso.
O segundo aspecto negativo poderia ser chamado de o fetiche da tecnologia.9 Um exemplo disso, a nossa frente, no dia-a-dia, seria o telefone celular. Desenvolvido inicialmente com o objetivo de fazer e receber chamadas, mesmo diminuindo de tamanho, foi incorporando uma multiplicidade de recursos que são poucos os que conhecem, raros os que usam, mas, quase todos compram.
Os equipamentos médicos de diagnóstico também exercem um fascínio semelhante, que, às vezes, não se restringe ao profissional da saúde, amplia-se e envolve o próprio paciente. Este poder de sedução chega em mensagens sensacionalistas pelos meios de comunicação e ascende, com freqüência, o desejo de ser por eles examinado.
É um equívoco trabalhar com a lógica do "ser dos primeiros a lidar com a última (tecnologia)". Aqui, me recordo de uma máxima citada pelo Prof. J. Romeu Cançado, quando, em corrida de leitos na sua enfermaria, ele falava sobre novos medicamentos: "Vocês não devem ser os primeiros a usálos... mas, tampouco, os últimos". O sábio professor talvez estivesse parodiando o grande filósofo: "Toda verdade passa por três estágios. No primeiro, ela é ridicularizada. No segundo, é rejeitada com violência. No terceiro, é aceita como evidente por si própria". (Arthur Schopenhauer 1788 - 1860).
Mas, qual seria o momento correto de incorporar novas tecnologias ao arsenal de diagnóstico? Não é uma resposta simples, principalmente considerando que elas são muito dinâmicas e seus refinamentos costumam chegar antes que se apreenda bem o anterior. No entanto, o bom senso nos sugere que esperemos estudos de porte, que permitam avaliar a sua aplicabilidade clínica e a sua relação custo-benefício. Esse tempo de espera, muitas vezes, costuma ser abreviado por pressões criadas na sua difusão pela mídia, gerada, tanto pelo fabricante, como pelo entusiasmo dos profissionais da área, pela competitividade entre instituições e até mesmo pelo apelo popular.
Cumpre, ainda, cuidar para que este imperativo tecnológico não desvirtue nossa conduta e transforme a precisão diagnóstica em objetivo final, levando o paciente a uma multiplicidade de exames, quando a prioridade é o seu bem-estar. Máxima de ouro nos ensina que "mais importante que saber que doença esse paciente tem, é saber que paciente tem essa doença". Essa última informação não é dada pela tecnologia. Não podemos deixar que o brilho das máquinas ofusque a nossa razão.10-12 A tecnologia em si não é boa nem ruim. Bom ou mau é o uso que dela nós fazemos.
De uma forma indireta, as novas tecnologias também podem estar implicadas numa nova modalidade do agir médico - a chamada medicina defensiva. Por ser uma prática, se não originária, pelo menos mais freqüente na medicina norte-americana, procurei sua definição em um dicionário inglês. (Defensive Medicine: Extensive diagnosis as protection against lawsuit. ... involves carrying out extensive diagnostic testing in order to minimize the chances of a patient's suing the doctor or hospital for negligence. Encarta® World English Dictionary [North American Edition] © & (P) 2005 Microsoft Corporation). Pode envolver, portanto, a realização de uma multiplicidade de testes diagnósticos para reduzir as chances de o médico ou o hospital serem processados por negligência. Corre-se, assim, o risco de uma inversão de papéis: ao invés de senhor, o médico se transforma em escravo da tecnologia.
É verdade que a medicina, a lei e os valores sociais não são estáticos. Tampouco, a visão que os pacientes ou usuários dos sistemas de saúde têm de seus direitos, já que, com os avanços em educação, organização social e tecnologia de comunicação, eles passaram a cobrar atendimentos de melhor qualidade. Frente a essa exigência, muitas vezes, a prática médica acaba assumindo uma posição defensiva. E essa posição compromete a efetividade do médico, que se vê apanhado em um difícil dilema - a necessidade de apoiar-se nos avanços tecnológicos mais recentes e o imperativo ético de empregá-los, sempre, em benefício do paciente e da sociedade.13 Temos aqui dois princípios fundamentais da ética principialista: beneficência e justiça social.14
Sir William Osler (1849-1919) ensinava que devemos encarar a medicina como a ciência da incerteza e a arte da probabilidade. Mais uma vez, a melhor alternativa passa pela construção de uma boa relação médico-paciente. É pouco provável uma litigância jurídica quando ela existe. As novas tecnologias, com certeza, não são a única ou a melhor solução para um possível conflito. Em 1983, o JAMA publicou um editorial com o seguinte título: Teria a máquina se tornado o médico? O editor, assim, expressava-se: "... muitas vezes para o especialista o diagnóstico correto torna-se quase que um fim em si mesmo... ele se refugia atrás da máquina... tor-na-se uma extensão dela... ela parece o informante e o conselheiro definitivo... O paciente, ao contrário, quer é se sentir melhor... E para ele o médico parece mais envolvido com as máquinas que com o seu desconforto".15 Portanto, não é se escondendo atrás das máquinas que o médico ficará mais seguro. A segurança virá muito mais de uma conversa clara e honesta com o paciente, ganhando sua confiança e discutindo com ele quando será conveniente ou não uma propedêutica mais ou menos extensiva. Nessa linha de pensamento vale a pena ler o belo A arte perdida de curar, de Bernard Lown.16
As novas tecnologias também estão profundamente implicadas no custo da assistência médica. São enormes os investimentos necessários para produzi-las ou aperfeiçoá-las. Uma vez produzidas, precisam ser comercializadas e usadas para que a indústria recupere o capital investido e tenha seu lucro. Esta é a lógica do mundo capitalista. Freqüentemente, para que isso aconteça, confere-se ao novo uma roupagem de necessidade imprescindível, um poder de resolução que, em geral, extrapola sua real capacidade e uma áurea de prestígio que supervaloriza quem a utiliza. E acontece, muitas vezes, de o novo não substituir o que já existia. Simplesmente acrescenta a ele. Com isso, a vida útil de um equipamento reduz e torna-se imperiosa a necessidade de substituí-lo por aquele que agrega uma nova maravilha. Mais uma vez, o imperativo tecnológico. O médico precisa, sim, saber discernir, pois nem sempre o mais novo é o melhor.
O custeio da assistência à saúde é problema em todos os países. O custo está sempre maior que os recursos alocados. Essa constatação não se aplica somente à saúde pública, mas também aos planos privados de saúde. Estes, na medida do possível, o repassam para a mensalidade de seus usuários.
Deste contexto emanam muitas análises que visam orientar os profissionais, não só quanto à indicação, mas também quanto à relação custobenefício de novos procedimentos. São guidelines ou diretrizes, geralmente, elaboradas pelas sociedades de especialistas ou superespecialistas no assunto. Muitas vezes, deles saem algoritmos, no sentido de orientar a conduta. São muito úteis na prática diária e devem ser aplicados quando os recursos de que dispomos nos permitem utilizá-los. Vale, porém, lembrar J. W. Hurst, quando nos diz que"o bom médico conhece bem os guidelines, mas o ótimo médico sabe quando não utilizá-los".17 A individualidade do paciente tem sempre que ser levada em conta, pois, afinal, nem todos os pés se encaixam na mesma fôrma de sapato. Ontem, como hoje, o primeiro aforismo continua plenamente verdadeiro: "A vida é curta, a arte longa, a ocasião (hora certa de agir) fugaz, a experiência perigosa e o juízo difícil". (Aforismos, Primeira Secção, I)
Sempre que uma mesma interrogação diagnóstica puder ser adequadamente respondida por diversas tecnologias, a opção deverá recair na de menor custo, risco e desconforto para o paciente.
Existe uma conduta habitual que costuma agregar custo à assistência. São os chamados exames de rotina. Se bem indicados na maioria das vezes, em outras, tornam-se desnecessários. Um exemplo típico é a solicitação do eletrocardiograma em toda avaliação de risco cirúrgico. Para um paciente jovem, sem nenhuma história e sem nenhum achado de exame físico sugestivos de cardiopatia, o eletrocardiograma não deverá trazer informação de valor a ser agregada ao seu risco cirúrgico. Mesmo aqueles exames que, convencionalmente, denominamos ‘exame de rotina, devem ser individualizados. Devemos evitar o que pode ser chamado de medicina desnecessária.
Além do financeiro, há uma outra modalidade de custo a se considerar. Aquela que advém da expectativa, risco e desconforto inerentes ao próprio procedimento.17 A solicitação de um novo exame pode gerar suposições, infundadas ou não, na cabeça do paciente; pode gerar desconforto e até constrangimento, provocado por determinadas manipulações; pode causar medo, quando confinado a um ambiente fechado; pode trazer risco, mesmo que pequeno, quando invasivo; pode gerar ansiedade, principalmente, se lhe transpareceu algo de preocupação em quem executou o exame e o acesso ao resultado é demorado.
As novas tecnologias também geraram uma outra maneira de fazer medicina, exercida por uma nova classe de profissionais - os superespecialistas. Se, no princípio do século XX, nascia a cardiologia já como especialidade, a partir da sua segunda metade ela se dividiu em várias subespecialidades. Surgem hemodinamicistas, ecocardiografistas, eletrofisiologistas, etc. Isto aconteceu porque as novas tecnologias passaram a exigir do profissional habilidades mais específicas e conhecimentos mais profundos a respeito de campos cada vez mais restritos. Na realidade, até abriu um novo campo de trabalho para o médico, em uma sociedade que valoriza o superespecialista.
Em editorial da Revista Espanhola de Cardiologia, Eduardo de Tereza levantou a seguinte questão19: Sobram ou faltam cardiologistas? A sua preocupação é que faltem cardiologistas para atender e orientar pacientes, pois muitos estão se tornando superespecialistas. Isso provoca uma grande fragmentação, não só do conhecimento, mas também na maneira de exercer a medicina. Seria o saber mais de cada vez menos. Olhar uma única estrela e desconhecer o firmamento. Os superespecialistas são necessários para lidar com as novas tecnologias, no entanto, para o paciente, é fundamental aquele médico que o ouça, reúna as diversas informações recolhidas, contextualize-as com o exame clínico, elabore seu diagnóstico e o oriente com segurança.
A mesma tecnologia que criou uma nova modalidade de médico, o superespecialista, pode também criar uma nova modalidade de paciente, o assintomático. Aquele que nada sente, mas um teste realizado, bem indicado ou não, lhe impõe uma doença ou uma perspectiva futura de tê-la. Reduz-se a importância epistemológica do paciente na formulação do conceito de doença. Ela começa a ser diagnosticada independente da subjetividade da pessoa.20
Esses casos, até o momento, são mais evidentes na área da biologia molecular, mas não são exclusividades dela. A investigação diagnóstica será válida quando houver atitudes positivas que possam ser tomadas no contexto do paciente. Se não existem, a informação pode gerar sofrimentos e neuroses. Criou-se um acrônimo recente para esses pacientes: VOMIT (Victims Of Modern Imaging Technology.21
O QUE CONSIDERAR AO PEDIR UM EXAME COMPLEMENTAR?
W. Proctor Harvey (1918 - 2007) é considerado um dos ícones da cardiologia americana. A 50 anos atrás, ele ensinava que o diagnóstico cardiovascular deveria se basear em uma abordagem que nos seria lembrada pelos cinco dedos da mão. O polegar representaria a história; o indicador, o exame físico; o médio, o eletrocardiograma; o anular, o RX do tórax; e o mínimo, alguns exames simples de laboratório.22 Ele acreditava que 90% dos diagnósticos sairiam da história e do exame físico, enfatizando a necessidade de desenvolver e utilizar as habilidades necessárias a ele. "Se você não as usa, acaba perdendo-as".
Em termos comparativos, naquela época, a propedêutica complementar ainda era bastante restrita. Um dos clássicos da cardiologia - Diseases of the Heart - de Charles K Friedberg23, na sua primeira edição de 1949, não viu necessidade de dedicar um capítulo aos métodos complementares. A segunda edição, de 1956, já trazia um capítulo específico sobre o assunto, com 81 páginas, e a terceira edição, de 1966, se estendia por 133 páginas.
Hoje, podemos usar ambas as mãos, que ainda faltariam dedos para enumerar os exames complementares ou testes diagnósticos à disposição do cardiologista. No entanto, o princípio da prioridade do exame clínico continua plenamente verdadeiro. A terminologia é correta. Falamos de um exame como complementar, nunca como um substituto do exame clínico. Este poderá ser suplementado, mas seu papel nunca será suplantado. Exceto em raras situações de emergência, a solicitação de um teste diagnóstico deverá sempre se fazer orientada pelos achados de uma história clínica bem colhida e um exame físico bem feito.
Outro aspecto importante antes do pedido de um teste diagnóstico para determinada doença é conhecer a performance deste teste. Não sendo perfeitos ou ideais, testes positivos podem acontecer, não só em pacientes portadores da doença (positivos verdadeiros - PV), mas também em pacientes não portadores da doença (falsos positivos - FP). De maneira semelhante, testes negativos podem ocorrer em pacientes não portadores da doença (negativos verdadeiros - NV), como em pacientes portadores (falsos negativos - FN). Sabemos que a análise do desempenho de um teste deve levar em consideração os parâmetros Sensibilidade (S), Especificidade (E), o Valor Preditivo Positivo (VP+) e o Valor Preditivo Negativo (VP-).
Que tipo de informação eu desejo com o exame complementar?
Depois de analisar o quadro clínico do paciente, o médico pode necessitar de exames complementares. As informações procuradas, geralmente, objetivam24,25: a) confirmar uma hipótese diagnóstica elaborada a partir da história clínica e do exame físico, mas considerada ainda não suficientemente esclarecida; b) rastrear fatores de risco, para os quais haja tratamento seguro e eficaz, e cuja identificação precoce permita intervenções que resultem em um melhor prognóstico e qualidade de vida para o paciente; c) estabelecer um parâmetro de referência necessário ao acompanhamento evolutivo de uma patologia já diagnosticada, ou da sua resposta a uma intervenção terapêutica programada, desde que isso não possa ser feito apenas com o exame clínico; d) completar uma avaliação de risco cirúrgico, se o exame clínico assim o sugerir.
A informação que eu estou buscando no exame complementar agrega algum valor aos dados já disponíveis?
Se já tenho meu diagnóstico elaborado com segurança, não é necessário utilizar propedêuticas alternativas, com o uso de tecnologias diferentes que vão simplesmente confirmar meus achados. Por exemplo, o diagnóstico de uma estenose mitral, estabelecido em uma paciente jovem pela ecocardiografia e Doppler, não precisa de nenhum referendum do cateterismo cardíaco ou de outra técnica qualquer.
De posse da informação, eu vou mudar de algum modo minha conduta com o paciente?
O exame complementar só está justificado quando há alternativas na conduta com o paciente. Desde que se tenha tomado a posição de que não existem alternativas viáveis a serem adotadas, o exame complementar deixa de ter sentido.
A mudança de conduta será benéfica e aceita pelo paciente?
É dever profissional agir sempre no interesse e em benefício do paciente. Por outro lado, o princípio da sua autonomia também tem de ser respeitado. Se o exame complementar for indicado para definir uma conduta que, de antemão, ele se recusa a aceitar, não se justifica a sua realização.26
De que maneiras eu posso obter a informação? Existem técnicas concorrentes para obtê-las? Qual a melhor para o meu paciente?
Devido à multiplicidade de técnicas disponíveis para o diagnóstico, muitas vezes, a mesma informação pode ser fornecida por várias delas. Assim, quando quero avaliar a função ventricular esquerda, posso usar a ecocardiografia, a ventriculografia radioisotópica, a ressonância nuclear magnética, a ventriculografia com contraste no cateterismo cardíaco, etc. A opção deverá ser aquela que trouxer a informação que se deseja com menor risco, desconforto e custo para o paciente. Essa definição, porém, terá de ser individualizada, já que, muitas vezes, existem informações paralelas importantes que só podem ser conseguidas com o uso de uma determinada técnica. Por exemplo, se eu precisar avaliar a função ventricular esquerda e também conhecer a anatomia das artérias coronárias, minha opção atual será pelo cateterismo cardíaco, mesmo se tratando de um exame invasivo, de maior risco e maior custo. Para nos ajudar nessas escolhas, é que são publicadas, periodicamente, diretrizes de conduta, baseadas em grandes estudos. É importante que o médico as conheça.
Qual é a relação custo-benefício do exame complementar?
Não podemos nos esquecer do princípio da justiça social. Trabalhamos com recursos finitos, que devem ser utilizados da melhor maneira
O uso inadequado de tecnologias sofisticadas e caras poderá desviar recursos que, se fossem melhor alocados, certamente, estariam empregados em programas de prevenção ou promoção da saúde - com alcance social muito mais expressivo.
Aqui, aplica-se uma máxima atribuída a um abade franciscano, que viveu na primeira metade do século XIV, chamado Guilherme de Ockham (1290 - 1349). Ela ficou conhecida como a "Navalha de Ockham". No contexto em que foi escrita, valorizava a simplicidade na construção das teorias, e, em latim, expressava-se como: Frustra fit per plura quod potest fieri per pauciora, (É vão fazer com mais o que se pode fazer com menos.) No uso corrente, passou a ser conhecida também como Princípio da Parcimônia. Precisamos estar atentos a ele. O pedido do exame complementar deverá ponderar o custo do procedimento, e, sempre que possível, se valer do que estiver mais em conta. Importante! Custo não é só o financeiro. Ansiedade, dor, desconforto, constrangimentos também são custos para o paciente e precisam ser ponderados.
Quais os locais disponíveis para o paciente fazer o exame? A qualidade de atendimento é boa? A informação produzida é confiável?
Trata-se de uma questão delicada, principalmente no contexto de pacientes vinculados aos planos de saúde, que trabalham com poucas opções referenciadas. Geralmente, os exames complementares usados na cardiologia, principalmente os de imagem, envolvem tecnologias sofisticadas que requerem treinamentos constantes de quem as opera e de quem as interpreta.
O resultado dependerá, portanto, de características do equipamento, do operador e de quem faz a análise dos dados obtidos. Em algumas situações, é preferível se valer de um exame com menor potencialidade diagnóstica, mas de procedência confiável, que de um exame sofisticado, mas cujo resultado não confiamos.
Por outro lado, é importante saber que algumas características próprias do paciente também podem limitar ou tornar o exame complementar inadequado. Se, por exemplo, ele for portador de um enfisema pulmonar, dificilmente será um bom candidato para estudo ecocardiográfico transtorácico.
Precisamos, assim, identificar essas características antes de indicar o exame mais recomendado para cada caso.
No meu pedido de exame, estou explicitando os dados clínicos que podem ajudar a direcionar melhor a execução do teste?
Essas informações, muitas vezes, são fundamentais para quem executa o teste. Elas podem orientar uma busca mais detalhada da resposta a uma suspeita clínica. Elas facilitam a interpretação, contextualização, e, freqüentemente, abreviam o tempo de execução do procedimento, com conseqüente menor risco e desconforto para o paciente.
Diante de todas essas considerações em relação aos testes de diagnóstico, com o resultado em mãos, a pergunta fundamental é: Ele se correlaciona bem com o quadro clínico do paciente? Mesmo contanto com o brilho das novas tecnologias, não podemos nos esquecer do balizamento que nos vem pelas luzes do passado, segundo o qual: "A arte compõe-se de três termos: a doença, o doente e o médico" (Epidemias, I, 5). É o célebre Triângulo Hipocrático. Ele nos pede para compreendermos a doença na individualidade do paciente.27 O que se deseja de nós não é pouco, mas é sublime: conhecimento, sabedoria e humanidade.
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