ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
História da obstetrícia no Brasil: o fracasso da Escola de Obstetrícia para Mulheres, no Rio de Janeiro, 1832
Obstetrics History in Brazil: the Obstetrics School for Women's failure, in Rio de Janeiro, 1832
Anayansi Correa Brenes
Socióloga, pós doutora pelo Colégio de França,professora associada - nível 1 - do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG
Endereço para correspondênciaProfessora Anayansi Correa Brenes
Av. Professor Alfredo alena, 190 - 8º andar - NEMES - 818 Bairro: Santa Efigênia
CEP: 30.130-100 BH/MG
E-mail: brenes@medicina.ufmg.br
Resumo
Contemporaneamente, no Brasil, abre-se a discussão do parto humanizado e ecológico, em um fórum político associado por vezes às questões da modernidade. Neste viés, a prática médica obstétrica sofre uma série de questionamentos, sendo denominada de violenta junto às gestantes, seja pelo uso excessivo dos instrumentos cirúrgicos, seja pelas estatísticas alarmantes da cesariana. Neste artigo, tenta-se trazer novos elementos importados do olhar cruzado da Sociologia com a histórica, na tentativa de auxiliar o leitor na compreensão das marcas deixadas no social, da luta pela ocupação histórica da prática do parto e de seus cuidados no século XIX. Que marcas são essas? Será que a História tende a se repetir nos dias atuais? Se sim, de que maneiras?
Palavras-chave: História da Medicina; Historiografia; Saúde Pública/história. Saúde da Mulher/história.
INTRODUÇÃO E HISTÓRIA
Francisco Júlio Xavier (1809 - 1856) era filho de um médico da Câmara Imperial. Embora aprovado para cursar seus estudos em Medicina, pela Academia Médico - Cirúrgica do Rio de Janeiro, ao concluir o Ensino Médio, em 1827, seguiu para Paris, na França, obtendo o título de Doutor em Medicina, em 1831.
Quando, de seu retorno, segundo Madame Durocher, "o terreno para atuar na arte [dos partos e de seus cuidados] já tinha sido preparado pelos Doutores. João Alves Carneiro, Antônio Martins Pinheiro, Domingo dos Guimarães Peixoto, Joaquim Cândido Soares de Meirelles, João Fernandes Tavares, Octaviano Maria de Almeida Rosa e, ainda jovem, porém já distinto parteiro, Dr. José Maurício Nunes Garcia".1
Júlio Xavier concorreu com José Maurício Nunes Garcia e José Cardoso de Menezes (o candidato preferido pelo diretor da escola), no concurso para a cadeira de Partos, no primeiro ano da recém-criada Faculdade de Medicina de Rio de Janeiro. Embora tivesse empatado nas notas com José Maurício, Júlio Xavier tomou posse da cadeira, em abril de 1833.2
Em um rápido resumo biográfico, mencionase que Francisco Júlio Xavier foi membro da Academia Imperial de Medicina, deputado provincial do Rio de Janeiro, médico da Casa dos Expostos, cavaleiro da Ordem de Cristo, oficial da Ordem da Rosa, escreveu oito trabalhos,"embora morresse sem deixar a prova de sua competência didática",2 ou seja, seus escritos não tinham grande valor científico, o que destoava do grande reconhecimento obtido em outras esferas da vida pública.
Júlio Xavier foi uma das peças importantes para se compreenderem os rumos tomados pela ‘arte obstétrica', no Brasil do século XIX, contexto em que a arte dos partos começava a ser implantada no Brasil. Por quê? Para o mesmo período em que assume oficialmente a cadeira de Partos, entre 1832-1856, dois outros projetos estavam sendo encaminhados para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Todos os dois, inclusive, com o aval da Monarquia instalada no Brasil em 1808 e de todas as princesas da corte, bem como "das senhoras mais distintas da corte".3
Os projetos tinham, como intuito, abrir a formação para parteiras diplomadas no Brasil, dentro dos preceitos da Ciência, denominadas sages-femmes (modelo importado da França). O Dr Júlio Xavier, tendo passado pela Faculdade de Medicina de Paris, sabia o que por lá tinha se passado. Com esta experiência em Paris, compreende-se muito das decisões por ele tomadas aqui, no Brasil, ou por ele apoiadas.
Este artigo tentará resgatar evidências deixadas na história da Medicina no Rio de Janeiro, no início do século XIX, em uma clara alusão aos projetos, idéias, grupos que ficaram de fora da História oficial desta instituição, a saber "o projeto de uma Escola de Obstetrícia para Mulheres", assim como a influência da História da Medicina francesa, na obstetrícia brasileira, neste período.
ESCOLA NACIONAL DE OBSTETRÍCIA PARA MULHERES BRASILEIRAS: DUAS VERSÕES COM UM MESMO OBJETIVO
O projeto original do cirurgião militar Florêncio Estanislao Le Masson3, francês naturalizado brasileiro - segundo ele, para poder "servir à Marinha de guerra" -, foi introduzido na Câmara da cidade do Rio de Janeiro, no dia 19 de fevereiro de 1832. Aqui, propunha a primeira Escola Maternidade3, concomitante à constituição da que seria a primeira Escola Médica do Rio de Janeiro.
O projeto de Le Masson seria a cópia do modelo da Escola de Partos de Paris?
Havia alguns pontos parecidos no seu projeto: neste se receberiam alunas vindas de todo o território nacional, para permanecerem como internas, durante dois anos de curso (na França, o período fora de seis meses, com direito à renovação - ou seja, um ano). O diploma seria de Parteiras Diplomadas.
Essas alunas cumpririam uma grande missão. Ao realizar esses estudos, do que seria a Medicina da época nas práticas de atenção da grávida no parto e de atenção do recém-nascido, elas sairiam preparadas para enfrentar as crendices, sobretudo "aquelas relacionadas às manobras do parto"3, realizadas pelas chamadas curiosas, nos lugares mais remotos e distantes do Brasil - priorizando, sobretudo, a prática de cuidados aos recém-nascidos que, segundo relatos da época, provocavam muitos estragos no crescimento populacional de todo o território.
Após dois anos de estudo, essas jovens mulheres, com idades entre 14 e 21 anos, seriam capazes de:
1. Conhecer, preparar e manipular as drogas mais simples que poderiam ser aplicadas no parto, bem como nos acidentes que, ordinária ou extraordinariamente, o seguem. Esta vantagem faria com que elas começassem a praticar os ensinamentos onde não houvesse botica e nem boticário.
2. Aplicar sangria antes, durante e depois dos partos, dentro dos preceitos médicos.
3. Aplicar vacinas, sobretudo para combater a bexiga (referência à varíola). Elas portariam o instrumento da vacinação (uma espécie de seringa gigante) e estariam autorizadas a "requerer e conservar o vírus vacinal"3 que o Dr. Le Masson reproduziria.
A indicação das alunas seria feita pelos poderes políticos locais da província, sendo estes também os que deveriam pagar os custos dos estudos, calculado na quantia anual de 400 mil contos, pagos adiantados quadrimestralmente, tal como no modelo francês.
O estabelecimento indicado para estes fins estava localizado na rua Espírito Santo, nº 40 - Largo do Rocio, no Rio de Janeiro, onde foi aberto para estes fins desde nove de janeiro de 1833, quando a Escola começaria a funcionar.3
As normas disciplinares do estabelecimento, bem como a condução das alunas até ele, eram extremamente rigorosas. No ponto 12º do Projeto, dizia-se "no hospital, como na Escola, homens não são admitidos a visitar o interior deste, salvo os casados, os quais serão recebidos num quarto particular, e este só no ato de acompanhar sua esposa".3 Le Masson seria um dos mestres, sobretudo dando a parte teórica deste curso, com Manual Obstétrico produzido sob sua autoria.
Após esse período, as alunas voltariam para o interior de todo o país, em condições de praticar conscientemente a obstetrícia.
Le Masson tentava, com este projeto, introduzir um modelo de atendimento similar ao modelo francês, como dizia anteriormente, mas objetava: "As escravas não serão admitidas ao ensino".3
Esta barreira à escrava negra era de se esperar, pois, embora as crendices e manobras bárbaras eram atribuídas a estas, na prática, muitas delas eram portadoras de saberes reconhecidos no parto e seus cuidados reconhecidos pela sociedade da época.4
Eu ofereço em ensinar a arte de partejar para a vantagem do Brasil; para este fim, estabelecerei um hospital no qual serão admitidas só mulheres para parir. O governo de cada província mandará ao meu hospital, para serem educados nesta arte, os números de jovens mulheres que julgar conveniente, proporcionalmente ao número de suas cidades e da população de sua província, ou segundo o modo que indicarei mais abaixo.7
Le Masson pensou, inclusive, em uma solução para o analfabetismo das nossas brasileiras, propondo "que um mestre fosse todos os dias à casa do estabelecimento para ensinar a ler, escrever e contar".3
A igreja também exerceria um importante papel nesta formação, pela presença de um padre, que celebraria os serviços religiosos todos os domingos, bem como o sermão e os outros serviços (batismo, extrema-unção, etc.).
No final dos dois anos de estudo, haveria um exame solene na presença do Ministro do Império e diante de uma comissão escolhida entre os Lentes da Academia de Medicina. As alunas, reconhecidamente instruídas, receberiam o grau e o diploma, voltando, após a colação de grau, às suas respectivas províncias.3
A Escola de Parteiras proposta por Madame Berthout: "polícia da maternidade"
Poucos dias depois do envio do projeto do Dr. Le Masson à Câmara, tem-se o de Madame Berthout5, parteira graduada da Faculdade de Medicina de Paris, que encaminhava idéias similares, apresentando-as no formato de um "Memorial para se consultar" à Assembléia Legislativa que, por sua vez, enviou-as para a Comissão de Saúde Pública da Câmara, em 27 de julho de 1832.
Neste documento, Mme. Berthout apresentouse como Parteira Mestra da Santa Casa da Misericórdia, cargo ocupado por ordem da Imperatriz Amélia, e seu projeto advogava "ousadamente"5, segundo ela, pelo crescimento demográfico em todo o território brasileiro.
Seria este projeto diferente daquele encaminhado pelo Dr. Le Masson? Mme. Berthout afirmava em certo trecho:
Cinco anos de residência aqui na minha profissão convenceram-me que, se a população do Brasil não chega ao ponto do desenvolvimento em que se levantam diversas nações, a este respeito as mais favorecidas, assim como a Prússia, que dobra sua população todos os 10 anos, ou os Estados Unidos, que obtêm o mesmo resultado todos os 20 anos, isso depende exclusivamente de causas locais que me proponho a definir:
1ª - Falta de uma lei civil que obriga à declaração do nascimento de qualquer ente, dentro das 24 horas do parto;
2ª - A falta de lei ou execução dela, no caso da escravidão, que determine os direitos do senhor para com seus escravos.5
Referia-se à falta de aplicação do projeto que José Bonifácio redigiu para a Assembléia Constituinte do Brasil, desde 1822. Neste, o artigo XVIII, teoricamente, protegeria a escrava durante o período da maternidade. Continuando: "3ª - Por fim, a falta de uma lei sobre a maternidade, que estabeleça uma Escola Nacional de Obstetrícia, teórica e prática".5
Mme. Berthout queria o mesmo que Le Masson, uma Escola Nacional de Obstetrícia para Mulheres, mas também explicava que esta teria o intuito de uma "boa polícia sobre a maternidade"5, o que era a outra face mencionada no projeto: vigilância e controle sobre a mulher grávida, no parto.
O número elevado de abortos, a prática de infanticídio e abandono de crianças começavam a incomodar a sociedade da época, embora, como relate Mme. Durocher, os abortos nunca foram registrados, pelo menos até 1868, na clínica de Partos dessa parteira.6
O projeto de Mme. Berthout visava atrair jovens alunas, desprovidas dos prejuízos da velhice e da sua corrupção, recrutadas do recolhimento da Santa Casa de Misericórdia, ou seja, menores abandonadas, de preferência com dote, o qual seria ajuntado à profissão de parteira, segundo a idéia dada pela Imperatriz Amélia, para pagar seus estudos durante dois anos. Uma escola interna, dirigida por pessoas de costumes honestos e de moralidade conhecida e comprovada. Este perfil de egressas destoa do perfil advogado por Le Masson, ou seja, mulheres indicadas pelo poder local, e coincidia com um dos perfis das egressas, recrutadas na França.
Ao menos durante 12 anos do período Napoleônico (1802-1814), a Escola de Partos de Paris graduou meninas órfãs (proporção de 8% do total das matriculadas), mas também acolheu jovens indicadas pelo poder local, assim como filhas de pequenos comerciantes e burgueses.4,7
Enfim, um exército de mulheres a serviço do Império5, na implantação inicial de políticas do nascimento.
SILÊNCIOS, DECLÍNIO E ARQUIVAMENTO: TUTELA MÉDICA
Tudo parece indicar que ambos os projetos concorreram na liderança da atenção à saúde da mãe e do recém-nascido, em prejuízo da que se chamaria Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
A comissão de Saúde Pública julgou-o. Provavelmente, concedeu parecer negativo, com base no que o Dr. Júlio Xavier expôs no período. No mesmo ano, promulgou a lei de 3 de outubro de 1832, reconhecendo como única autoridade médica para expedir diplomas a recém-criada Faculdade de Medicina e mais nenhuma outra. Uma vez implantado o Ensino Médico, foi criado um curso para as parteiras diplomadas, no seu interior e sob a sua tutela, descaracterizando, desta forma, os objetivos projetados pela Escola Nacional de Obstetrícia para Mulheres, anteriormente citados.
A lei que criou a Faculdade de Medicina, segundo Magalhães, ficou inconclusa, faltando os dispositivos regulamentares. Diante disso, a congregação da recém-criada Faculdade de Medicina passou a aplicar as penalidades do regulamento da Faculdade de Medicina de Paris, que vigorava desde três de julho de 18313, na Faculdade do Rio.
Em 26 de março de 1836, discutiu-se, no interior da Sociedade de Medicina (atual Academia Nacional de Medicina), o projeto de Le Masson. Não apareceram pistas ou notas do que se passou neste momento, no entanto, o teor dessa reunião só foi divulgado 13 anos depois. Tudo indica que o Dr Júlio Xavier2 se opôs ao projeto de Le Masson, logo que o leu. A protelação, diz, "era um meio silencioso e proposital de indeferir-lhe a pretensão"2
Em um largo documento, escrito por ele em 1845, explicitou claramente o porquê daquela "estranha atitude"2:
Uma casa de maternidade, onde sejam recolhidas as mulheres que procuram os socorros da arte, quer no estado da gravidez, quer na ocasião do parto, quer depois, e onde sejam praticamente instruídos os alunos da Escola de Medicina e, principalmente, as mulheres que se dedicam à arte de partejar, é um estabelecimento de necessidade muito urgente. Esta necessidade foi sentida em todos os tempos. A Europa culta conta muitos estabelecimentos desta natureza e, nos estatutos da Faculdade de Medicina, não escapou, nem podia escapar, esta idéia, que vem consignada no art. 17, § 1º, no qual se diz - "Haverá mais uma clínica de partos, compreendendo moléstias dos recém-nascidos, logo que exista uma casa de maternidade".2
No obstante, após esta abertura de discurso, conclui:
1º, que temos necessidade de uma maternidade, não só em relação à população, como em relação à instrução pública (...); 2º, que não apresentando o Sr. Le Masson plano de seu hospício, não posso, acerca de sua organização, avançar nenhuma proposição pró nem contra; 3º, que do regulamento que junta só se pode depreender que seu fim é montar uma escola normal da arte de partos, para parteiras, da qual quer ser ele o Lente, assim como a autoridade médica que passe diploma, sem influência do governo ou da Faculdade de Medicina; 4º, que esta pretensão é contrária à lei de três de outubro, que só reconhece como autoridade médica a Faculdade de Medicina, e a mais ninguém, e por isso deve ser indeferida a sua pretensão.
No 8º inciso, ele afirma que não é de uma escola normal que precisamos, "mas sim de um hospício de maternidade, onde possa haver ensino prático, não só para as parteiras, como também para os alunos do sexo masculino".6
Júlio Xavier trazia para o Brasil o cenário europeu do início do século XIX: os homens querendo entrar na arte dos partos e seus cuidados e as parteiras construindo uma escola de partos só para mulheres.4,7
O Dr. Fernando Magalhães, ao examinar os documentos de época deixados por Le Masson, consegue perceber que "o estabelecimento projetado por este tinha todos os aspectos dos estabelecimentos modernos hoje"2 (o texto do Dr. Magalhães foi escrito em 1932).
Magalhães não compreende por que "a idéia de Le Masson, evidentemente boa, não fosse aproveitada por outro com idoneidade, com títulos, com direito e mesmo com a obrigação a executar"2, no período.
Tudo leva a indicar que foram "forças conservadoras" que apoiaram o Dr. Júlio Xavier no arquivamento da Escola Nacional de Obstetrícia para Mulheres.
Como anunciado no início, dois dos objetivos do projeto do atendimento ao parto eram o aumento populacional e o registro civil do recém-nascido, independentemente da raça da parturiente, portanto, sem forte viés eugênico. Várias são as evidências que sustentam tal afirmação.
Do projeto do cirurgião Florêncio Estanislao Le Masson consta o modelo de carta de admissão no hospital para mulheres do parto e ensino de parteiras.
Nesta carta, ratificava-se o atendimento ao parto igualitariamente, permanência de 21 dias para todas as que ali se apresentassem portadoras de suas inscrição, quer "seja livre, quer seja escrava".8
Nos pontos disciplinares do hospital, entre as regras observava-se que a doente receberia do estabelecimento os caldos, comida, medicinas, curativos, banhos e tudo que fosse preciso, conforme seu estado de saúde. Tal nível de detalhamento não contempla, em nenhum item, qualquer referência de limitação discriminatória, de acordo com a cor ou com a condição social da parturiente.
Mme. Berthout, em seu Memorial para consultar5, onde explicitava claramente sua preocupação com a necessidade de crescimento do Brasil, ao longo de todo seu texto, não fez também qualquer restrição de atendimento e jamais menciona que uma raça deveria ser estimulada em detrimento da outra.
Nas informações constantes dos anúncios publicados pela parteira em jornais e no Almanaque Laemmert, também não se constata qualquer evidência discriminatória.9
Como último argumento, destaca-se o fato de que. nas memórias das parteiras mais famosas que atendiam à elite da cidade, como é o caso de Mme. Berthout e Mme. Durocher, esta última, inclusive, sendo parteira da Imperatriz, deixa registros de atendimento igualitário às mulheres brancas e negras, livres ou escravas.
Em considerações sobre a clínica obstétrica10, Mme. Durocher destaca dez observações clínicas do registro de 5.500 partos realizados por ela, de 1834 a 1887. Na oitava observação, embora não date o caso, relata o registro clínico de uma negra mina, quitandeira, de 30 anos presumíveis, primípara, que se achava no terceiro dia de trabalho de parto, nas mãos de uma comadre, antes da sua entrada para a Casa de Saúde onde Mme. Durocher atendia.
A parteira, que naquele momento dirigia a enfermaria do parto da Casa de Saúde de Nossa Senhora da Ajuda, pertencente ao Dr. Eiras, lhe deu o devido atendimento - tal como prestava aos outros casos de mulheres brancas ou livres, e, nesse momento, descreve em detalhes a observação clínica realizada, a prescrição e todo o tratamento que aplicou à gestante, no intuito de salvar a paciente. Apesar de todos os seus esforços, a parturiente acabou morrendo.
Segundo Engel11, a perspectiva eugenista ficará explícita no Brasil, juntamente às questões do ordenamento da cidade, entre 1845 e 1890, quando se revela:
(...) uma preocupação no sentido de promover a construção de um conhecimento médico aplicável às condições específicas da sociedade brasileira (...). Durante o mesmo período, os temas relacionados às condições de higiene da cidade do Rio de Janeiro possuem peso considerável. (...) As perspectivas eugênicas já começam a ser difundidas no interior da comunidade médica do Rio de Janeiro, o que pode ser observado, por exemplo, pelas questões propostas para os anos de 1866 e 1869, respectivamente: que influência podem ter os casamentos consangüíneos sobre o intelectual e moral da espécie humana? O cruzamento das raças acarreta e produz a desagregação intelectual e moral do produto híbrido resultante?11
Após a segunda metade do século XIX, medidas controladoras aparecem explicitadas nas posturas que regulamentam e fiscalizam os locais de atendimento "às doenças femininas bem como do parto", embora lhes falte a força policial para implementá-las.
Mas, somente no final do século XIX, o pensamento eugenista divulga as vantagens da imigração sobre as de uma política natalista.
Na revista Semanal de Medicina e Cirurgia, em um artigo de 1896, no período da instauração da República do Brasil, era afirmado que "a imigração em países ávidos por progresso, como o nosso, sendo reconhecida como mais benéfica que o nascimento, pois se amenizavam as características indígenas (...)"12, leiam-se, também, negras.
Por outro lado, o arquivamento do projeto da construção da maternidade proposta pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1898, fortalece a hipótese de que o projeto de crescimento populacional, a partir da política social da nova República, nas classes pobres do Rio (e do Brasil), também não teve apoio da recém-criada República Brasileira.13
E apesar do arquivamento dos projetos de Le Masson e de Mme Berthout, o projeto médico idealizado pelo Dr. Julio Xavier também não se concretizou. A falta de uma escola de obstetrizes para mulheres fragilizou, ainda mais, o já deficiente ensino da prática médica obstétrica brasileira do século XIX; deficiências que se arrastaram para o século XX e que ainda são sentidas na formação dos estudos médicos nos dias de hoje.
ANEXOS
REFERÊNCIAS
1. Durocher MJM. Deve ou não deve haver parteiras. Ann Brasilien Med Rio de Janeiro. 1871;22:256-271,289-302,329-336.
2. Magalhães F. A Obstetrícia no Brasil. Rio de Janeiro: Leite Ribeiro;1922.
3. Magalhães F. O Centenário da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1832 1932). Rio de Janeiro: Typ A.P. Barthel; 1932.
4. Correa Brenes A. Um Olhar brasileiro sobre o caso de Paris: o conflito parteiras & parteiros e seus desdobramentos no Rio de Janeiro, século XIX [Tese]. Niterói: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFF; 1996.
5. Berthout E. Memorial para se consultar. Rio de Janeiro: Sinhot-Plancher e Cia; 1832. (Seção Obras Raras; Code 99A,5; Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).
6. Bourel-Roncièe. Pathologies de Rio de Janeiro. La station navale du Brésil et de la Plata. Arch Méd Navale 1872;17:(3 partie):378-85.
7. Correa Brenes A. Nascimento e declínio da Escola de Parteiras Diplomadas Francesas: 1802 - 1877. Rev Méd Minas Gerais 1999;9:39-45.
8. Documento 47.1.49. Requerimento do Sr Florêncio Estanislau Le Masson, sobre o hospital para mulheres de parto e ensino de parteiras, 1833. Total de folhas 08. Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro.
9. Almanaque Laemmert. Veja-se a publicidade dos profissionais parteiras diplomadas a partir da década de 1870. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. (Cód. PR-SOR - 165).
10. Correa Brenes A. Considerações da clínica obstétrica. Ann Acad Med Rio de Janeiro. 1887 jan./mar.; 6(3):287.
11. Engel M. Meretrizes e doutores. Saber médico e prostituição no Rio de Janeiro (1840-1890). São Paulo: Brasiliense; 1989.
12. O Brasil médico. Rio de Janeiro: 22 de fevereiro de 1896. Biblioteca da Academia Nacional de Medicina; Rio de Janeiro. Revista Semanal de Medicina e Cirurgia.
13. Documento nº. 46.2.32 e 46.2.34. Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro.
Copyright 2024 Revista Médica de Minas Gerais
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License