ISSN (on-line): 2238-3182
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CAPES/Qualis: B2
Analogias em Medicina - parte I
Medicine Analogies - part I
José de Souza Andrade Filho
Patologista, professor de Patologia na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, ex-professor de Patologia Geral da UFMG, membro da Academia Mineira de Medicina
Endereço para correspondênciaJosé de Souza Andrade Filho
Praça Carlos Chagas - 55/1502
CEP 30170-000
Belo Horizonte - MG
Resumo
Trata-se da uma compilação de verbetes que, por analogia, passaram a ser utilizados como termos das diversas especialidades médicas. Essa compilação vem sendo efetuada ao longo dos anos de exercício das atividades de professor e de anatomopatologista. Os verbetes estão organizados em ordem alfabética e, devido ao seu número, a publicação dar-se-á em três partes, sendo todas completas.
Palavras-chave: Medicina; Educação Médica; Terminologia
INTRODUÇÃO
Várias locuções e termos comparativos estão espalhados nas diversas especialidades médicas, sendo criados em grande velocidade com o progresso da ciência. Este trabalho tem sido de investigação e pesquisa há cerca de 10 anos, na tentativa, sempre que possível, de fazer uma enxertia em cada tema, de modo a torná-lo mais interessante e atraente.
ATOL
É coroa de coral erigida sobre um pilar vulcânico, que forma um círculo, ou anel, mais ou menos contínuo, assemelhando-se a uma ilha muito rasa que encerra uma lagoa. O coral é formado pelas estruturas calcárias de minúsculos animais marinhos, que se desenvolvem em colônias. Além da forma circular, o atol pode apresentar a figura de uma ferradura. Os atóis encontram-se aos milhares nas regiões tropicais dos Oceanos Índico e Pacífico.
CÓDIGO DE BARRAS NAS UNHAS
Código é compilação sistemática ou compêndio de leis, normas e regulamentos. Em informática, existe o código de barras, extremamente útil, sendo um padrão usado para representar números e caracteres, por meio de um conjunto de barras paralelas de diferentes larguras, que podem ser lidas por uma máquina de leitura óptica (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). É amplamente usado na identificação de diversos produtos, sobretudo comerciais.
Entre os distúrbios pigmentares da unha, destaca-se a melanoníquia estriada ou longitudinal (ML). Nesta há faixas ou estrias pigmentadas paralelas e longitudinais ao longo da lâmina ungueal, semelhantes às linhas de um código de barras. A criação dessa interessante comparação é do Dr. Geraldo Barroso de Carvalho, eminente dermatologista em Barbacena, MG. A ML é alteração muito comum em indivíduos de pele muito pigmentada, comprometendo até 90% dos afro-americanos adultos. É mais rara em caucasianos. Resulta da presença de melanina no interior da lâmina ungueal e pode ser causada por ativação ou hiperplasia dos melanócitos da matriz ungueal, por um nevo melanocítico ou até por um melanoma maligno. Clinicamente, a unha apresenta uma ou mais faixas pigmentadas longitudinais, estendendo-se da prega ungueal proximal até a margem distal. A cor das faixas varia do marrom claro a preto e a largura de alguns milímetros a toda a superfície da unha. A microscopia de epiluminescência pode ser usada para distinguir faixas de ativação dos melanócitos daquelas provocadas por nevo ou melanoma. Contudo, o exame histológico continua sendo o padrão ouro para diagnóstico diferencial dessas entidades referidas. A ML pode ainda estar associada a várias doenças sistêmicas.
COURAÇA
É armadura feita de couro ou de metal para proteger as costelas e o peito, invólucro protetor de certos animais e revestimento de aço de navios encouraçados.
Alfred Armand Louis Marie Velpeau (1795-1867), cirurgião em Paris, teve, em 1838, sua atenção voltada para um tipo especial de acometimento canceroso da pele mamária e que ele denominou de maneira notável de câncer em couraça (Fr. cancer en cuirasse). Em seguida, um resumo da sua descrição: "o câncer envolve uma ou várias áreas da pele e do subcutâneo. A área apresenta-se dura, áspera, esticada e espessada. A pele parece que foi curtida ou substituída por um pedaço de couro. Eu examinei pacientes cujas mamas estavam completamente cobertas por placas e nas quais a rigidez se estendia ao oco axilar, à região clavicular e cruzava o esterno até o outro lado. As pacientes não se incomodavam, pois não havia dor, nem exsudato. O médico, contudo, não deve se deixar enganar quando notar este quadro no tórax de mulheres. A despeito de seu aspecto benigno, trata-se de câncer da pior espécie. As placas, a princípio separadas, se fundem e se tornam cada vez maiores e mais largas, formando uma verdadeira couraça na parede torácica" (A. Velpeau, Traités des Maladies du Sein, 2a, Ed. P.404, 1858, Paris, Masson, conf. cit. in Haagensen, Diseases of the Breast, 2ª. ed. 1971- WB Saunders). Sabe-se atualmente que essas alterações resultam de edema e fibrose secundárias a um câncer invasivo e de prognóstico sombrio, como já previra Velpeau. Só tardiamente há, de fato, infiltração carcinomatosa da pele.
GIRINO
Do grego e latim gyrinus: embrião de rã é designação comum às larvas de anfíbios anuros, de cabeça e corpo ovóides, cauda longa e boca com aparato córneo usado para raspar e morder algas, cujo desenvolvimento se processa, na maioria dos casos, dentro da água.
Um dos tumores benignos da pele é o siringoma (gr. syrinx: tubo; cana talhada, flauta de Pã, canudinho). É mais comum no sexo feminino. Clinicamente, apresenta-se como pequenas pápulas da cor da pele ou amareladas, principalmente nas pálpebras e regiões infrapalpebrais, embora possa ocorrer no tronco, coxas e vulva. Ao exame microscópico é formado por numerosos e pequenos ductos, revestidos, em geral, por dupla camada de células, contendo debris amorfos e entremeados por fibrose. Em alguns ductos as células epiteliais proliferam e formam pequenos prolongamentos ou excrescências em vírgula, à guisa de pequenas caudas, dando-lhes o aspecto de girinos ( ingl. tadpoles appearance). Algumas células metaplásicas e, principalmente, cancerosas podem conter núcleo volumoso e hipercromático, com expansão do corpo celular e com prolongamento do citoplasma tipo cauda, lembrando também a forma de girino. É o que pode ser observado em esfregaços do carcinoma epidermóide do colo uterino, do pulmão e de outros órgãos revestidos por mucosa escamosa ou sujeitos à metaplasia. Portanto, a imagem de girino é útil ao reconhecimento de certos tumores benignos e malignos, tornando-se uma "dica" para o diagnóstico cito ou histopatológico.
GUARDA-CHUVA NA BEXIGA
O urotélio - epitélio de transição especializado que atapeta a superfície interna da bexiga - é um tipo especial de revestimento, único no organismo de mamíferos em geral, com grande plasticidade e variadas funções. Representa a primeira linha de defesa da bexiga e a interface entre agentes patogênicos e mecanismos defensivos. Suas funções incluem controle da permeabilidade, respostas imunes e comunicação célula a célula, às vezes com propriedades neurônio-símiles, segundo alguns pesquisadores. Atua como uma barreira que mantém a composição iônica e o soluto da urina e impede que patógenos e metabólitos tóxicos penetrem a parede vesical. É estratificado e composto por três tipos celulares: células basais, intermediárias e células "umbrela". Estas são relativamente volumosas, com amplo citoplasma eosinofílico e núcleos também grandes e algo irregulares, porém com nucléolos inconspícuos. Não são nem pavimentosas nem prismáticas, mas globosas e protrusas.
O urotélio sofre uma distensão dramática durante a fase de enchimento da bexiga. Ao ser estirado, torna-se adelgaçado, assemelhando-se ao epitélio pavimentoso estratificado não-queratinizado. Seu arranjo arquitetural permite que a mucosa suporte um estiramento significativo sem que suas células se separem ou se rompam. Por isso, é um tipo de epitélio bem apropriado para revestimento de certas estruturas submetidas à distensão, como a bexiga. Muitas dessas células superficiais referidas, além de grandes e globosas e, às vezes, multinucleadas, como que se abrem e cobrem algumas células menores situadas na camada epitelial mais profunda. Por isso receberam a denominação de "células guarda-chuva" (ingl. umbrella cells). São também resistentes à urina, que as banha constantemente.
A microscopia eletrônica dessas células revelou características especiais, tais como espessamentos em placa reforçando a membrana celular, às vezes associados a filamentos citoplasmáticos, e uma variedade de conexões intercelulares que mantêm forte coesão intercelular. No estado não distendido a parte luminal de sua membrana apresenta reentrâncias irregulares. Essas especializações permitem que elas suportem os rigores do ambiente urinário e mantenham uma barreira entre o sangue e a urina, à medida que a bexiga se expande e se contrai. Concluiu-se, para nosso gáudio, que todos tem alguns milhares de minúsculos guarda-chuvas vesicais, protegendo contra tempestades infecciosas e tóxicas presentes eventualmente na urina.
"LADRÃOZINHO"
Na pele. O furúnculo é infecção da pele, circunscrita a um folículo pilossebáceo, causada por estafilococo e que se apresenta sob a forma de carnicão no centro da área inflamada. Ocorre destruição do pêlo e da glândula sebácea, com formação de cicatriz. Clinicamente, o furúnculo aparece como nódulo eritematoso, doloroso e quente. Houaiss (Dicionário da Língua Portuguesa) registra: Etim. lat. Furunculus,i propriamente "ladroeiro, broto secundário da videira que se desenvolve a expensas dos ramos principais, furtando-lhes a seiva; como, no momento em que nasce esse broto, a videira apresenta um botão, deu-se, por analogia, o mesmo nome a um botão de pele (furunculus: diminutivo de fur, furis: ladrão; ingl. a little thief). A sinonímia popular do furúnculo é rica e inclui "bichoca, bichoco, cabeça-de-prego, frunco, fruncho, frúnculo, leicenço, nascida, nascido". O termo antraz referese a um conjunto de furúnculos (anthrax, cis "terra vermelha", gr. "antraks, akos" "carvão, carbúnculo"), apresentando-se como área eritematosa, edemaciada, sobre a qual surgem múltiplos focos de drenagem de exsudato purulento (pus).
Ainda relacionada ao furúnculo, há a rara síndrome hiper-IgE (hiperimunoglobulinemia IgE), na qual ocorrem infecções recorrentes, incluindo abscessos na pele por estafilococos (S. aureus). Davis et al., em relato científico sobre pacientes com hiper-IgE, criaram o termo síndrome de Jó (Davis SD, Schaller J, Wedgwood RJ. Job's syndrome: recurrent "cold" staphylococcal abscesses. Lancet 1966: 1013-15), baseando-se no personagem bíblico que, castigado, resistiu, com grande paciência e coragem, a uma grave "furunculose crônica e recidivante da cabeça aos pés".
MOSAICO
A idéia de dispor pedaços de pedra coloridas sobre uma base de argamassa, formando desenhos decorativos, parece ter surgido no Oriente. O Livro de Ester, na Bíblia, relata que o rei Ahasuerus possuía um piso decorado com desenhos de diversas cores e tudo indica que se tratava de mosaico. Por outro lado, os arqueólogos encontraram nas ruínas de Ur, antiga cidade da Caldéia, um painel feito por volta do ano 3500 a.C. com aspecto de mosaico. Contudo, o termo só foi criado bem mais tarde, pelos gregos, que consideravam esse tipo de arte "uma obra de paciência, digna das musas" (Enciclopédia Conhecer). Uma conceituação atual é a de Houaiss: imagem ou padrão visual criado pela incrustação de pequenas peças coloridas (de pedra, mármore, vidro, esmalte ou cerâmica) sobre uma superfície (uma parede, um piso), aglomeradas e fixadas por um cimento.
O aspecto de ou em mosaico é parâmetro comparativo em diversas situações patológicas. Sem dúvida, uma das mais freqüentes é a usada pelos ginecologistas no estudo colposcópico do colo uterino: a imagem em mosaico resultante de anormalidades entre o epitélio escamoso e as papilas vascularizadas, podendo configurar o mosaico fino e grosseiro, de grande valor propedêutico no reconhecimento das displasias de baixo e de alto grau e do carcinoma cervical.
Em gastroenterologia, a avaliação morfológica das vilosidades entéricas na doença disabsortiva é complemento importante para o diagnóstico. A microscopia estereoscópica (exame com lupa) das biópsias jejunais pode mostrar um contínuo de aspectos da mucosa, variando desde o normal até tornar-se completamente plana, sem projeções vilositárias, passando antes por uma fase de mosaico.
Na doença óssea de Paget (osteíte deformante), as traves ósseas, dispersas em tecido conjuntivo, são envolvidas por osteoblastos e osteoclastos, dispostos lado a lado, com formação e reabsorção simultâneas de osso. Como conseqüência dessa formação e aposição desordenadas, as linhas cementantes se acentuam. A anarquia entre produção e destruição do tecido ósseo acaba criando pequenos fragmentos amoldados e entremeados por linhas de cemento proeminentes: é o aspecto de mosaico, quase patognomônico daquela osteopatia crônica. Eventualmente, também à microscopia óptica, o mesmo mosaico pode ser visto na osteomielite crônica esclerosante, devido a períodos repetidos de reabsorção, seguidos por reparação óssea.
Mosaico em genética: a justaposição, em um organismo, de tecidos geneticamente diferentes, resultantes de uma mutação somática (mosaicismo do gene), uma anomalia da divisão cromossômica que resulta em dois ou mais tipos diferentes de células contendo diferentes quantidades de cromossomos (mosaicismo cromossômico) ou de quimerismo (Dicion. Médico, Stedman).
A radiografia do crânio na osteogênese imperfeita mostra também aspecto em mosaico dos ossos wormianos, que, às vezes, persiste por toda a vida.
Entre as doenças de pele, uma das mais comuns é a verruga viral. Algumas verrugas plantares se manifestam sob a forma de miríades de pequenas verrugas, muito próximas entre si, agrupadas em cacho ou aglomerados superficiais, denominadas verrugas em mosaico.
Até em fitopatologia - ciência que estuda as doenças das plantas - o termo mosaico é designação comum a várias doenças que atacam vegetais diversos, provocadas por vírus, causando um mosqueado nas folhas, com manchas pálidas ou amareladas que contrastam com as áreas verdes normais. Um exemplo é o mosaico-dotabaco causado por um retrovírus.
TACHO DE COBRE BATIDO
Em certas doenças, como algumas anomalias congênitas, o fechamento precoce das suturas cranianas (sinostose) e a continuação do crescimento cerebral provocam compressão do crânio, especialmente da tábua interna. Ao estudo radiológico (radiografia simples), o crânio mostra impressões digitiformes, lembrando o aspecto de metal ou cobre batido, como se vê em tachos artesanais (ingl. "copper-beaten ou beaten-metal appearance"). Ocorre na doença de Crouzon (disostose crânio-facial), na síndrome de Apert (acrocefalossindactilia) e também na rara síndrome de Proteus ("homem elefante"). Em crianças com meningoencefalocele e hidrocefalia, a imagem de tacho de cobre batido indica aumento prolongado da pressão intracraniana, o que reforça o valor propedêutico deste achado radiológico.
VULCÃO
É conduto que liga a superfície da Terra a uma câmara íntima e profunda que fornece o material magmático que aflora à superfície; montanha ou colina cônica feita de material vulcânico, formada ao redor do orifício de vazão que expele ou já expeliu o material magmático (Aurélio).
O queratoacantoma é tumor benigno de pele, de crescimento rápido e consiste de nódulo cupuliforme, firme, bem delimitado, de 1 a 2,5 cm, cujo centro é crateriforme e repleto de material córneo. Esta configuração geométrica vulcânica é muito característica e útil ao diagnóstico clínico e histológico, permitindo diferenciá-lo do carcinoma espinocelular na maioria dos casos. Ainda no espectro comparativo/geológico o vulcão pode apresentar fase ativa, quando em erupção; inativa, quando dormente por longo período; e extinta, com cessação de toda atividade. O ciclo biológico do queratoacantoma é similar, pois tem crescimento rápido de alguns meses, tende a involuir posteriormente (regressão espontânea) e até autocurar-se, deixando apenas uma cicatriz.
É digno de nota histórica e científica, talvez a primeira menção ao queratocantoma. Trata-se da comunicação intitulada "A úlcera crateriforme da face: um tipo de câncer agudo" feita por Hutchinson em 1889 à Sociedade de Patologia de Londres, incluindo observação de oito casos (Hutchinson, J. Morbid growths and tumors. "The crateriform ulcer of the face", a form of acute epithelial cancer. Trans Path Soc London, 40:275-281, 1889). Em seguida, um pequeno trecho da sua descrição: " a forma de doença maligna que devo descrever difere largamente do que se conhece como ulcus rodens... (denominação antiga do carcinoma basocelular)... É uma doença de crescimento muito rápido, enquanto se sabe ser o do ulcus rodens muito lento... Tenho o hábito, há muitos anos, de chamá-la úlcera crateriforme, um nome mais ou menos apropriado, graças ao fato de tomar ela a forma de um tumor grande elevado e então romper-se no centro, formando uma escavação profunda " (bas. em parte: Furtado, TA. Ceratoacantoma e Processos Afins. Tese de Concurso para Professor Catedrático. Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, 1962).
Entre as doenças infecciosas intestinais, uma das mais importantes é a colite pseudomembranosa, causada principalmente pelo Clostridium difficile. As toxinas produzidas por essa bactéria atuam sobretudo na mucosa colônica, provocando vários focos de inflamação aguda e formação de microabscessos. Com o tempo, a destruição focal da mucosa, e o exsudato inflamatório aumentam em intensidade e, em dado momento, ocorre uma "erupção e/ou explosão" na superfície da mucosa similar à de um vulcão, com expulsão do exsudato fibrinopurulento: são as chamadas lesões em vulcão. Esse aspecto à microscopia é praticamente patognomônico dessa colite. A confluência dessas lesões forma as pseudomembranas, que consistem de uma mistura de muco, restos celulares, leucócitos e fibrina.
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