ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Paralisia periódica hipocalêmica tireotóxica
Thyrotoxi hypocalemic periodic paralysis
Luciano Fagundes de Paula1; Ana Luiza Murta Timponi de Moura2; Lucas José Campos Machado3; Paulo Augusto Carvalho Miranda4; Junia Ribeiro de Oliveira Longo5; André Gonçalves Lima6; Joao Paulo Machado7; Cinara de Souza Gondim8; Antônio Ribeiro de Oliveira Jr9
1. Médico formado pela FM-UFMG, especializando em Radiologia e Diagnóstico por Imagem no Hospital Mater Dei
2. Médica formada pela FM-UFMG
3. Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais
4. Médico Endocrinologista e Mestre em Clínica Médica pela FM-UFMG
5. Médica especializanda em Endocrinologia no Hospital Vera Cruz
6. Médico especialista em Clínica Médica pelo Hospital Semper
7. Médico especialista em Clínica Médica pelo Hospital Israel Pinheiro
8. Médica especialista em Ginecologia e Obstetrícia pelo HC-UFMG
9. Professor Associado do Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais
Professor Dr. Antônio Ribeiro de Oliveira Jr
Rua São Romão 343/701, Santo Antônio
Belo Horizonte/MG. CEP: 30330-120
E-mail: brolivei@uol.com.br
Laboratório de Pesquisas em Endocrinologia, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
Resumo
Este trabalho objetiva relatar um caso de paralisia periódica hipocalêmica tireotóxica (PPHT), além de discutir a fisiopatologia desta complicação rara e potencialmente fatal do hipertireoidismo. Trata-se de paciente do sexo masculino, atendido no serviço de urgência, com fraqueza muscular intensa de início abrupto nos membros. Ao exame físico constatou-se quadriplegia flácida sem outras alterações neurológicas, taquicardia e bócio difuso à palpação da tireóide. Negava ascendência oriental ou história familiar de quadro semelhante. O eletrocardiograma mostrou sinais de hipocalemia. As provas de função tireoideana foram compatíveis com tireotoxicose associada à hipocalemia franca. Os sinais e sintomas cardiovasculares foram prontamente revertidos a partir da reposição de potássio e terapêutica com beta-bloqueador. Os sintomas neurológicos só apresentaram resolução definitiva após a correção do hipertireoidismo. Este caso alerta para a importância do diagnóstico precoce como fator prognóstico da evolução de pacientes hipocalêmicos com tireotoxicose.
Palavras-chave: Paralisia Periódica Hipopotassêmica; Tireotoxicose; Hipocalemia; Hipertireoidismo; Bócio.
INTRODUÇÃO
O caso em questao apresenta uma complicação do hipertireoidismo que é pouco conhecida no mundo ocidental devido ao fato de ser rara e também pouco diagnosticada.1,2 Ela se caracteriza pelo desenvolvimento de hipocalemia em pacientes tireotóxicos susceptíveis, acarretando paresia e evolução para paralisia periódica com potenciais arritmias cardíacas que podem levar ao óbito.1,3,4 O objetivo do trabalho é apresentar a paralisia periódica hipocalêmica tireotóxica (PPHT), discutir sua fisiopatologia e terapêutica e alertar para o diagnóstico precoce dessa complicação em quadros tireotóxicos.
RELATO DE CASO
Trata-se de paciente do sexo masculino, 39 anos, faioderma, atendido no serviço de urgência com quadro de início abrupto de fraqueza muscular intensa nos membros. Negava uso de álcool e drogas ilícitas, não apresentava ascendência oriental, relatada na maioria destes casos, nem história familiar de quadro semelhante. No entanto, relatou ingestao de refeição com elevada quantidade de carboidratos na noite anterior, além de outro episódio semelhante após a prática esportiva. A admissão o paciente encontrava-se consciente, com quadriparesia flácida e apresentava diminuição dos reflexos tendinosos profundos, sendo o restante do exame neurológico sem alterações. O exame cardiológico mostrou a presença de bulhas taquicárdicas e uma quarta bulha que pôde ser auscultada no ápice. O exame dos demais aparelhos foi normal, exceto pelo achado de um bócio difuso à palpação da tireóide. O estudo eletrocardiográfico realizado durante a admissão mostrou ritmo sinusal taquicárdico, infradesnivelamento de ST e presença de onda U. Os exames laboratoriais mostraram os seguintes resultados: potássio sérico 2,2 mEq/L, TSH 0,002 µUI/mL (0,3-5,0), T4 livre 4,7 ng/dL (0,8-2,0) e T3 total 371 ng/dL (80-220) - (Quadro 1).
Os sinais e sintomas do aparelho cardiovascular foram prontamente revertidos a partir da reposição de potássio e da terapêutica com beta-bloqueador. Foi também iniciado o tratamento com droga anti-tireoideana, que tem sido eficaz na prevenção do desencadeamento de novas crises de paralisia. O tratamento definitivo do hipertireoidismo foi realizado com radioiodo, evoluindo o paciente com hipotireoidismo, entao controlado com levotiroxina.
Após abordagem inicial da crise e do controle ambulatorial do hipertireoidismo, o paciente evoluiu com melhora progressiva da função e da força muscular dos membros inferiores e superiores, não apresentando mais crises semelhantes.
DISCUSSÃO
Este relato evidencia o caso de um paciente brasileiro com sinais e sintomas de hipertireoidismo auto-imune que foi atendido em um serviço de urgência em decorrência de uma complicação rara da tireotoxicose, que é a PPHT. A PPHT ocorre predominantemente na Asia, com incidência relatada de 1,8 a 8,8% entre os japoneses com hipertireoidismo1, e possui predileção pelo sexo masculino. Esse paciente apresentou-se com hipocalemia franca associada à tireotoxicose após refeição copiosa em carboidratos. O quadro clínico, já com envolvimento de membros superiores, pôde ser controlado a partir do diagnóstico e tratamento da hipocalemia e também pelo controle em longo prazo da função tireoideana.
O PPHT é uma complicação rara do hipertireoidismo no mundo ocidental1,2,5, apresentando incidência de 0,1 a 0,2%, que necessita ser melhor divulgada considerando-se a possibilidade do gene de susceptibilidade ter se expandido para o mundo ocidental e também pela característica ameaçadora da condição2. Caracteriza-se por fraqueza muscular que pode evoluir para quadriparesia flácida associada ou não a arritmias cardíacas, na presença de hipocalemia e tireotoxicose em pacientes susceptíveis.1
No entanto, mesmo com predominância nos países asiáticos, há, na literatura, relatos diversos de sua ocorrência em outras etnias.1,2 Por outro lado, a incidência de episódios de PPHT no Japao tem declinado nos últimos anos, fato este atribuído à ocidentalização dos hábitos dietéticos nesse país.
Os pacientes portadores de PPHT apresentam ataques recorrentes de paralisia flácida geralmente pela madrugada, com acometimento predominante nos membros inferiores, normalmente desencadeados por ingestao de grande quantidade de carboidratos, após prática de exercícios físicos, pela administração de insulina ou epinefrina ou mesmo sem agente desencadeante óbvio.1,4 Pode também acometer os membros superiores, como se deu no presente relato, embora eles não sejam envolvidos de forma tao intensa quanto os inferiores.
Os sintomas cardíacos associados à PPHT são amplamente descritos na literatura e são extremamente comuns, mesmo que apenas pelo achado de taquicardia sinusal com bulha acessória, como a evidenciada no presente relato. A doença pode se apresentar com arritmias e parada cardiorrespiratória3,6. O eletrocardiograma pode mostrar os sinais de hipocalemia, em adição às anormalidades do ritmo cardíaco e defeitos de condução.
O diagnóstico da PPHT é baseado nos achados clínicos e laboratoriais.1,2,5 A evolução fatal de alguns casos ocorreu naqueles de ataques repetidos em que o diagnóstico de tireotoxicose passou despercebido. A normalidade laboratorial mais marcante durante um ataque é a hipocalemia decorrente do deslocamento de potássio para o meio intracelular, e não de uma depleção das reservas do íon6. Embora o nível de potássio sérico caia durante um ataque, nem sempre cai abaixo do valor de referência. A função tireoideana é outro parâmetro laboratorial importante e será ela que fará o diagnóstico diferencial entre a forma familiar e a tireotóxica de paralisia, já que ambas apresentam manifestações clínicas semelhantes. Enquanto na paralisia periódica familiar a função tireoideana é normal, na PPHT os ataques ocorrem quando há tireotoxicose. O paciente deste relato apresentava tireotoxicose leve ao momento do diagnóstico, de forma similar ao descrito em outros estudos1,2, os quais sugerem quadros subclínicos de tireotoxicose por meses ou anos antes do hipertireoidismo vir a ser reconhecido como associado aos episódios de paralisia. A maioria dos casos de PPHT ocorre em pacientes com doença de Graves, como no presente relato, mas há descrições da sua ocorrência em outras etiologias de tireotoxicose.1
Tendo em vista a relação da hipocalemia com os ataques de paralisia, especial atenção tem sido dada às alterações no metabolismo do potássio. O hipotireoidismo altera a permeabilidade da membrana plasmática ao sódio e potássio, além de aumentar a atividade da Na-K-ATPase no músculo esquelético, fígado e rim, levando com isso ao aumento do transporte intracelular de potássio.6 Um achado que reforça essa explicação foi a descoberta que a atividade da Na-K-ATPase é maior em paciente com hipertireoidismo com PPHT do que em pacientes com hipertireoidismo sem essa complicação.6 Além disso, os hormônios tireoideanos aumentam a sensibilidade dos tecidos à estimulação β-adrenérgica, que por sua vez está associada ao aumento da atividade da Na-K-ATPase.3 Isso explica a capacidade da adrenalina de induzir ataques de paralisia em pacientes com PPHT e a proteção que se obtém com o uso de beta-bloqueadores.3 A Na-K-ATPase também é ativada pela insulina e isso justifica a relação dos episódios de paralisia com a ingestao de grandes quantidades de carboidratos, tendo sido este o provável fator desencadeante da paralisia no presente relato. Tem sido também sugerido que a NA-K-ATPase possa ser estimulada por androgênios, justificando a predileção pelo sexo masculino. No entanto, a PPHT não pode ser explicada somente com base no potássio, tendo em vista que alguns pacientes se recuperam dos ataques mesmo com hipocalemia.
Devido à suposição de uma base genética para a doença, estudos com antígenos de leucócitos humanos (HLA) têm sido realizados nos pacientes com PPHT, porém mostrando resultados discordantes1. Mais recentemente, mostrou-se que a susceptibilidade à PPHT poderia estar relacionada a mutações em canais de potássio.4
A correção do hipertireoidismo é o tratamento mais eficaz para a PPHT, enquanto a administração de potássio durante os ataques é a terapia padrao. Embora a hipocalemia seja apenas o resultado da entrada de potássio para o meio intracelular, a administração de potássio deve ser realizada com o objetivo de normalizar o potássio extracelular e prevenir ou tratar as arritmias cardíacas. Deve-se, no entanto, fazer administração cuidadosa do mesmo, já que há liberação deste íon durante a fase de recuperação muscular e, com isso, o risco de uma hipercalemia rebote. Mais recentemente, tem-se obtido sucesso na reversão do quadro de paralisia e na prevenção das recorrências com o bloqueio beta-adrenérgico associado ao uso de medicação antitireóidea.1,3
CONCLUSÃO
O entendimento dos mecanismos fisiopatológicos da PPHT, assim como de suas manifestações clínicas, proporciona o tratamento adequado e a evolução benigna dessa complicação grave da tireotoxicose. Sua associação mais freqüente à doença de Graves, de grande prevalência em nosso meio, e também à possível mudança de susceptibilidade genética e de fatores ambientais dietéticos corrobora a importância de seu pronto diagnóstico em países do Ocidente. A PPHT, quando corretamente identificada e tratada, possui bom prognóstico, uma vez que as correções da hipocalemia e do hipertireoidismo levam à normalização cardíaca e neuromuscular, além de prevenir o desencadeamento de novas crises.
REFERENCIAS
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5. Okinaka S, Shizume K, Lino S, Watanabe A, Irie M, Noguchi A, et. Al. The association of periodic paralysis and hyperthyroidism in Japan. J Clin Endocrinol Metab. 1957;17:1454-9.
6. Lin SH, Davids MR, Halperin ML. Hypokalaemia and paralysis. QJM. 2003 Feb; 96(2):161-9.
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