RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 18. 1

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Relato de Caso

Colite pseudomembranosa simulando abdome agudo cirúrgico - relato de caso

Pseudo-membranosis Colitis simulating acute surgical abdomen - case report

Priscilla Ornellas Neves1; Carolina Frade Magalhaes Girardin Pimentel1; Cleber Soares Júnior2; Gustavo Andrade de Paulo3; Sandra Márcia Carvalho Ribeiro Costa4

1. Acadêmicas de Medicina da UFJF-MG
2. Titular do CBC e do CBCD
3. UNIFESP-EPM, Hospital Albert Einstein, Hospital Monte Sinai
4. Médica Patologista - Laboratório CIDAP

Endereço para correspondência

Rua Acre, no 40/401, bairro Mundo Novo
Juiz de Fora, MG CEP: 36026-310
E-mail: prineves@yahoo.com

Hospital Monte Sinai

Resumo

A colite pseudomembranosa é causa de diarréia associada ao uso de antibióticos, sendo provocada por reação inflamatória intestinal às toxinas do Clostridium difficile. Apresenta-se neste relato o caso de um paciente masculino de 76 anos que, após internações recorrentes devido a causas respiratórias, evoluiu com diarréia, febre e dor abdominal, com sinais de irritação peritoneal, simulando de abdômen agudo cirúrgico. A retossigmoidoscopia associada à biópsia foi o método que estabeleceu o diagnóstico de colite pseudomembranosa, possibilitando tratamento clínico bem-sucedido, evitando-se a intervenção cirúrgica.

Palavras-chave: Enterocolite Pseudomembranosa; Clostridium Difficile; Diarréia; Sigmoidoscopia.

 

INTRODUÇÃO

A colite pseudomembranosa é uma doença caracterizada basicamente por febre, dor abdominal e diarréia.1 Atualmente, acredita-se ser causada, quase que exclusivamente, por toxinas produzidas pelo Clostridium difficile.2

O fator de risco mais importante para que ocorra a colonização é a exposição a antibióticos, especialmente os de largo espectro.3 Além disso, a diarréia associada ao C. difficile é mais comum em indivíduos hospitalizados, maiores de 60 anos, com doença de base grave e é diretamente proporcional ao tempo de hospitalização. A transmissão se faz por via fecal-oral.4

A patogênese da diarréia causada por esta bactéria inclui basicamente três eventos: a) alteração da flora colônica normal; b) colonização pelo Clostridium difficile toxigênico; c) crescimento da bactéria com liberação de toxinas (as mais conhecidas, toxinas A e B) que levam à inflamação e ao dano da mucosa intestinal.2,4

Os sintomas podem variar de diarréia leve autolimitada até colite pseudomembranosa e colite fulminante (1-3% dos casos).2,4,5 A mortalidade da colite pseudomembranosa varia de 1,1% a 3,5%6, sendo bastante elevada quando associada ao megacólon (24 a 38%).1

Apresenta-se um caso em que a colite pseudo-membranosa se manifestou com dor abdominal e sinais de irritação peritoneal, cujo diagnóstico foi feito pela retossigmoidoscopia.

 

RELATO DO CASO

Homem, 76 anos, leucodérmico, apresentou febre, diarréia, distensão e dor abdominal difusa e incaracterística.

O paciente era portador de DPOC, com internações recorrentes e prolongadas nos cinco meses anteriores à hospitalização em questao devido a complicações respitatórias. Utilizou vários esquemas antimicrobianos e foi submetido a uma gastrostomia endoscópica.

Na admissão, estava em uso dos seguintes antibióticos: aztreonam, vancomicina e ciprofloxacino. Exames laboratoriais demonstraram, entre o primeiro e o sétimo dias de internação, importante queda do hematócrito (30,4 e 23,9%) e plaquetas (413.000 e 295.000), além de leucocitose (16.600, sem desvio à esquerda). O exame de urina revelou piócitos numerosos (piúria=65000/mL), mas a urocultura foi negativa. A pesquisa de toxina A de Clostridium difficile, realizada no segundo dia de internação, foi negativa.

No sétimo dia de internação houve agravamento da dor abdominal à esquerda, com descompressão brusca dolorosa. Foi entao realizada tomografia computadorizada (TC) de abdome, que demonstrou imagem sugestiva de um processo isquêmico no cólon ou colite de qualquer etiologia (Figuras 1 e 2).

 


Figura 1 - Espessamento parietal difuso e concêntrico do hemicólon esquerdo e da ampola retal associado a borramento do meso adjacente.

 

 


Figura 2 - Espessamento parietal difuso, edematoso e concêntrico da ampola retal com infiltração da gordura peri-retal.

 

Devido à inespecificidade dos achados encontrados à TC, o paciente foi encaminhado para a realização de retossigmoidoscopia de urgência, apesar do risco de perfuração, já que o colón não estava adequadamente preparado. Foram demonstradas lesões compatíveis com colite pseudomembranosa (Figuras 3 e 4).

 


Figura 3 - Mucosa de sigmóide com espessa camada de fibrina (pseudomembranas) entremeada por mucosa de aspecto normal.

 

 


Figura 4 - Pseudomembranas em sigmóide.

 

O material biopsiado durante realização da retossigmoidoscopia foi encaminhado para exame histopatológico, confirmando o diagnóstico (Figura 5 e 6).

 


Figura 5 - Pseudomembrana ao lado de mucosa com infiltrado neutrofílico e eosinofílico.

 

 


Figura 6 - Pseudomembrana.

 

Foi iniciado tratamento com metronidazol. Após quatro dias, o paciente se encontrava estável, com diminuição da distensão abdominal e fezes normais. Nova colonoscopia de controle foi realizada após 10 dias do início do tratamento. Este exame ainda mostrou úlceras em sigmóide e reto, com pseudomembranas, mas com melhora do quadro em relação ao exame anterior.

No momento (após 18 meses), o paciente encontra-se sem queixas gastrintestinais, tendo apresentado internações posteriores devido a complicações do quadro respiratório.

 

DISCUSSÃO

A colite pseudomembranosa comumente cursa com febre (30 a 50% dos casos), dor abdominal (20 a 33%) e diarréia, que pode ser leve e autolimitada ou grave. A diarréia está associada à presença de melena (5 a 10%) e de muco (85%). Sangramento colônico oculto pode ocorrer. Leucocitose está presente em 40 a 60% dos pacientes.2 No atual caso, o paciente apresentou todos esses sinais, sendo o sangramento oculto suspeitado devido à queda do hematócrito.

São diversos os fatores de risco associados à colite pseudomembranosa. Idade avançada e doença de base grave são fatores independentes. O risco de colonização é diretamente proporcional ao tempo de hospitalização, variando de 1% em pacientes com uma semana de internação a 50% entre aqueles que permaneceram por mais de quatro semanas em regime hospitalar. Cirurgia abdominal prévia e uso de sonda nasogástrica ou gastrostomia têm sido relacionados a risco mais alto de colonização.1

Praticamente qualquer antibiótico pode facilitar a infecção pelo C. difficile, contudo, aqueles que possuem largo espectro e que têm atividade contra bactérias da flora colônica são os mais freqüentemente envolvidos. Na prática clínica, cefalosporinas e penicilinas de largo espectro são os que mais comumente desencadeiam a colite pseudomembranosa, refletindo sua ampla utilização.4,5

Os sintomas podem se desenvolver precocemente, no dia seguinte à exposição ao antibiótico, sendo mais comuns aproximadamente cinco a 10 dias após o início da administração dessa droga. Também podem ocorrer tardiamente, como 10 semanas após a interrupção da antibioticoterapia.2 Devido às várias e prolongadas internações do paciente descrito e administração de diversos antibióticos ao longo desse período, é difícil precisar qual (is) droga (s) teria(m) facilitado a colonização pelo Clostridium difficile e o tempo entre a exposição a esse agente facilitador e o aparecimento dos sinais e sintomas da colite pseudomembranosa.

Ensaio imunoenzimático é utilizado para detectar a A e/ou B. Ampla variedade desse teste está disponível atualmente. São relatadas sensibilidades que variam de 63 a 99% e especificidade de 75 a 100%. As vantagens dessa técnica incluem custo mais baixo e resultados mais rápidos. A desvantagem é sua baixa sensibilidade, podendo ser necessário repetir os testes.2 No paciente em questao foi realizado ensaio imunoenzimático com pesquisa da toxina A, sendo o resultado negativo, o que postergou o correto diagnóstico e tratamento clínico. Resultados falso-negativos podem ocorrer em técnicas de ensaio imunoenzimático que detectam apenas a toxina A, caso os C. difficile isolados não secretem essa toxina. Knoop demonstrou que isto ocorria em aproximadamente 70% dos C. difficile isolados de pacientes com colite pseudomembranosa ou diarréia associada a antibiótico.2

Exames de imagem do abdome podem auxiliar o diagnóstico. A tomografia computadorizada (TC) apresenta sensibilidade de 85%, entretanto, possui baixa especificidade (48%)3, o que dificultou a exclusão de uma causa cirúrgica de abdome agudo.

Um critério padronizado para o diagnóstico da doença em questao inclui a visualização de pseudomembranas na mucosa intestinal ou o exame histopatológico de material biopsiado, o que é possível a partir da realização de sigmoidoscopia ou colonoscopia. Pseudomembranas são observadas em 14 a 25% dos casos moderados e em 87% dos pacientes com doença fulminante. Nos casos em que não são observadas, o diagnóstico deve ser confirmado pela biópsia.4 Proctoscopia, com o mínimo de insuflação, pode ser um instrumento diagnóstico útil6. Johal et al.7 demonstraram, em um estudo com 136 pacientes, que a sigmoidoscopia flexível era superior à pesquisa de citotoxina de C. difficile nas fezes para o diagnóstico de colite pseudomembranosa7. No presente caso, o diagnóstico foi estabelecido pela visualização de pseudomembranas durante retossigmoidoscopia, com confirmação pelo exame histopatológico. Dessa forma, a endoscopia foi determinante para a correta conduta clínica, evitando intervenção cirúrgica desnecessária.

Mais de 25% dos casos são resolvidos com a descontinuação do antibiótico. Nos casos graves ou com sintomas persistentes está indicada terapia específica contra a infecção pelo Clostridium difficile1. A administração de metronidazol, via oral, é o tratamento de primeira escolha nos casos de colite pseudomembranosa.1,4 A vancomicina é uma droga considerada de segunda opção1,5. A freqüência de intervenção cirúrgica é baixa, tendo sido relatada em 0,39 a 3,6% dos casos de colite associada ao C. Difficile.6

 

CONCLUSÃO

A colite associada ao Clostridium difficile é enfermidade rara, mas que pode ser prevenida evitando-se o uso indiscriminado de antibióticos. Deve ser suspeitada em qualquer paciente que apresente diarréia 72 horas ou mais após hospitalização e/ou que tenha recebido antibioticoterapia nos últimos dois meses. A retossigmoidoscopia associada à biópsia constitui importante ferramenta, possibilitando o correto diagnóstico e condução do caso, evitando intervenções diagnósticas mais invasivas ou evolução grave, com elevada mortalidade.

 

REFERENCIAS

1. Poutanen SM, Simor AE. Clostridium difficile-associated diarrhea in adults. CMAJ 2004;171(1):51-8.

2. Knoop FC, Owens M, Crocker IC. Clostridium difficile: clinical disease and diagnosis. Clin Microbiol Rev. 1993 July; 6(3):251-65.

3. Hurley BW, Nguyen CC. The Spectrum of Pseudomembranous Enterocolitis and Antibiotic-Associated Diarrhea. Arch Intern Med. 2002;162:2177-84.

4. Kelly CP, Pothoulakis C, Lamont JT. Clostridium difficile Colitis. N Engl J Med. 1994;330:257-62.

5. Mylonakis E, Ryan ET, Calderwood SB. Clostridium difficile - Associated Diarrhea. Arch Intern Med. 2001;161:525-33.

6. Kawamoto S, Horton Km, Fishman EK. Pseudomembranous Colitis: Spectrum of Imaging Findings with Clinical and Pathologic Correlation. Radiographics. 1999;19:887-97.

7. Johal SS, Hammond J, Solomon K, James PD, Mahida YR. Clostridium difficile associated diarrhea in hospitalised patients: onset in the community and hospital and role of flexible sigmoidoscopy. Gut. 2004;53:673-7.