RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 24. 1 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20140022

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Artigos de Revisão

Divertículo de Meckel: revisão de literatura

Meckel's diverticulum: a literature review

Luciana Mendes Araújo1; Fernanda Mendes Araújo2; Ana Carolina Silva Alves3; Ana Cecília Ferreira Monteiro3; Brenda Costa de Paula3; Déborah Suzane Silveira Xavier3; Érika Viviane Soares Alves3; Isabella Aguiar Sezko3

1. Médica. Radiologista da Santa Casa de Misericórdia de Montes Claros; Mestranda em Ciências da Saúde pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES). Montes Claros, MG - Brasil
2. Médica-Residente de Dermatologia da Universidade Estadual de Londrina. Paraná, PR - Brasil
3. Acadêmicos do Curso de Medicina das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros. Montes Claros, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Luciana Mendes Araújo
E-mail: lmendesab@hotmail.com

Recebido em: 19/08/2011
Aprovado em: 16/12/2013

Instituiçao: Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros Montes Claros, MG - Brasil

Resumo

O divertículo de Meckel (DM) é considerado a anormalidade congênita mais comum do trato gastrintestinal. Resulta de falha na obliteração do ducto onfalomesentérico (ducto vitelino) e, geralmente, apresenta-se como divertículo curto, de base larga, localizado na borda antimesentérica do íleo a aproximadamente 90 cm da válvula ileocecal. É assintomático na maioria dos casos e diagnosticado acidentalmente em laparotomia/laparoscopia indicadas por outras causas. Manifesta-se em crianças pela hemorragia digestiva e nos adultos pelo desenvolvimento de processos abdominais obstrutivos ou inflamatórios. Suas principais complicações são: hemorragia, intussuscepção, volvo, formação de enterólitos, inflamação, perfuração, obstrução e neoplasia. A confirmação diagnóstica é definida por exames de imagem como a ultrassonografia abdominal, tomografia computadorizada, cintilografia e angiografia. A conduta em pacientes assintomáticos é controversa, entretanto, em pacientes sintomáticos, a indicação cirúrgica é consenso. Sua abordagem requer a diverticulectomia simples ou a enterectomia segmentar com reconstrução pela anastomose primária término-terminal.

Palavras-chave: Divertículo Ileal; Ducto Vitelino; Trato Gastrintestinal; Laparoscopia; Laparotomia.

 

INTRODUÇÃO

O divertículo de Meckel (DM) é formado por todas as camadas da parede intestinal e é um divertículo intestinal verdadeiro. Origina-se de falha na obliteração e absorção do ducto onfalomesentérico (ducto vitelino) durante o primeiro trimestre de vida fetal.

Localiza-se na borda antimesentérica do íleo a aproximadamente 90 cm da válvula ileocecal. Em aproximadamente 50% dos casos possui tecidos ectópicos, sendo os mais encontrados aqueles de origem gástrica e pancreática. Apresenta-se, em geral, como divertículo curto, de base larga, com suprimento sanguíneo próprio, proveniente de um ramo terminal da artéria mesentérica superior que cruza o íleo até o divertículo.1,2

A primeira descrição de um divertículo no intestino delgado foi realizada por Fabricius Hildanus, em 1598. Em 1742, um pequeno divertículo estrangulado em uma hérnia inguinal foi reportado por Littré e, em 1809, Johann Friedrich Meckel publicou suas observações sobre a anatomia e a embriologia do divertículo que leva seu nome.1

O DM representa causa relevante de sangramento gastrintestinal baixo na população pediátrica. Apesar de acometer igualmente ambos os sexos, predomina no sexo masculino.1,2

A maioria dos indivíduos com DM permanece assintomática por toda a vida. O surgimento de sintomatologia sugere complicações como hemorragia digestiva, mais comum em crianças; e fenômenos obstrutivos, inflamatórios ou neoplásicos, mais comuns em adultos.3-5 Suas principais complicações são a diverticulite aguda, que deve ser detectada no diagnóstico diferencial da apendicite aguda.5 Estima-se em 4 a 6% a probabilidade de a doença se tornar sintomática em algum momento da vida.2

Excluídos os casos de achado incidental durante cirurgias, o diagnóstico de DM depende da ocorrência de complicações e baseia-se fundamentalmente em exames de imagem.6-9 Os principais exames complementares são: ultrassonografia abdominal, tomografia computadorizada de abdome, cintilografia e angiografia abdominais, que se tornam relevantes diante de diverticulite, invaginação/intussucepção intestinal, obstrução e sangramento digestivo.1,10 A cintilografia é considerada padrao-ouro nos DMs com mucosa gástrica heterotrópica.

O tratamento cirúrgico, sempre indicado na sintomatologia e/ou complicações, consiste em retirada do divertículo por meio de diverticulectomia simples ou ressecção ileal segmentar com anastomose término-terminal.6,8,10-15 Discute-se, no entanto, o real benefício de intervenção cirúrgica nos pacientes assintomáticos com diagnóstico incidental de DM, já que as taxas de complicações são baixas e os riscos inerentes ao procedimento cirúrgico consideráveis.5,11,12,14,16,17

 

EPIDEMIOLOGIA

As malformações gastrintestinais correspondem a cerca de 6% do total de malformações congênitas.2 O DM é a anomalia gastrintestinal congênita mais comum, com prevalência que varia de 1 a 4% na população geral. É duas vezes mais comum em homens do que em mulheres e, usualmente, localiza-se a 60 cm da válvula ileocecal.1,2,10

O DM é a causa mais frequente de sangramento gastrintestinal baixo na criança. Parece ter incidência aumentada em recém-nascidos com outras anomalias - fenda palatina, útero bicorno, pâncreas anular, atresia de esôfago e atresia anorretal ou malformações dos sistemas nervoso central e cardiovascular.2,5,18

 

MANIFESTAÇÕES CLINICAS

O DM apresenta-se, predominantemente, de forma assintomática e seu diagnóstico costuma ser feito durante laparotomia e laparoscopia indicadas por outros motivos. Sangramento digestivo alto ou baixo, alteração do hábito intestinal e/ou dor abdominal sugerem alguma complicação associada ao DM.3,4,5,19

Em crianças, o sangramento é a complicação mais frequente (45-50%), seguido de obstrução e infecção.5 Episódios de hemorragia ocorrem especialmente abaixo dos dois anos de idade, possivelmente associados à ulceração de mucosa heterotópica gástrica (60-65%) ou pancreática (5%). Secreções ácidas gástricas e alcalinas pancreáticas causariam ulceração na mucosa ileal adjacente, o que pode explicar os episódios de sangramento.2,18 A associação do Helicobacter pylori com o sangramento relacionado ao DM20 constitui-se em assunto ainda controverso.

A obstrução diverticular é o achado mais comum em adultos.19 Pode ser devido à formação de enterólitos;21-23 a hérnias internas; torção axial do pedículo diverticular; volvo;24 inversão do DM simulando um pólipo pedunculado, com obstrução da luz intestinal; bridas inflamatórias; além de intussuscepção intestinal e obstrução meconial em crianças.2-4 A apresentação clínica inclui dor abdominal, vômitos e constipação intestinal. Na intussuscepção intestinal, a palpação abdominal característica e as fezes "em geleia de framboesa" são pistas diagnósticas importantes. A obstrução, quando não abordada cirurgicamente, pode evoluir com necrose e peritonite.19

A diverticulite aguda, inflamação súbita do divertículo, é verificada em 13-31% dos casos que evoluem com complicação, com maior incidência na quarta e quinta décadas de vida.2,5 É de difícil diagnóstico e tem como principal diagnóstico diferencial a apendicite aguda.10 Deve-se pensar em DM complicado quando um apêndice aparentemente normal é encontrado em paciente com suspeita clinica de apendicite aguda. A diverticulite do DM pode ser desencadeada por enterólito, corpo estranho ou parasita,2 que ocasiona obstrução do divertículo e determina inflamação da mucosa ileal.5,25

O DM é revestido internamente por mucosa ileal e pode conter tecido heterotópico em 30 a 40% dos casos. Entre os tipos de tecido heterotópico destacam-se os tecidos gástrico, pancreático ou ambos. Entretanto, há relato de achados esporádicos de mucosa colônica, endometrial e tecido hepatobiliar. A incidência de complicação nos divertículos com mucosa ectópica é maior. Os DMs com mucosa gástrica evoluem, via de regra, com gastrite leve a moderada do tecido ectópico, podendo levar a inflamação, sangramento ou perfuração. O tecido ectópico pancreático, por sua vez, pode complicar-se com inflamação ou obstrução por formação de nodulações no fundo do divertículo.3-5,19

A ocorrência de transformação maligna em mucosa diverticular é extremamente rara. Quando presente, o prognóstico costuma ser reservado e a histopatologia indica os tumores carcinoides e adenocarcinoma.26

 

DIAGNOSTICO

Charles Mayo2 imortalizou a dificuldade diagnóstica do DM em uma frase reverberada por muitos de seus colegas: "Meckel'sdiverticulum is frequently suspected, often looked for, but seldom found".

O DM é de diagnóstico difícil e permanece como grande desafio da prática médica.5 A maioria dos exames complementares evidencia alterações decorrentes das complicações, como diverticulite, obstrução da luz intestinal, hemorragia ou perfuração. Alguns exames, aliados às manifestações clínicas, auxiliam no diagnóstico correto, como: ultrassonografia abdominal, tomografia computadorizada de abdome, cintilografia e angiografia abdominais.6-9

Radiografia simples de abdome

A radiografia simples de abdome é em geral inespecífica. Em caso de inflamação podem-se observar sinais de peritonite. O pneumoperitônio é facilmente identificado nas incidências com raios horizontais, se houver perfuração diverticular. Na obstrução por divertículo invertido para o interior da luz intestinal observam-se sinais de obstrução do intestino delgado ou de invaginação intestinal.7

Trânsito de intestino delgado

No estudo do trânsito de intestino delgado o achado característico é de saculação na parede do ileoterminal, com padrao irradiado na uniao das mucosas ileal e diverticular. Em alguns casos podem ser identificadas rugosidades gástricas no interior do divertículo.6

Ultrassonografia

A ultrassonografia é bom método para diagnosticar complicações do DM, especialmente processos inflamatórios e intussuscepção intestinal. É útil em sangramentos retais com cintilografia negativa, quadros sugestivos de abdome inflamatório ou atípicos; entretanto, não existem dados para indicar a ultrassonografia como método superior à cintilografia com tecnécio 99, considerada padrao-ouro por muitos autores.10

Nos casos de intussuscepção pode-se visualizar imagem de dupla intussuscepção: do divertículo no íleo e do íleo no colo através da válvula ileocecal. Nota-se uma estrutura tubular cega com conteúdo líquido e que pode ser bastante similar aos achados ultrassonográficos de apendicite aguda, quando existe diverticulite sem obstrução. Na obstrução diverticular, é possível observar estrutura tubular distendida, com conteúdo líquido, conectada à cicatriz umbilical.6,7,9

Tomografia computadorizada

A tomografia computadorizada habitualmente não é útil no diagnóstico, a menos que haja processo inflamatório ou obstrutivo associado, pois é praticamente impossível diferenciar a alça intestinal de um DM, a menos que este esteja conectado à cicatriz umbilical.6-9,13

Cintilografia T99

A cintilografia com tecnécio 99 (T99) é o método mais utilizado para diagnóstico de DM. Baseia-se na propriedade de marcação de mucosa gástrica pelo tecnécio 99. O exame tem acurácia em torno de 90% em pacientes pediátricos.4 Mostra-se, no entanto, pouco útil em adultos, devido à reduzida frequência de mucosa gástrica diverticular heterotópica nesse grupo. Apresenta alta especificidade (95-100%), porém sua sensibilidade gira em torno de 85%.27

Arteriografia

A arteriografia pode ser empregada para detectar algum foco de sangramento ou anomalia arterial. Por ser invasiva, sua indicação deve se restringir apenas a casos selecionados ou quando os exames anteriores forem normais.6,9,27 Mostra-se bastante útil quando o paciente tem sangramento ativo ou sangramento intermitente e cintilografia normal; e, quando positiva, visibiliza-se uma artéria anômala nutrindo o divertículo e extravasamento de contraste nos casos de sangramento ativo.13 Podem ser úteis a colonoscopia e endoscopia digestiva alta para afastar outras causas de sangramento intestinal.6

Videolaparoscopia

A videolaparoscopia exploradora é considerada método eficaz na inspeção da cavidade e tem a vantagem de realizar simultaneamente o diagnóstico e sua correção.27

 

TRATAMENTO

O tratamento definitivo do DM é cirúrgico. O acesso pode ser por laparoscopia ou laparotomia, com resultados igualmente satisfatórios.2,15 Diverticulectomia simples pode ser realizada quando não há envolvimento de alças adjacentes,6 embora a técnica cirúrgica preferida, principalmente nos casos de sangramento, diverticulite e na suspeita de neoplasia associada, é a ressecção ileal segmentar com anastomose término-terminal.13

A decisão quanto à remoção de DM diagnosticado incidentalmente é controversa. Há diversos autores que recomendam sua ressecção, alegando ser impossível definir macroscopicamente a ausência de mucosa heterotópica no divertículo ou que ele não venha a apresentar algum tipo de complicação no futuro.14,16,26 Outros autores argumentam que, devido à baixa probabilidade de o DM vir a ser sintomático, seriam necessárias aproximadamente 800 diverticulectomias para evitar uma única complicação. Ao ser tomada a decisão pelo ato operatório, deve-se considerar a morbimortalidade associada ao procedimento cirúrgico.1,5,12

A taxa de complicação do DM é baixa, de 0,03% ao ano, e o risco de associar-se a alguma complicação decresce com a idade, sendo insignificante em idosos.28 Complicações por faixa etária apresenta índice de 4,2% na infância, seguido por 3% em adultos e praticamente zero em idosos, evidenciando que as complicações são mais comuns em crianças e adultos jovens.29 Esses achados têm importância na decisão quando à abordagem de DMs assintomáticos.

Alguns autores sugerem30 que há dados suficientes na literatura que justifiquem a conduta expectante em paciente com DM assintomático, especialmente em idosos, grupo em que a taxa de complicação é sabidamente menor e no qual os riscos do procedimento cirúrgico são potencialmente mais altos. Em jovens assintomáticos, por outro lado, haveria mais benefício do que risco na retirada cirúrgica do DM, já que esses pacientes possuem risco real de evoluírem com algum tipo de complicação e, em geral, toleram bem o procedimento cirúrgico. Thirunavukarasu et al.,16 entretanto, recomendam a remoção cirúrgica de todo DM diagnosticado, com base no fato de o risco estimado de câncer ser 70 vezes mais alto na mucosa diverticular em comparação ao restante do íleo. Essa proposta é questionada,17 pois esses dados não justificam a remoção profilática indiscriminada de todo DM. Considerando prevalência geral de 2% do DM, haveria cerca de 0,7 caso de neoplasia/100.000 portadores de DM/ano; ou seja, seria preciso remover 1.600 a 2.000 divertículos para prevenir um caso de câncer. Ainda que a conduta frente ao diagnóstico incidental de DM seja bastante controversa, as evidências são insuficientes para indicar sua abordagem cirúrgica em massa.17

 

CONCLUSÃO

Desde sua descrição em 1809, a malformação congênita mais comum do trato gastrintestinal persiste sendo desafio diagnóstico. A apresentação clínica do DM está geralmente condicionada a complicações e é comumente confundida com outras doenças. Esses dados salientam a importância da suspeição diagnóstica em pacientes com sintomatologia abdominal vaga. Em crianças, sangramento digestivo; e em adultos, quadro abdominal obstrutivo ou inflamatório devem incluir DM como possibilidade diagnóstica. A cintilografia abdominal é o método complementar de mais acurácia. Ultrassonografia e tomografia computadorizada auxiliam no diagnóstico e corroboram a exclusão de outras doenças. O tratamento definitivo é cirúrgico (diverticulectomia ou ressecção ileal com anastomose término-terminal), com indicação absoluta em pacientes sintomáticos. Em pacientes assintomáticos, é controverso seu tratamento cirúrgico considerando-se o potencial de complicações versus o risco do procedimento cirúrgico. É essencial que cada caso seja avaliado individualmente, levando-se em consideração variáveis como sexo, idade (complicações são mais frequentes em crianças e homens jovens), risco anestésico, características do divertículo, experiência do cirurgiao e do serviço em que o paciente está sendo assistido.

 

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