RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 24. 1 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20140024

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Educação Médica

Necrópsia e educação médica

Autopsy and medical education

Luiz Otávio Savassi Rocha

Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Luiz Otávio Savassi Rocha
E-mail: savassi@estaminas.com.br

Recebido em: 15/12/2013
Aprovado em: 20/01/2014

Instituiçao: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

Desde os anos 1970, assiste-se, em todo o mundo, a uma progressiva queda no número de necrópsias em casos de morte decorrente de causas naturais. Atribui-se esse fato, entre outras razoes, ao excesso de confiança por parte de muitos dos médicos contemporâneos que, por disporem de refinados métodos de diagnóstico, julgam-se imunes ao erro. No entanto, contrariando as expectativas, a incidência de erros detectados pelas necrópsias permanece elevada, particularmente em se tratando de pacientes idosos e/ou daqueles atendidos em estado crítico. Como consequência da queda do número de necrópsias, os tradicionais exercícios de correlação anatomoclínica desenvolvidos a partir do exame do cadáver estao ameaçados de extinção, com indiscutível prejuízo para a formação das novas gerações de médicos. Na condição de coordenador, desde 1995, das Sessões Anatomoclínicas do Hospital das Clínicas da UFMG, o autor advoga a reincorporação dessa atividade ao currículo das escolas médicas, sob pena de se perder um até hoje insuperável recurso pedagógico.

Palavras-chave: Autopsia; Cadáver; Educação Médica; Estudos de Avaliação como Assunto.

 

"Education is a matter of lighting fires, not filling buckets".
William Butler Yeats (1865-1939).

O minucioso exame cadavérico realizado na tentativa de esclarecer as causas dos óbitos pode ser designado, em língua portuguesa, por nove diferentes vocábulos: necrópsia, necropsia, necropse, autópsia, autopsia, autopse, autoscópia, autoscopia e necroscopia. Referindo-se às formas mais usuais - autópsia, autopsia, necrópsia, necropsia -, até hoje fruto de controvérsias no tocante à prosódia, assim se expressa o Prof. Joffre Marcondes de Rezende, em seu livro Linguagem médica:1

A divergência de natureza prosódica reside no sufixo ia, que pode provir diretamente do grego ou através do latim. Na primeira hipótese a vogal i é tônica; na segunda, é átona. Muitas palavras em português seguem a prosódia grega, enquanto outras seguem a prosódia latina. [...] Parece claro que, se optarmos por autópsia como variante prosódica correta, por uma questao de coerência também devemos aceitar necrópsia em lugar de necropsia (ía).

No presente ensaio, optei pela variante necrópsia, na sua forma proparoxítona, por razoes de índole pessoal e por levar em conta o modo como, em linguagem coloquial, a palavra é habitualmente pronunciada em nosso meio.

Há duas modalidades distintas de necrópsias que, sob certas circunstâncias, são indissociáveis e complementares: a necrópsia com enfoque médico-legal e a necrópsia realizada em casos de morte natural.

A necrópsia médico-legal - ou seja, a palavra do fato médico-científico a respeito do fato jurídico - destina-se a avaliar os casos de morte comprovada ou supostamente violenta - resultante de trauma acidental, homicídio ou suicídio -, os casos de morte comprovada ou supostamente decorrente de intoxicação exógena e os casos de morte causada por suposto erro médico, em especial se resultante de negligência ou má-fé. Em atendimento à requisição formal de autoridade competente, é realizada por perito oficial (médico-legista) ou por perito médico designado ad hoc pelo juiz, constituindo imperativo de ordem legal. A respeito dessa modalidade, de grande importância para a sociedade - desde que praticada com o indispensável rigor, o que nem sempre acontece no Brasil -, vale transcrever comovente depoimento do Dr. Joao Henriques de Freitas Filho, professor de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), inserido num livreto de sua autoria, de circulação limitada - Modelo de Serviço Médico Legal -, publicado, em 1967, pela Imprensa da UFMG. Para escrevê-lo, o saudoso professor inspirou-se na visita que fizera ao respeitado Instituto Médico-Legal da circunscrição de Cuyahoga (Cuyahoga County Coroner's Office), sediado em Cleveland (Ohio) e capitaneado, na condição de Coroner eleito pela comunidade, pelo Dr. S. R. Gerber, doublé de médico e advogado:

É um engano pensar que é cômodo o exercício da Medicina Legal porque lida com quem não se queixa: o cadáver. [...] Todavia, sabemos que, na realidade, o cadáver tem sua linguagem, apesar de frio e rijo, imóvel e insensível, indiferente a tudo, como se fosse a pessoa fora e muito longe de si mesma. As mais firmes promessas, as mais sérias decisões, os mais profundos exames de consciência são feitos depois de se ouvir a voz que vem da urna funerária. Estamos certos, o cadáver pede, recomenda, explica, acusa, clama.

A necrópsia em casos de morte natural, restrita, geralmente, às instituições acadêmicas, tem por objetivo não somente a identificação da causa do óbito, mas também a correlação dos dados clínicos, observados intra vitam, com os achados anatomopatológicos, macro e microscópicos, observados post mortem. Por conseguinte, além de funcionar como um controle da qualidade da assistência prestada ao paciente, constitui a base das Sessões Anatomoclínicas (Sessões Clinicopatológicas), cujas origens remontam a Giovanni Battista Morgagni (1682-1771), o "Pai da Anatomia Patológica", autor da obra-prima De sedibus et causis morborum per anatomen indagatis, publicada, em cinco volumes, em 1761.2 Na América do Norte, despontam, nesse particular, ao longo da história da Medicina, duas figuras dotadas de luz própria: Sir William Osler (1849-1919), clínico notável que, antes de se tornar professor da Johns Hopkins School of Medicine, acumulou, em Montreal e Filadélfia, extraordinária experiência baseada na meticulosa análise de 1.000 necrópsias, e Richard Clarke Cabot (1868-1939), médico e humanista, idealizador das Clinicopathological Conferences (Case Records of the Massachusetts General Hospital), publicadas, a partir de 1924, no Boston Medical and Surgical Journal, periódico que, quatro anos depois, passaria a chamar-se The New England Journal of Medicine.3

Vale assinalar que, antes da realização da necrópsia em casos de morte por causas naturais, não basta a aquiescência verbal por parte de pessoa da família ou responsável; ou seja, após a leitura atenta de texto que explica, minuciosamente, como é realizado o procedimento, é imprescindível que a aquiescência seja formalizada mediante a aposição de assinatura em termo de consentimento livre e esclarecido. Antes disso, porém, importa certificar que o signatário do documento entendeu seu conteúdo. Esse cuidado reveste-se de grande importância em nosso meio, tendo em vista a existência de elevado número de "analfabetos funcionais". Com efeito, de acordo com estudo recente - estudo transversal quantitativo -, foram assim classificados 46,6% dos usuários dos ambulatórios do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).4

Nos últimos anos, em face do incontestável avanço tecnológico e do refinamento dos métodos de diagnóstico, acentuou-se um fenômeno que já se observava desde os anos 1970: movidos por excesso de confiança, como se fossem imunes ao erro, os médicos passaram a relegar a plano secundário, por julgá-las desnecessárias, as tentativas de correlação anatomoclínica baseadas no exame do cadáver, o que explica, em parte, o enorme declínio no número de necrópsias em casos de morte natural.5 Não obstante, contrariando as expectativas, a incidência de erros detectados por esse procedimento permanece elevada, em diferentes contextos, mesmo em países do primeiro mundo.6 A propósito, em instigante editorial, o Dr. George D. Lundberg propoe lúcida explicação para o fato:7

In fact, there is still a giant gap between what high-tech diagnostic medicine can do in theory in ideal circumstances (very much, very well) and what high-tech diagnostic medicine does do in practice in real-life circumstances (not nearly so well), when human beings have to decide what, where, when, how, and why to use it. The gap becomes especially obvious when one looks at patients sick unto death.

Para ilustrar o que se afirmou nas linhas precedentes - e não obstante suas limitações, admitidas pelos próprios autores -, merece registro um estudo realizado no InCor-USP, hospital de referência em Cardiologia, a partir da análise de 406 necrópsias consecutivas: a concordância entre os diagnósticos clínico e necroscópico foi observada em 71,1% dos casos de infarto agudo do miocárdio, em 75% dos casos de dissecção aórtica, em 73,1% dos casos de endocardite infecciosa e em apenas 35,2% dos casos de tromboembolismo pulmonar.8

Importa ressaltar que a impressionante queda no número de necrópsias observada, nos últimos decênios, em casos de morte natural não se deve apenas ao excesso de confiança por parte dos clínicos, mas a uma conjunção de fatores, como:

a falta de infraestrutura adequada e, num tempo marcado pela subespecialização, de patologistas qualificados, capazes de raciocinar, frente ao cadáver, de maneira global e integrada com a clínica;

a pouca disponibilidade, motivada pelo excesso de atribuições, incluídos os encargos administrativos, de muitos dos patologistas mais bem qualificados;

a falta de remuneração justa, em se tratando de procedimento trabalhoso e insalubre;

a recusa da família em autorizar a realização do procedimento, com base no argumento de que o paciente "já sofreu o bastante" e/ou pelo receio de mutilação do cadáver, recusa essa que, até certo ponto, pode ser contornada pela informação adequada, pela proposta de necrópsia parcial, pela proposta de "necrópsia virtual" (baseada nos métodos de imagem, como tomografia computadorizada e ressonância magnética),9-12 pela proposta de necrópsia "minimamente invasiva" (baseada em diferentes associações dos métodos de imagem com punções-biópsias por agulha, endoscopias, laparoscopia e toracoscopia post mortem)13,14 e, até mesmo, no caso da necrópsia convencional, pela proposta de incisões que melhor preservem a aparência do cadáver após o procedimento;15

a pressão de agentes funerários inescrupulosos;

a demora na liberação do laudo final, somente possível após o estudo histopatológico;

o medo, por parte dos clínicos, de ter manchada sua reputação e/ou de serem incriminados judicialmente em face da detecção de algum erro contundente, entendendo-se por "erro" tanto a formulação de diagnóstico equivocado quanto a omissão de diagnóstico importante.

No que concerne ao último tópico, penso, com base em milenar máxima latina - Errando corrigĭtur error -, que a detecção, à necrópsia, de eventuais equívocos diagnósticos - fato observado, sobretudo, em se tratando de fetos, neonatos, idosos, imunodeficientes e pacientes em estado crítico -, não deveria constituir desestímulo à sua prática, mas justamente o contrário. Tais equívocos decorrem dos mais variados fatores - alguns contornáveis, outros não -, merecendo ser analisados caso a caso. Entre tais fatores incluem-se a pressa, o cansaço, a falta de sono reparador, o açodamento, a desatenção, a negligência, a imperícia, a imprudência, a má-fé, a falta de apoio logístico, a precariedade da infraestrutura e, last but not least, os chamados "atalhos cognitivos", representados pela heurística da disponibilidade, pela heurística da ancoragem, pelo efeito do enquadramento, pela obediência cega e pelo fechamento prematuro.16 Ademais, os médicos, humanos que somos, estamos à mercê do caráter enganoso das aparências, de acordo com a instigante formulação do filósofo estoico grego Epictetus (55 d.C. - 135 d.C.) que, embora nada tenha deixado escrito, teve seus ensinamentos anotados pelo discípulo Arrian:17

Appearances to the mind are of four kinds. Things either are what they appear to be; or they neither are, nor appear to be; or they are and do not appear to be; or they are not, and yet appear to be. Rightly to aim, in all these cases, is the wise's man task.

Tradicionalmente, na medida em que traziam à luz erros grosseiros, os exercícios de correlação anatomoclínica baseados em necrópsias costumavam representar, no dizer do memorialista mineiro Pedro Nava, o "fiasco" do clínico e o "triunfo" do patologista.18 Penso que não deva ser esse o estado de espírito daqueles que, como eu, defendem a primazia e o extraordinário valor pedagógico de tais exercícios, mesmo porque o próprio patologista não está imune ao erro, pela simples razao de não lidar, ao contrário do que se poderia supor, com "fatos" por natureza puros, concretos e objetivos, mas com achados que em geral exigem uma interpretação, na dependência do olhar do examinador. Por conseguinte, penso que, sem perder de vista a importância do produto - ou seja, do laudo anatomopatológico final -, se deva privilegiar o processo, representado pelo refinamento do raciocínio clínico, pela permuta de experiências, pela reflexão amadurecida, pelo espírito crítico aguçado e pelo cultivo da dúvida sistemática, na certeza de que, sutil e caprichosa, a Natureza não cede com facilidade seus segredos. Como Guimaraes Rosa, em Grande Sertao: Veredas, penso que importa privilegiar a "travessia", em vez de se ficar "entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada".19 A propósito, vale reproduzir aqui as palavras da patologista Nancy Lee Harris, editora, desde 14/2/2002, das Clinicopathological Conferences (Case Records of the Massachusetts General Hospital):20

In the traditional CPC format, the pathologist was all too often seen as an adversary to the clinical discussant, pulling a diagnostic rabbit (or zebra) out of a hat at the end of the conference. In the new format, the pathologists will appear in what is actually their more typical role: that of helping clinicians with diagnosis and management of disorders.

Aspecto importante, particularmente em se tratando das necrópsias em casos de morte natural, diz respeito ao preenchimento pelo patologista responsável, ao final do procedimento, da Declaração de Obito, razao de ser dos comentários que se seguem.

Em 2006, foi publicado o opúsculo A Declaração de Obito: documento necessário e importante, sob a responsabilidade do Ministério da Saúde (MS), Conselho Federal de Medicina (CFM) e Centro Brasileiro de Classificação de Doenças (CBCD). Em 2007, publicou-se a 2ª edição, com tiragem de 400 mil exemplares. Na apresentação do opúsculo, fazem-se duas afirmativas inelutáveis: "A declaração de óbito é uma voz que transcende a finitude do ser e permite que a vida retratada em seus últimos instantes possa continuar a serviço da vida". [...] "O seu correto preenchimento pelos médicos é, portanto, um imperativo ético".

Subscrevo, ipsis litteris, essas afirmativas, mesmo porque, ciente de minhas limitações, sempre procurei, imbuído de elevado grau de responsabilidade, preencher corretamente a Declaração de Obito, respeitando, dentro do possível, a sequência fisiopatológica proposta: causa imediata → causas intermediárias → causa básica da morte (parte I); outros estados patológicos significativos que contribuíram para a morte, não estando, entretanto, relacionados com o estado patológico que a produziu (parte II). No entanto, faço restrições ao opúsculo - particularmente no que concerne aos casos de morte por causas naturais -, com base numa vivência de mais de 40 anos dedicados aos exercícios de correlação anatomoclínica, durante os quais tenho aprendido, cada vez mais, a alimentar dúvidas. Isso porque, o opúsculo editado pelo MS, CFM e CBCD somente admite o "não saber" - e, portanto, a utilização da expressão "causa da morte desconhecida" - em se tratando de localidades sem Serviço de Verificação de Obitos (SVO) e, assim mesmo, em circunstâncias muito específicas, ou seja: quando a morte ocorreu em ambulância sem médico; quando sobreveio parada cardíaca logo após a chegada do paciente ao pronto-socorro; quando o médico, na condição de único profissional da cidade, não prestou assistência ao paciente; e, finalmente, em caso de morte no trajeto, durante transferência de hospital, clínica ou ambulatório. Em localidades que dispoem de SVO, fica subentendido que todas as dúvidas se dissipariam após o exame do cadáver...

Resulta claro, portanto, que não se admite o "não saber" nos casos em que, mesmo tendo prestado assistência ao paciente, o médico não chegou à conclusão sobre a causa da morte, seja por ignorá-la completamente, seja por ter dúvidas a respeito do seu julgamento - situação comum na prática cotidiana, mesmo nos autodenominados "centros de referência". Ademais, não se admite o "não saber" após a realização da necrópsia em SVO, como se a simples avaliação macroscópica - com base na qual, na grande maioria dos casos, preenche-se a Declaração de Obito - fosse suficiente para dar por encerrada a questao.

Como já foi mencionado, nos casos de morte por causa supostamente natural, com ou sem assistência médica, a necrópsia só pode ser realizada mediante autorização por escrito - assinatura em termo de consentimento livre e esclarecido - de responsável ou pessoa da família. Idealmente, o procedimento deve ser realizado em centros universitários, por profissionais de notório saber. Mas, mesmo que a necrópsia seja autorizada, costumam persistir sérias dúvidas - mormente na falta de informes clínicos fidedignos - quando do preenchimento, baseado na macroscopia, da Declaração de Obito, dúvidas essas que, na maioria dos casos - mas nem sempre! -, são dirimidas por meio do estudo histopatológico, cujo resultado torna-se disponível somente algumas semanas após o exame cadavérico. Para ilustrar a importância da microscopia na reformulação do diagnóstico macroscópico, importa mencionar estudo realizado no Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP com base em 371 necrópsias. Em que pesem as limitações do referido estudo, reconhecidas pelos próprios autores, identificaram-se discrepâncias entre a avaliação macroscópica e microscópica da ordem de 38,7%, 35,1% e 30,3%, em se tratando, respectivamente, dos pulmoes, do fígado e dos rins.21 É claro que, quando possível, a realização de exames microscópicos por congelação durante o desenrolar-se da necrópsia pode, pelo menos em certos casos, fornecer, ao final da mesma, elementos preciosos para melhorar a qualidade da Declaração de Obito.

Defendo o ponto de vista de que deve ser facultado ao médico, mesmo nos casos em que foi realizada a necrópsia, expressar seu não saber, referindo-se a causa mortis desconhecida ou, preferencialmente, indeterminada, quando não tiver certeza do diagnóstico ou alimentar dúvidas sobre seu julgamento. O fato de se permitir a expressão do não saber somente nas circunstâncias especificadas no documento oficial, evoca, mais uma vez, as palavras de Guimaraes Rosa em Grande Sertao: Veredas: "No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam";22 ou aquelas de William James (1842-1910) inseridas, à guisa de epígrafe, no livro Como os médicos pensam, do Prof. Jerome Groopman, da Faculdade de Medicina da Universidade de Harvard: "Nós conseguimos a ordem deixando de fora a parte desordenada";23 ou, finalmente, aquelas da Dr.a Danielle Ofri, na seção On being a doctor do periódico Annals of Internal Medicine, ao se referir à "ilusão da onisciência": "The illusion of omniscience blithely promised by my residency training is easily deflated by the unadorned actualities of life".24

Ainda no tocante ao preenchimento da Declaração de Obito - tarefa das mais difíceis, ressalvados os casos "figura de livro" contemplados no documento oficial -, importa assinalar que casos há em que não se detectam, à necrópsia, nem mesmo alterações microscópicas que permitam a identificação da causa mortis, a ponto de configurar a chamada "necrópsia branca". É o caso, por exemplo, da morte súbita de jovens aparentemente saudáveis, sem quaisquer antecedentes mórbidos, acometidos pela Síndrome de Brugada, afecção geneticamente heterogênea, incluída entre as canalopatias (doenças dos canais iônicos), que se caracteriza, do ponto de vista eletrocardiográfico, pelo achado de morfologia de bloqueio do ramo direito do feixe de His associada a supradesnivelamento do segmento ST nas derivações precordiais direitas (V1 a V3). Na ausência de registro eletrocardiográfico prévio, o diagnóstico da afecção, de grande importância, mesmo post mortem, em face de seu caráter familiar, somente seria possível mediante a realização da chamada "necrópsia molecular", baseada na identificação das mutações genéticas que a caracterizam - como as mutações no gene SCN5A, que codifica a subunidade α dos canais de sódio -, cuja presença favorece o surgimento de arritmias fatais, frequentemente durante o sono.25

Na Faculdade de Medicina da UFMG, realizam-se necrópsias, de forma mais ou menos sistemática, há mais de 90 anos, embora, nos últimos anos, seguindo a tendência mundial, seu número tenha caído drasticamente, em que pesem os esforços de uns poucos professores, empenhados em reverter a preocupante situação. Seja como for, importa destacar dois notáveis patologistas que, ao longo da história da instituição, dedicaram-se, apaixonadamente, a promover os exercícios de correlação anatomoclínica a partir do exame cadavérico: o Prof. Carlos Pinheiro Chagas e, em especial, o Prof. Luigi Bogliolo.

Carlos Pinheiro Chagas (1887-1932), primo em segundo grau de Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas - o descobridor da tripanossomíase cruzi humana -, assumiu a cátedra de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da UFMG (entao UMG) no início dos anos 1920, logo após seu regresso de estágio de dois anos na Universidade Johns Hopkins, sob a supervisão de Florence Sabin (Histologia) e do famoso patologista William Mac Callum (Anatomia Patológica), a quem se deve a descrição das alterações do endocárdio atrial na cardiopatia reumática - as "placas endocárdicas murais de Mac Callum". Por ter falecido com apenas 45 anos, vitimado por apendicite aguda, e pelo fato de ter se dedicado, nos últimos anos de sua curta existência, à carreira política e a atividades administrativas, o "Carleto", como era conhecido na intimidade, cedo privou seus discípulos de suas memoráveis aulas sobre o cadáver, marcadas não apenas por robustos conhecimentos sobre a matéria, mas também por proverbial oratória.

Discípulo da Escola de Giovanni Battista Morgagni e docente das Universidades de Sassari (sua terra natal), Bari e Pisa, o patologista italiano Luigi Bogliolo (1908-1981) foi obrigado, aos 31 anos, a emigrar para o Brasil em virtude de sua posição antifascista e por ter se casado com uma estudante de Medicina de origem judaica, aportando no Rio de Janeiro em 5 de janeiro de 1940. Na capital da República, depois de enfrentar sérias dificuldades, passou a chefiar, a partir de janeiro de 1941, o Serviço de Anatomia Patológica da 5ª Cadeira de Clínica Médica da Faculdade Nacional de Medicina (hoje Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro), dirigida pelo notável clínico Heitor Annes Dias, o "Jiménez Díaz brasileiro". Ali, perfeitamente entrosado com o Prof. Annes Dias, Bogliolo deu grande impulso às Sessões Anatomoclínicas. As necrópsias dos casos apresentados nessas sessões eram realizadas por ele próprio, inspirado nas memoráveis lições de seu mestre Enrico Emilio Franco (1881-1950), italiano de origem judaica graduado pela Universidade de Pádua. Uma vez explorado o quadro clínico, formuladas as hipóteses diagnósticas e discutidas as possíveis razoes do óbito, cabia-lhe, ao final das sessões, apresentar o laudo anatomopatológico e, mais que isso, operar a grande síntese - a epícrise -, correlacionando os achados post mortem com aqueles observados intra vitam. Com a morte prematura de Annes Dias, em novembro de 1943, Bogliolo foi convidado por seu compatriota Alfredo Balena, diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais (hoje Faculdade de Medicina da UFMG), para assumir a cadeira de Anatomia Patológica da instituição que Balena ajudara a fundar em 1911. Em sua nova casa, continuou, a partir de 1944, a privilegiar as Sessões Anatomoclínicas até sua aposentadoria compulsória, em 1978; para atingir seu desiderato, contou com a efetiva colaboração de seus assistentes, com destaque para Edmundo Chapadeiro, Iracema Baccarini, Washington Luiz Tafuri, Pedro Raso, Pérsio Godoy, Alberto Nicolau Raick, Romeu Cardoso Guimaraes, José Eymard Homem Pittella e Alfredo José Afonso Barbosa. Na sala de necrópsias - por ele considerada uma espécie de "templo sagrado" -, Bogliolo exigia respeito absoluto ao cadáver, como se incorporasse a mensagem contida em famosa máxima latina - Taceant colloquia. Effugiat risus. Hic locus est ubi mors gaudet succurrĕre vitae. -, de acordo com a qual, num ambiente em que a morte se alegra em socorrer a vida, impoem-se o fim de toda conversação e a renúncia ao riso. Para retratar a postura austera de Bogliolo durante a realização do exame cadavérico, vale reproduzir o depoimento do saudoso psiquiatra Joaquim Affonso Moretzsohn, contido em seu livro Médicos mineiros escritores:26

Conheci o Prof. Bogliolo. Estreou com minha turma no 4º ano médico, em 1944. "Quê? Queres sentir cheiro de rosas?" - exclamou, com carregado sotaque peninsular, ao perceber que eu levava um lenço ao nariz, na sala de autópsia.

Durante o curso médico, a convite do Prof. Bogliolo, fui monitor do Departamento de Anatomia Patológica e Medicina Legal da Faculdade de Medicina da UFMG, chefiado pelo inesquecível mestre, e, depois de formado, na condição de auxiliar de ensino, vinculei-me, durante quatro anos, ao referido departamento. Nesse período, tive a oportunidade de realizar muitas necrópsias, consolidando minha crença no inestimável valor pedagógico dos exercícios de correlação anatomoclínica. A partir de maio de 1995, na condição de docente de Clínica Médica, assumi a coordenação das Sessões Anatomoclínicas do Hospital das Clínicas da UFMG, frequentadas por alunos da graduação, médicos-residentes, professores da instituição e demais interessados. Entre maio de 1995 e novembro de 2013, coordenei, presencialmente, 226 Sessões Anatomoclínicas (190 baseadas em necrópsias e 36 baseadas em biópsias/peças cirúrgicas). Na 116ª sessão, discutiu-se um caso de mucopolissacaridose tipo II (síndrome de Hunter), marcado por insuficiência respiratória e expressivo acometimento cardíaco, com o achado de aneurisma apical do ventrículo esquerdo muito semelhante à lesão vorticilar da cardiopatia chagásica crônica, por muitos considerada patognomônica desta afecção; a convite do editor da seção Correlação Anatomoclínica dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Dr. Alfredo José Mansur, esse caso foi publicado no número de julho de 2006 do referido periódico.27 Na 215ª sessão, discutiu-se um caso de choque decorrente de volumoso feocromocitoma necro-hemorrágico clinicamente insuspeitado; esse caso foi publicado on-line, em 2012, no periódico Autopsy and Case Reports.28 O periódico Arquivos Brasileiros de Cardiologia, cuja fundação remonta a 1948, há muitos anos mantém a seção Correlação Anatomoclínica, baseada na meticulosa análise de casos de necrópsia. Quanto ao periódico Autopsy and Case Reports, trata-se de revista eletrônica, de acesso livre, editada trimestralmente, desde março de 2011, pelo Hospital Universitário da USP e destinada a privilegiar relatos de casos, com ênfase nas necrópsias. Na condição de membro da Comissão de Publicação desta revista eletrônica, redigi, em 2013, um depoimento, sob forma de editorial, a respeito de minha ligação visceral com as Sessões Anatomoclínicas.29

Em 1992, publiquei o livro Vida e obra de Luigi Bogliolo,30 dedicado à memória do saudoso mestre e, em 2010, o livro Sessões Anatomoclínicas: valor pedagógico lato sensu.31 Nesta obra, prefaciada pelo Dr. Alfredo José Mansur, Diretor da Unidade Clínica de Ambulatório Geral do InCor-USP, procurei estimular o diálogo com outras disciplinas - como a Biologia, a Educação Médica, a Saúde Pública, a Medicina Legal, a Psicologia, a História da Medicina e, até mesmo, a Literatura -, razao de ser da expressão lato sensu incluída no título.

Desde abril de 2007, juntamente com o Prof. Geraldo Brasileiro Filho, atual editor do livro Bogliolo: Patologia, tenho participado ativamente das sessões interativas de Telepatologia - 42 sessões até outubro de 2013 -, caracterizadas pela transmissão por videoconferência, em tempo real, de necrópsias realizadas no Serviço de Verificação de Obitos da Faculdade de Medicina da USP. Introduzidas em nosso meio graças à clarividência de pessoas como os professores György Miklós Böhm e Chao Lung Wen, tais sessões constituem importante modalidade de educação à distância, na medida em que propiciam, não apenas aos alunos da graduação, como também aos próprios médicos, excelente oportunidade para o refinamento do raciocínio clínico a partir da confrontação dos achados observados intra vitam com aqueles identificados post mortem.32 Mais recentemente, ou seja, desde setembro de 2012, a convite do Dr. Fernando Peixoto Ferraz de Campos e da Profa Maria Cláudia Nogueira Zerbini, editores do periódico Autopsy and Case Reports, tenho participado ativamente, na companhia de professores da UFMG - incluído o Prof. Geraldo Brasileiro Filho - e da USP, de reunioes interativas, também transmitidas por videoconferência, destinadas a discutir casos de necrópsias realizadas no Hospital Universitário da USP (11 reunioes até novembro de 2013).

Concluindo, penso que num tempo em que o número de necrópsias, por razoes várias, caiu de forma drástica em todo o mundo, incluído o Brasil; num tempo em que, em muitas instituições universitárias brasileiras, a disciplina de Anatomia Patológica vem sendo relegada a plano secundário, mesmo porque, no entendimento de alguns peritos em educação médica, a referida disciplina só deveria interessar aos futuros patologistas; e, como consequência das duas primeiras premissas, num tempo em que os exercícios de correlação anatomoclínica baseados em necrópsias estao condenados à extinção, caberia àqueles que, como eu, acreditam firmemente no inestimável valor dessa atividade acadêmica, criar condições para não deixá-la morrer de inanição, com indiscutível prejuízo para a formação das novas gerações de médicos, privados de conviver com as incertezas que envolvem a profissão que elegeram.33 Ademais, sob certas circunstâncias - e por paradoxal que isso possa parecer -, esse prejuízo pode estender-se às próprias famílias enlutadas, na medida em que a ignorância a respeito das razoes do óbito dos respectivos entes queridos pode dificultar sobremaneira a elaboração de sua perda e a assimilação de sua ausência, ao passo que o conhecimento dessas razoes pode exercer efeito contrário. A propósito, não foi sem motivo que, em artigo sobre a reação à necrópsia por parte das famílias enlutadas, os autores, liderados pelo Prof. Stephen J. McPhee, um dos editores do Current Medical Diagnosis & Treatment - atualmente na 53ª edição -, incluíram, à guisa de epígrafe, sugestivo fragmento do Velho Testamento, extraído do Livro de Oseias (13:14): "[...] ransom them from the power of the grave; [...] redeem them from death [...]".34

 

REFERENCIAS

1. Rezende JM. Autópsia, autopsia, necrópsia, necropsia. In: Rezende JM. Linguagem médica. 4ª ed. Goiânia: Kelps; 2011. p. 97-8.

2. Zampieri F, Zanatta A, Thiene G. An etymological "autopsy" of Morgagni's title: De sedibus et causis morborum per anatomen indagatis (1761). Hum Pathol. 2014;45:12-6.

3. White PD. Richard Clarke Cabot 1868-1939. N Engl J Med. 1939;220:1049-52.

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