ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Medicina baseada na indiferença
Based medicine indifference
Jair Leopoldo Raso
Médico. Coordenador do Serviço de Neurocirurgia dos Hospitais Unimed BH e Vila da Serra Belo Horizonte, MG - Brasil
Endereço para correspondênciaJair Leopoldo Raso
E-mail: jraso@uol.com.br
Recebido em: 22/07/2012
Aprovado em: 25/10/2013
Instituiçao: Hospital Unimed BH e Vila da Serra Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
A Medicina atual requer para si o estatuto de ciência, e o estado atual desta arte científica chama-se medicina baseada em evidência. Os principais pilares dessa nova Medicina são as análises críticas de estudos randomizados e controlados e esses estudos propriamente ditos. Entretanto, várias barreiras devem ser vencidas pelos médicos na tradução para sua prática diária das evidências desses estudos. Não raro, os médicos praticam o oposto do preconizado pelas evidências, baseando sua atividade na indiferença.
Palavras-chave: Medicina Baseada em Evidência; Endarterectomia; Angioplastia.
INTRODUÇÃO
Desde sua publicação, em 1992, no prestigioso periódico Journal of American Medical Association (JAMA)1, a medicina baseada em evidência (MBE) tem se tornado verdadeiro mantra, falado e repetido a quatro cantos pelos profissionais de saúde.
Tem sido também utilizada pelas seguradoras e outras operadoras para conceder ou negar cobertura de tratamentos.
A prática da MBE em nosso meio, entretanto, não é tao evidente assim.
A Medicina de hoje requer para si o estatuto de ciência, e o estado atual desta arte científica chama-se medicina baseada em evidência.
A finalização e publicação de ensaios clínicos controlados e randomizados não garante, entretanto, a prática da MBE.
Vale dizer que, principalmente em nosso meio, a prática da medicina baseada em evidência científica não é disseminada, constituindo-se em prática comum a indiferença aos resultados de estudos randomizados.
As razoes são muitas, e neste artigo pretende-se discutir algumas delas.
MEDICINA BASEADA EM EVIDENCIA
A MBE tem como pilar sólido as evidências das pesquisas clínicas. No topo da evidência estao as revisões sistemáticas dos ensaios clínicos controlados e randomizados, além dos próprios ensaios. Seguem a revisão sistemática de estudos de coorte os estudos caso-controle e, quase na base da pirâmide, relato de casos.
A MBE não concorda com Le Breton, para quem "a palavra do especialista é evangelho para os leigos". A opiniao do profissional médico é o grau mais rasteiro de evidência científica.
A prática dessa nova Medicina exige que o médico não apenas pesquise a literatura especializada, mas que tenha capacidade para analisar, de modo crítico, as publicações.
A quantidade de publicações médicas, em todas as áreas da Medicina, é imensa e em contínuo crescimento. É impossível para qualquer médico ler tudo aquilo que foi publicado em sua área de atuação, muito menos que faça a análise sistemática das publicações. Em nosso meio, os médicos, de modo geral, gastam a maior parte de seu tempo em atividade, devido à baixa remuneração dos serviços prestados, o que exige elevada carga horária de trabalho. Dedicam menos horas ao estudo e à atualização, que tem de caber no seu orçamento.
Além do elevado número de revistas científicas (mais de 100.000), a qualidade e relevância do que se publica varia muito. As revistas indexadas nas bases de dados internacionais mais prestigiadas pela comunidade científica correspondem apenas a cerca de 10% do total de revistas existentes e são responsáveis por mais de 90% dos trabalhos científicos considerados mais relevantes.2
Isso, por si só, já seria grande barreira para a prática da MBE. Por outro lado, o acesso às publicações é facilitado pela internet que, em muitos casos, dispensa os serviços de comutação das bibliotecas na busca por artigos originais. A subespecialização dos profissionais também permite a restrição de sua área de interesse e, portanto, de atualização.
A MBE tem outras limitações.3 A maioria dos ensaios clínicos randomizados é realizada na América do Norte e na Europa ocidental, berço dos avanços tecnológicos na área de saúde. Os achados e conclusões de estudos nessa população nem sempre podem ser estendidos para o mundo em desenvolvimento.
Basta avaliar algumas características da experiência clínica em países menos desenvolvidos para entender as limitações da extrapolação de seus achados para áreas mais pobres. Ao contrário do que ocorre na população-alvo da maioria dessas pesquisas, em regioes menos favorecidas as doenças têm apresentação tardia, pela dificuldade de acesso da população aos serviços de saúde, com consequente atraso no diagnóstico. Além disso, o encaminhamento para serviços de referência é difícil, o controle de infecção é reduzido e o seguimento dos pacientes é precário, se comparado aos centros desenvolvidos. Em nosso meio, a prática da automedicação é avassaladora e o paciente tem dificuldade em manter o tratamento proposto, muitas vezes por limitações econômicas.
Nenhuma dessas características é levada em conta em algum dos ensaios clínicos randomizados.
A implantação da MBE na maioria das instituições do terceiro mundo, bem como sua aceitação pelas operadoras de plano de saúde, não se faz naturalmente e a incorporação de novas tecnologias é muito lenta ou simplesmente inviável.
O cenário mais preocupante, entretanto, ocorre quando todas essas barreiras são vencidas e, ainda assim, a MBE não é praticada. Seu exemplo é o embate entre duas modalidades de tratamento para estenose carotídea grave. A MBE demonstrou que estenoses sintomáticas ou assintomáticas acima de 60-70% devem ser tratadas por endarterectomia ou por angioplastia com colocação de stent. Mais que todas as técnicas cirúrgicas, essas duas modalidades de tratamento têm merecido numerosos estudos controlados randomizados. Uma vez estabelecidos os critérios de indicação e disseminação de sua prática, a comparação entre as duas modalidades de tratamento passou a ser o centro das atenções. De um lado, a novidade científica da angioplastia, que não requer cortes e é aparentemente mais simples de ser executada, embora seja muito mais cara. Do outro, o tratamento cirúrgico, a endarterectomia, cujos resultados se mostraram superiores aos da angioplastia. A publicação do Carotid Revascularization Endarterectomy vs Stenting Trial (CREST)4, estudo controlado e randomizado comparando a angioplastia com a endarterectomia carotídea, poderia ter colocado fim aos questionamentos. As duas modalidades são eficazes no tratamento da estenose carotídea grave, embora os resultados da endarterectomia sejam superiores quanto à prevenção do acidente vascular cerebral, razao pela qual o tratamento é indicado. Ao contrário do que se pensava antes desse estudo, a endarterectomia carotídea tem resultados ainda melhores em octogenários. Era de se esperar, pela difusão da bem, que a indicação de endarterectomia fosse crescer e da angioplastia fosse diminuir. O que se deu, mesmo após a publicação do CREST, foi justamente o contrário.
Crítica mordaz à medicina baseada em evidência é feita por Grahame-Smith, no formato da dialética socrática.5 Alerta para o tempo excessivo que muitos médicos dedicam na busca por evidência, afastando-se do exame direto dos pacientes, bem como do risco do uso da medicina baseada em evidência pelos gestores em busca de medicina baseada no custo-benefício.
Dalvi6 chama a atenção para as limitações da MBE na população pediátrica. Por razoes logísticas e éticas, estudos controlados e randomizados em crianças são bem mais raros. Os critérios de inclusão e exclusão geralmente diferem do cenário do dia-a-dia do médico. Indicam também a influência de fatores humanos envolvidos na pesquisa como cirurgioes, anestesistas, perfusionistas, enfermeiros, intensivistas, fisioterapeutas, etc., que podem influir nos resultados.
Em artigo jocoso, Isaac e Fitzgerald7 propoem sete alternativas à MBE. Seriam as medicinas baseadas em: eminência, que leva em conta a experiência do médico; veemência e eloquência, baseadas na capacidade de convencimento do profissional; providência, que se fundamenta na crença religiosa; difidência, quando o profissional desconfia das evidências; previdência, quando pratica medicina defensiva; e confiança ("confidence"), quando o médico se julga acima das evidências. Segundo os autores, esta última alternativa seria restrita aos cirurgioes.
As essas sete opções acrescento uma oitava: a medicina baseada na indiferença.
Mesmo que tenha conhecimentos suficientes para a prática da MBE, as condições de trabalho do médico em países em desenvolvimento e sua atitude frente à novidade científica os levam muitas vezes a ignorar as recomendações das evidências, preferindo a prática da medicina baseada na indiferença.
A ignorância dos médicos em relação aos resultados dos estudos científicos poderá ser combatida com a difusão de diretrizes elaboradas a partir dos conceitos da MBE. Quanto à indiferença, a tarefa será ainda mais desafiadora, pois requer mudança de atitude.
CONCLUSÕES
Há muitas barreiras a serem vencidas entre a realização dos estudos científicos que caracterizam a MBE, sua publicação e aplicação na prática médica.
Esses desafios são ainda maiores nos países em desenvolvimento, onde os médicos baseiam sua prática nem sempre nas evidências dos estudos randomizados e controlados, permanecendo indiferentes a elas.
REFERENCIAS
1. Evidence-Based Medicine Working Group. Evidence-based medicine. A new approach to teaching the practice of medicine. JAMA. 1992 nov 4;268(17):2420-5.
2. Pitella JE. Construindo o saber da ciência. Belo Horizonte: Coopmed; 2012.
3. Chinnock P, Siegfried N, Clarke M. Is evidence-based medicine relevant to the developing world? eCAM. 2005;2(3):321-4.
4. International Carotid Stenting Study Investigators. Carotid artery stenting compared with endarterectomy in patients with symptomatic carotid stenosis (International Carotid Stenting Study): an interim analysis of a randomized controlled trial. Lancet. 2010 March 20;375(9719):935-97.
5. Grahame-Smith D. Evidence based medicine: Socratic dissent. BMJ. 1995;310:1126-7.
6. Dalvi B. Evidence-based medicine: how evident is it? Ann Pediatr Cardiol. 2010;3(2):105-6.
7. Isaacs D, Fitzgerald D. Seven alternatives to evidence based medicine. BMJ. 1999;319:1618.
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