RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 22. 4

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Educação Médica

O valor de um currículo

The value of a curriculum

Fernando Marcos dos Reis

Professor Adjunto do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Av. Prof. Alfredo Balena, 190 sala 213 Bairro: Santa Efigênia
CEP: 30130-100 Belo Horizonte, MG - Brasil
E-mail: reis@medicina.ufmg.br

Recebido em: 03/09/2012
Aprovado em: 15/11/2012

Instituiçao: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

O currículo conserva a identidade e a vocação da escola, mas também é reflexo do seu tempo e precisa mudar para acompanhar o que se passa no mundo.

Palavras-chave: Educação Médica; Educação de Graduação em Medicina; Escolas Médicas; Currículo.

 

INTRODUÇÃO

"The instructor should remember that his business is not so much to teach the child all that is knowable, as to raise in him a love and esteem of knowledge; and to put him in the right way of knowing and improving himself." (Jonh Locke. Some Thoughs Concerning Education, London, 1693 p.195).

Currículo: (latim curriculum, -i) s. m.: 1. Ato de correr. = CARREIRA, CURSO; 2. Desvio para encurtar caminho. = ATALHO; 3. Descrição do conjunto de conteúdos ou matérias de um curso escolar ou universitário; 4. Documento que contém os dados biográficos e os relativos à formação, conhecimentos e percurso profissional de uma pessoa (Dicionário Priberam da Língua Portuguesa).

 

HISTORICO

Currículo é percurso, caminho, roteiro, trajetória. O currículo acadêmico é hoje entendido como a sequência predeterminada de estudos, ao fim dos quais o estudante obtém o grau universitário ou, no caso da residência médica, o título de especialista. A discussão sobre como deve ser o currículo de formação do médico é relativamente recente. Até meados do século XIX, as escolas médicas ofereciam uma série de disciplinas abrangendo todas as áreas da Medicina entao existentes e o estudante devia completá-las em qualquer ordem, sem um percurso definido. Na virada para o século XX, ganhava força a proposta de organizar os estudos em sequência lógica, iniciando com disciplinas morfológicas (anatomia, histologia e embriologia), passando às fisiológicas (fisiologia e química fisiológica), depois à patologia e microbiologia e, finalmente, às disciplinas clínicas. Ao mesmo tempo, surgiram as experiências de cursos modulares, com imersão do estudante ao longo de um trimestre na mesma matéria. Nas palavras do diretor da Escola de Medicina da Harvard, Henry Pickering Bowditch1, pronunciadas em 2 de maio de 1900, perto de concluir o primeiro ano acadêmico do novo sistema curricular, baseado no estudo concentrado de uma disciplina após outra, em ordem lógica, "ainda é cedo para se chegar a uma conclusão final, mas até agora a impressão dos docentes e dos estudantes é de que o método é um sucesso". E, efetivamente, foi um sucesso. Replicado e difundido em todo o mundo até os dias de hoje.

A previsão de Bowditch1 antecipou uma década o relatório Flexner, conhecido como marco inaugural da educação médica no século XX. Ambos defenderam a associação das escolas médicas, até entao predominantemente autônomas, a universidades, o que facilitaria aos estudantes de Medicina cursar disciplinas de outras áreas, e vice-versa, além de garantir que o futuro médico passasse ao menos dois anos em estudos superiores de ciências e artes antes de ingressar no curso de Medicina.

Na mesma época, houve um longo debate sobre questoes fundamentais do currículo médico que, passados 112 anos, permanecem atuais1. São elas:

currículo dos departamentos vs. currículo dos alunos. Cada departamento de uma escola médica de primeira linha deve, naturalmente, oferecer cursos de alto nível na sua área de especialização, abrangendo todos os ramos da especialidade com toda a profundidade necessária para formar e reciclar especialistas. Se todo esse conteúdo for considerado disciplina obrigatória no curso de graduação em Medicina, não haverá aluno, por mais genial que seja, capaz de seguir todas as matérias. Portanto, é necessário traçar uma linha divisória entre o conteúdo essencial para todo estudante e o conteúdo complementar, desejável para parte dos estudantes conforme seu interesse e aptidao. Os departamentos não podem ficar restritos às disciplinas obrigatórias da graduação e os estudantes não podem ser obrigados a absorver tudo o que os departamentos oferecem. Discernir o que deve ser obrigatório e o que deve ser optativo é uma das tarefas mais árduas de quem planeja um currículo.

currículo rígido vs. currículo flexível. Admitindo que existam atividades obrigatórias comuns a todos os estudantes e atividades optativas, seguidas por apenas uma parte dos alunos, resta ainda definir quando, e em que extensão, os alunos devem ter a liberdade de escolher as matérias que vao estudar. É também desejável que a educação universitária não fique restrita à formação profissionalizante, mas inclua incursões em outras áreas do conhecimento. A flexibilidade é um conceito antigo e bem enraizado na pós-graduação, mas é surpreendente como tem demorado a permear a graduação em Medicina, pelo menos no Brasil. Em amostra aleatória de históricos escolares da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) no período de 1917 a 1991, não foram encontradas disciplinas eletivas, entendidas como disciplinas oferecidas por outros cursos ou institutos da mesma Universidade, e registraram-se raras disciplinas optativas do próprio curso médico. A experiência de outras escolas provou que não se deve ter um currículo inteiramente rígido nem totalmente flexível, mas um meio-termo. Nos últimos anos, percebe-se esforço da administração acadêmica em todo o país para solucionar a difícil equação: [(atividades obrigatórias essenciais + optativas da área profissional + disciplinas eletivas + atividades curriculares complementares) x carga horária estabelecida em lei] + tempo livre para estudo e lazer = tempo máximo para integralização do curso. Com a constatação de que o conhecimento avança rápido e é impossível ensinar de tudo a todos, tornou-se imperativo revisar o currículo permanentemente e renovar o conteúdo programático das disciplinas, para que o tempo restrito do estudante seja aproveitado da melhor forma possível. Por mais que aumente a pressão pela inclusão de novos conteúdos obrigatórios, há limite óbvio para essa expansão - o dia tem apenas 24 horas e o curso de Medicina deve permanecer restrito a seis anos. Expandir os conteúdos obrigatórios à custa do currículo flexível não resolve o problema e, provavelmente, sacrifica uma parte importante da formação universitária. Um outro motivo para se limitar os conteúdos obrigatórios é que eles devem ser ensinados com profundidade e consistência, e para isso é preciso fazer escolhas, pois o excesso de conteúdo leva à superficialidade e à inoperância.2

metodologias de ensino passivas vs. ativas. Há mais de um século o ensino médico se dá pela combinação de diversos métodos: aula expositiva, arguição, grupos de discussão, estudo de casos clínicos, prática de laboratório, prática à beira do leito. É igualmente antigo o debate sobre qual desses métodos é mais efetivo. Alguns argumentam que a escuta passiva, pelo estudante, da exposição oral do professor é equivalente à leitura de um livro em voz alta e não traz qualquer contribuição ao aprendizado. A palavra lecture vem do latim lectus, conjugação do verbo legere, remanescente no italiano moderno e correspondente ao substantivo lettura, que significa tanto leitura como aula expositiva. Mas há de se reconhecer que a boa exposição oral vai muito além da récita do livro-texto. Um bom orador desperta o interesse do ouvinte e o conduz por uma trilha de pensamento inteligente. Já as metodologias ativas tornaram-se indispensáveis na formação do futuro médico, com evidentes benefícios para a fixação do conhecimento e a aquisição de habilidades. A conclusão óbvia é que nenhum método isolado se basta e nenhum é completamente inútil. É preciso que o professor aprenda a usar bem todos eles e extraia o melhor de cada um. Nas palavras de Bolditch, "um bom professor com um mau método é mais efetivo do que um mau professor com um bom método".

avaliação formativa vs. certificativa. A avaliação do estudante é parte indissociável do currículo e do processo de aprendizagem. No curso de Medicina, repleto de atividades práticas em que o estudante adquire competências cognitivas, psicomotoras e comportamentais a cada dia, é fundamental que o professor avalie e comunique ao estudante o progresso e as dificuldades verificadas durante o treinamento deste - a modalidade de avaliação formativa. Já a modalidade certificativa é destinada a verificar conhecimentos e competências perenes, aquilo que o estudante adquiriu e reteve para o futuro. Uma terceira modalidade, que é o teste de memorização de conteúdos no curto prazo, é considerada inócua ou mesmo nociva há mais de um século, mas ainda não foi abandonada pelas escolas médicas. Como parte integrante do currículo, o processo de avaliação também se nutre do discernimento entre o que é conteúdo essencial, indispensável a todos os graduandos, e o que é acessório ou complementar. Não há como fugir dessa arbitragem, com seu significado político e sua permanente necessidade de atualização.

 

A EXPERIENCIA DA UFMG

O curso de Medicina da UFMG iniciou suas atividades em abril de 1912 e, ao longo desses 100 anos, não apenas refletiu e incorporou, mas também promoveu e difundiu mudanças na concepção e nas estratégias de formação do médico. Diversas adaptações, ajustes e mudanças curriculares ocorreram nesse período (Tabela 1), com a inclusão de novas ciências, fusões e desmembramentos de disciplinas, ampliação do campo de prática e modernização dos recursos didáticos.

 

 

Pode-se dizer que a UFMG tem o seu currículo como se fosse o DNA institucional? Sim, se se considerar a imensa homologia do DNA de dois indivíduos da mesma espécie e se igualmente for levada em conta a epigenômica.

 

CONCLUSÃO

O currículo conserva a identidade e a vocação da escola, mas também é reflexo do seu tempo e precisa mudar para acompanhar o que se passa no mundo.

 

REFERÊNCIAS

1. L Bowditch HP. The medical school of the future. Boston Med Surg J. 1900;142:445-43.

2. Castro CM. Naufrágio curricular. Veja. 2002; 29 de maio, p.22.