ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Brinquedoteca: estratégia lúdica educativa complementar às ações de integralidade no Programa Estadual de Triagem Neonatal
Toy library: ludic educational strategy complementary to the actions of integrality in the Neonatal Screnning State Program
Mérupe Venancio Romanini1; Isabel Pimenta Spínola Castro2; Michelle Andrade Rosa3; Cristiane Miranda Rust4; Ivan Magalhaes4; José Nélio Januário5; Ana Lúcia Pimenta Starling6
1. Psicóloga. Centro de Educaçao e Apoio Social - CEAPS do Núcleo de Açoes e Pesquisa em Apoio Diagnóstico - NUPAD da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte - MG, Brasil
2. Psicóloga. NUPAD. Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte - MG, Brasil
3. Nutricionista. CEAPS/NUPAD. Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte - MG, Brasil
4. Assistentes Sociais. CEAPS/NUPAD. Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte - MG, Brasil
5. Professor do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG. Diretor Geral do NUPAD. Belo Horizonte - MG, Brasil
6. Professora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte - MG, Brasil
Ana Lúcia Pimenta Starling
E-mail: alstarling@ufmg.br
Instituiçao: CEAPS/NUPAD. Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte - MG, Brasil
Resumo
Os autores relatam as estratégias de trabalho da equipe multidisciplinar do NUPAD FM-UFMG com as crianças triadas pelo PETN-MG e atendidas no CEAPS. Salienta-se o papel da brinquedoteca como espaço lúdico e de convivência no comportamento das famílias e das criancas frente aos problemas trazidos pelas doenças crônicas.
Palavras-chave: Jogos e Brinquedos; Educação Em Saúde; Triagem Neonatal; Doença Crônica.
INTRODUÇÃO
Em setembro de 1993 o Programa Estadual de Triagem Neonatal (PETN-MG) foi implantado no estado mediante ação conjunta entre a Secretaria de Estado da Saúde e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) por meio do Núcleo de Ações e Pesquisa em Apoio Diagnóstico (NUPAD), órgao complementar da Faculdade de Medicina (FM). Em 2001, o NUPAD-FM-UFMG foi credenciado pelo Ministério da Saúde como serviço de referência em triagem neonatal, atuando nos 853 municípios e com cobertura de aproximadamente 96% dos recém-nascidos em todo o estado de Minas Gerais.
O Centro de Educação e Apoio Social, o CEAPS, é um espaço que pertence ao NUPAD/FM/UFMG e tem como finalidade planejar e organizar as ações educativas, sociais e de apoio assistencial aos pacientes oriundos do PETN-MG, assim como aos seus familiares, que precisam permanecer longo período do dia em Belo Horizonte enquanto aguardam consultas e/ou exames especiais.
Estudos têm mostrado que crianças com doencas crônicas e suas famílias beneficiam-se de políticas educacionais de acolhimento e de convivência, resultando em melhores taxas de adesão aos tratamentos preconizados.1 Nesse sentido, foi constituída a brinquedoteca do CEAPS, que visa a propiciar um espaço de convivência e de troca de experiências entre as crianças e suas familias.2
CEAPS E BRINQUEDOTECA: ESPAÇOS DE ACOLHIMENTO E SEU PAPEL TERAPEUTICO
Conhecido como "teste do pezinho", o exame de triagem neonatal detecta, atualmente, quatro doenças: fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito, doença falciforme e fibrose cística. As duas primeiras, se não tratadas precocemente, ocasionam retardo mental irreversível. Já a doença falciforme e a fibrose cística necessitam de acompanhamento nos níveis primário, secundário e terciário e as intercorrências precisam ser prontamente atendidas, pois apresentam altas taxas de mortalidade.
O tratamento dos pacientes com as doenças detectadas pelo PETN-MG é realizado por equipes multidisciplinares, com o objetivo de reduzir a morbimortalidade. Pacientes com fenilcetonúria são atendidos às terças e quartas-feiras no Ambulatório de Fenilcetonúria do Serviço Especial de Genética do Hospital das Clínicas da UFMG; aqueles com fibrose cística são atendidos nos ambulatórios de Pneumologia do Hospital das Clínicas e do Hospital Joao Paulo II da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG); pacientes com doença falciforme são atendidos nos hemocentros da Fundação Hemominas; e os pacientes com hipotireoidismo congênito são atendidos nos próprios municípios onde residem, mas comparecendo em Belo Horizonte para as consultas anuais, além de, periodicamente, realizarem exames etiológicos.
O nascimento de uma criança com doença crônica pode apresentar dificuldades para os pais e para a família em geral. É preciso adaptar-se à nova realidade: a inclusão de um novo membro com uma doença desconhecida pode trazer implicações para a aceitação do recém-nascido, para os tratamentos prolongados, além de sentimentos de culpa e incertezas sobre o futuro.
Cuidar de uma pessoa com doença crônica, criança em particular, é uma experiência difícil, pois muitas vezes são necessários procedimentos aversivos, consultas frequentes e hospitalizações, acarretando mudanças na dinâmica familiar, no estilo de vida, desgastes nas relações pessoais e, de certa forma, isolamento social e emocional de pais e familiares. A doença entra no contexto familiar nos primeiros dias de vida da criança, abalando os ideais imaginários parentais, desorganizando a rotina e trazendo à tona conflitos latentes.
O abalo narcísico sofrido pelos pais que recebem uma criança "doente", muito diferente da criança idealizada, precisa de tempo para ser elaborado. Dúvidas e fantasias referentes ao desenvolvimento da criança são constantes. Costumeiramente, aparecem questionamentos sobre o futuro do paciente, o que pode ocasionar reduzido investimento em relação ao tratamento e à criança.
A experiência de atendimento aos pais e familiares desses pacientes do PETN-MG tem evidenciado as dificuldades vivenciadas por esse grupo familiar que recebe o diagnóstico da doença pouco tempo após o nascimento da criança. Há um desarranjo do grupo em decorrência das viagens constantes, do uso de medicamentos diários, das restrições dietéticas rígidas, de acordo com a doença diagnosticada.
Um dos objetivos dos trabalhos desenvolvidos no CEAPS é tornar a estada do paciente e do acompanhante mais agradável e produtiva, reduzindo o desconforto inerente ao processo de diagnóstico e tratamento, atendendo ao que a Organização Mundial de Saúde considera como promoção do bem-estar: ou seja, a satisfação das necessidades biológicas, o bem-estar físico e das necessidades psicológicas, o bem-estar mental e das necessidades sociais e o bem-estar social.
Essa atuação é pontual e não consegue interagir de maneira mais prolongada com os pacientes, com suas famílias e com os profissionais de saúde dos locais onde essas pessoas residem. Era, portanto, necessário procurar uma maneira de aprimorar as ações de educação e de acolhimento junto aos pacientes, não só enquanto permaneciam no local, atendendo à proposta preconizada pelo SUS, mas também quando voltassem ao município onde residem, com ações educativas e permissionárias de atenção integral ao indivíduo.3
METODOLOGIA
Criada em 2007 como parte do CEAPS-NUPAD-FM-UFMG, a Brinquedoteca-Espaço Lúdico visa a oferecer um espaço para atividades lúdicas, que atue como auxiliar e complementar às estratégias convencionais de atenção do PETN-MG e cujas metodologias desenvolvidas possam servir de suporte e serem utilizadas pelos demais serviços de saúde onde esses pacientes fossem atendidos. As estratégias podem ser usadas, ainda, na capacitação de profissionais, pacientes e familiares, buscando melhor entendimento e percepção das reações dos pacientes às doenças que os acometem.4
As atividades na Brinquedoteca-Espaço Lúdico são educativas, pedagógicas e informativas e desenvolvidas para resgatar a cultura lúdica como mediadora da relação entre pessoas, entre a saúde e a doença, procurando ampliar e melhor adequar a comunicação entre serviços, paciente e família, propiciando mais compreensão da doença e, em consequência, mais adesão ao tratamento.5
Nesse espaço, a criança, o adolescente e os familiares têm acesso a materiais educativos, diversos brinquedos e brincadeiras, permitindo exteriorizar seus conteúdos emocionais e psíquicos, trabalhar as habilidades perceptivas, cognitivas e motoras, além de interagir com outras crianças e familiares, vivenciando situações de cooperação e compartilhamento.
Ao mesmo tempo, o grupo recebe e contribui com ações de educação em saúde, uma forma rápida, simples, de baixo custo e bastante humanitária para a apropriação e ampliação do conhecimento pela família. Essa capacitação de pais e pacientes possibilita-lhes lidar com as intercorrências e dúvidas que surgem ao longo da vida. A construção do conhecimento sobre as doenças envolvendo as relações psicossociais provindas da enfermidade é fundamental para a efetividade e adesão ao tratamento e para a qualidade de vida.5
RESULTADOS
A implantação da Brinquedoteca-Espaço Lúdico vem compor o amplo leque de dispositivos para assistência aos pacientes diagnosticados e em tratamento pelo Programa Estadual de Triagem Neonatal.
Diariamente, acontecem atividades lúdicas e educativas diversas, que seguem um cronograma prévio e que são ministradas por profissionais da equipe multidisciplinar e apoiadas por acadêmicos. Essas atividades são realizadas, também, em outros locais, como a sala de espera dos ambulatórios e em eventos como treinamentos, confraternizações, congressos e mobilizações sociais.
Até dezembro de 2011 estavam em acompanhamento pelo PETN-MG 285 crianças com fenilcetonúria, 1.142 crianças com hipotireoidismo congênito, 162 crianças com fibrose cística e 2.446 crianças com doença falciforme e outras hemoglobinopatias.
O CEAPS-NUPAD-FM-UFMG recebe diariamente considerável número de crianças e de seus familiares/acompanhantes, com média de 262 pessoas/semana, dos quais pouco mais da metade são pacientes e os demais são seus familiares. Os pacientes têm idades variadas, desde recém-nascidos com diagnóstico recente até adolescentes e alguns adultos. Atualmente, as consultas dos adolescentes são marcadas, prioritariamente, em um mesmo dia do mês, na tentativa de se aumentar a convivência e o relacionamento entre eles. Como o tratamento para fenilcetonúria é o único totalmente centralizado em Belo Horizonte, a maior parte dos pacientes que comparecem ao CEAPS-NUPAD-FM-UFMG são fenilcetonúricos, em particular às terças e quartas-feiras.
Em 2010 e 2011 a Brinquedoteca-Espaço Lúdico recebeu apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Esse apoio permitiu, além da aquisição de brinquedos pedagógicos e educativos, a confecção de 12 tipos de fôlders educativos, que são distribuídos durante os cursos de treinamento dos profissionais de saúde dos municípios, realizados mensalmente. Os familiares também recebem os fôlders, que são discutidos durante as oficinas. Quando há solicitação os fôlders são fornecidos às escolas e unidades de saúde. Também os profissionais dos "Centros Viva Vida" em treinamento pelo NUPAD-FM-UFMG, em parceria com as Secretarias Estadual e Municipais de Saúde, recebem e discutem os fôlders e a utilização dos mesmos.
Foi feita nova edição - revista e ampliada - do livro "Entendendo a Fenilcetonúria" que é entregue aos familiares dos pacientes fenilcetonúricos quando da primeira consulta no serviço e que é, também, enviado às escolas e unidades básicas de saúde dos municípios onde residem pacientes com a doença.
Foi editada uma cartilha "Ações de Boa Convivência" usada durante a permanência dos pacientes e acompanhantes, que lhes é entregue quando comparecem no CEAPS-NUPAD-FM-UFMG, com discussão dos diversos pontos nela relacionados.
As oficinas constituem a principal forma de trabalho na Brinquedoteca-Espaço Lúdico do CEAPS-NUPAD-FM-UFMG e "caracterizam-se como atividades grupais de socialização, expressão e inserção social, estratégias facilitadoras de expressão e problematização das questoes.1,6
Foram realizadas, em média, 128 oficinas/ano com participação média de 955 pessoas/ano, das quais quase 75% eram fenilcetonúricos e seus familiares/companhantes.
Houve mais interesse das crianças em conversarem sobre a doença que elas têm, procurando compreendê-la melhor, ao mesmo tempo em que foi possível perceber melhor relação entre os pacientes e entre os familiares, com trocas de ideias e discussões sobre as doenças e o comportamento frente às dificuldades vivenciadas.
CONCLUSÕES
A Brinquedoteca-Espaço Lúdico do CEAPS-NUPAD-FM-UFMG tem propiciado um espaço de atuação interdisciplinar, inserindo-se como estratégia de acolhimento em saúde pública, atuando como espaço complementar ao processo de tratamento dos pacientes do Programa Estadual de Triagem Neonatal de Minas Gerais (PETN-MG), associando o lúdico e a educação como poderosos aliados na promoção da saúde integral do indivíduo.7
A educação para a saúde pode contribuir tanto para a adesão ao tratamento quanto para a divulgação das doenças para a população geral. A família bem orientada, que conheça as doenças em seus aspectos mais importantes, contribuirá para que o paciente tenha mais chances de resposta rápida e adequada ao tratamento instituído.1,8
Em se tratando de crianças, o lúdico configura-se como importante ferramenta, capaz de facilitar a aplicação da integralidade da atenção, o estabelecimento de canais que facilitem a comunicação entre o paciente, o profissional e os familiares, obtendo-se uma ressignificação do processo saúde e doença por parte dos sujeitos envolvidos.9
O lúdico pode, também, ser visto como um recurso terapêutico interdisciplinar, ou seja, como estratégia de intervenção promovida pelas equipes dos serviços de saúde, permitindo mais participação da criança e da família em todo o processo.9-11
A utilização do lúdico pode ser um importante instrumento de intervenção em saúde pública, uma vez que se torna um contraponto às experiências dolorosas, vivenciadas muito comumente por pacientes com doenças crônicas e por suas famílias.1,12 As atividades lúdicas conferem um caráter de "normalidade" à vidas dos pacientes e alívio das tensões e do tédio enquanto esperam as consultas e enquanto estao internados. Intensificam a interação social e possibilitam, a partir das práticas educativas, mais compreensão da doença e das estratégias de autocuidado, proporcionando mais adesão ao tratamento e melhora da qualidade de vida.12
REFERENCIAS
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