ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
A constipação intestinal crônica funcional sob a perspectiva materna: crenças, sentimentos, atitudes e repercussoes sociais
Functional chronic constipation from a maternal perspective: beliefs, feelings, attitudes and social repercussions
Mariza Ferreira Leao1; Maria do Carmo Barros Melo2; Marcia Regina Fantoni Torres2
1. Psicóloga. Professora do Centro Universitário de Patos de Minas. Patos de Minas, MG - Brasil
2. Professora Associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Mareia Regina Fantoni Torres
E-mail: marciaft@medicina.ufmg.br
Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
OBJETIVO: investigar a percepção das maes sobre a constipação intestinal crônica funcional em crianças e adolescentes.
MÉTODOS: foram entrevistadas 14 maes de pacientes com constipação intestinal crônica funcional, sendo as respostas analisadas com base na teoria da análise do discurso e agrupadas nos seguintes núcleos temáticos: "definição, causas e fatores que agravam a constipação", "cognições, sentimento e atitudes diante da criança constipada", "repercussões familiares e sociais", "percepções sobre a cura, o tratamento e o atendimento médico".
RESULTADOS: observou-se que a constipação produz significativo impacto na vida familiar e social do paciente. A mae é quem recebe a maior sobrecarga emocional, o que a torna vulnerável ao descontrole pulsional e, algumas vezes, ao adoecimento. O pai frequentemente está distanciado do problema. Verificou-se que as repercussões negativas são maiores no grupo dos pacientes com escape fecal, cujas maes relataram intensos sentimentos de agressividade e culpa. Neste estudo, o compartilhamento de experiências com outras maes nos grupos focais foi fator decisivo nas mudanças de comportamento das maes. Constatou-se também que a desinformação dos professores sobre a constipação é fator relevante no estabelecimento de padroes evacuatórios inadequados nas crianças.
CONCLUSÕES: para melhorar a eficácia e a resposta ao tratamento das doenças gastrintestinais funcionais, o profissional de saúde deve buscar o entendimento das questoes relativas à subjetividade do paciente, suas relações familiares e sociais. O diálogo entre os pais, escola e crianças ou adolescentes com constipação aumenta a chance de resposta ao tratamento e redução dos impactos biopsicossociais da doença.
Palavras-chave: Constipação Intestinal; Doença Crônica; Relações Familiares; Criança; Adolescente.
INTRODUÇÃO
A constipação intestinal crônica funcional (CICF) é uma entidade clínica frequente na infância. No Brasil, estudos demonstram prevalências que variam de 14,7 a 38,4%,1 representando a queixa principal em 10 e 25% das consultas em gastroenterologia pediátrica.
Segundo o consenso em doenças gastrintestinais funcionais, denominado ROMA III,2 o diagnóstico de CICF em crianças acima de quatro anos é feito na existência de dois ou mais dos seguintes critérios, presentes por dois ou mais meses: a) menos de duas evacuações por semana no vaso sanitário; b) pelo menos um episódio de incontinência fecal semanal; c) história de comportamento retentivo ou excesso de retenção intencional de fezes; d) história de defecações ou movimentos intestinais dolorosos; e) massa fecal no reto; f) histórico de fezes que entopem o vaso sanitário.
Embora seja erroneamente considerada por alguns como uma doença pediátrica benigna, as repercussões da CICF na vida do paciente são graves: comprometimento da qualidade de vida, sentimento de baixa estima, distúrbios comportamentais e retraimento social.2-5
Drossman6 ressalta a importância de se conhecer a perspectiva do paciente sobre seu distúrbio gastrintestinal e torná-la parte integrante do processo de diagnóstico e tratamento. No cenário da CICF infantil investigar a percepção das maes torna-se questao importante na medida em que a mae ocupa papel central no cotidiano do tratamento ao fazer a intermediação da relação do médico com seu paciente.
O presente estudo visa a conhecer a percepção das maes de crianças e adolescentes com CIFC e as repercussões da doença na vida familiar e social dos mesmos.
MATERIAL/MÉTODOS
Trata-se de estudo qualitativo que tem por objetivo investigar as percepções de maes relacionadas à CICF em seus filhos. A escolha do método se justifica pela natureza do fenômeno abordado, no qual a complexidade dos processos intersubjetivos e a subjetividade dos sujeitos são fatores altamente relevantes.
A definição do tamanho da amostra obedeceu aos critérios de não definição prévia do número de sujeitos e flexibilidade da amostragem, com possibilidade de inclusão progressiva, sendo o total estabelecido por meio do critério de saturação.7,8 Foram feitas 14 entrevistas semiestruturadas com maes ou responsável direto, no mesmo dia da consulta médica, que foram gravadas e transcritas na íntegra. As maes entrevistadas foram identificadas por números para preservar a confidencialidade. O estudo foi realizado no Setor de Gastroenterologia Pediátrica do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e foi aprovado pela Comissão de Ética da Universidade. Todos os pais ou responsáveis assinaram o termo de consentimento esclarecido e informado.
A análise do material foi feita com base na teoria da análise do discurso9,10 e seguiu as etapas propostas por Spink11 para estudos de representações sociais que inclui a imersão no conjunto das informações coletadas, procurando deixar aflorar os sentidos, seguindo-se uma etapa de elaboração de categorias de análise. O material foi sucessivamente codificado e as respostas classificadas por categorias. As percepções dos entrevistados foram agrupadas em quatro núcleos temáticos: a) "definição, causas e fatores que agravam a CICF"; b) "cognições, sentimento e atitudes diante da criança constipada"; c) "repercussões familiares e sociais da CICF"; d) "percepções sobre a cura, o tratamento e o atendimento médico". A triangulação com dois outros pesquisadores foi utilizada durante o processo de análise como critério de validade.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise dos dados demonstrou um discurso polifônico no qual o discurso médico, os mitos e crenças familiares e sociais, as vivências de cada um e a história da doença de sua criança definem o entendimento.
As representações das maes são compatíveis com o modelo biopsicossocial para apreensão da patofisiologia das anormalidades anorretais proposto pelas pesquisas na área.12 É difícil para os pais aceitarem ou entenderem que uma doença que dura tanto tempo, com consequências devastadoras no ambiente familiar, raramente tenha uma causa identificável.13
As falas das maes expressam uma visão característica do pensamento médico tradicional: deve existir uma causa orgânica que explique os sintomas. As entrevistadas demonstram estar em processo de entendimento da CICF como uma doença orgânica:
Eu acho que ele devia fazer mais exames para esclarecer, porque ele só fez um... para descobrir qual a causa e o porquê [...]. Eu acho que isso não está bem resolvido. Tem alguma coisa... (nº. 10).
Crenças compartilhadas por leigos e até mesmo por profissionais da saúde contribuem para o adiamento do diagnóstico e tratamento adequados. Uma dessas crenças é uma espécie de nosografia popular que define a "prisão de ventre" como uma doença que as maes e/ou a família têm o direito de tratar, total ou parcialmente sozinhas.14 Outra crença vê a constipação como um distúrbio fisiológico que será "resolvido" com o tempo. No entanto, os estudos na área não sustentam essa visão15. "Eu falava para o pediatra desde que ela era pequenininha: essa menina não evacua, só suja a roupa. Ah! Cada intestino é de um jeito - era a resposta que ele me dava... e foi indo assim. Sem tratamento, sem nada... (nº. 8).
O filósofo grego Epicteto, um dos representantes do estoicismo, já afirmava que os homens são perturbados não pelas coisas, mas pelas opinioes ou ideias que extraem delas.16 Essa indissolúvel relação entre o significado, os sentimentos decorrentes e as atitudes relativas à CICF é expressa com muita clareza na fala das maes:
O que eu sinto agora quanto a isso tá sendo mais tranquilo pra eu encarar, porque a doença dela não é só um "chamativo" [...], é uma doença física, que é preciso tomar medidas reais, práticas, pra se resolver... entao, melhorou bastante os meus sentimentos quanto a isso. Temos nos relacionado melhor depois disso (nº 7).
O comportamento de retenção das fezes é identificado como causa do agravamento da CICF:
Primeiro, ela não quer que as fezes saiam e segura porque ela acha que vai doer. Quando ela começa a sentir dor, ela vai sempre para um canto "ficar espremendo". Todas as vezes que ela queria evacuar ela sentava no vaso, mas o cocô mesmo não saía, mas sangrava muito. Aí parece que prejudicou ela mais ainda, porque ela tem medo de ir ao vaso (nº 1).
Entretanto, observa-se que, no caso das crianças com escape fecal, a interpretação é outra: "Eu acho que ele tem preguiça de ir ao banheiro; acho que o tempo dele é muito curto e ele só quer brincar. A gente tem que levar ele para ir ao banheiro. Não adianta mandar, ele não vai" (nº. 6). Tariq et al.17 demonstram que as crianças que apresentam retenção fecal possuem um grau mais elevado de ansiedade. Outro estudo evidenciou que as crianças com incontinência fecal podem desenvolver o hábito de atender ou não ao estímulo evacuatório fisiológico.17
No presente estudo, observou-se diferença entre o discurso das maes de crianças com constipação crônica retentiva com escape grave (n=9) e o daquelas cujos filhos apresentavam-se sem escape, escape leve ou infrequente ou mesmo aqueles que não tinham mais escape (n=5). Neste último grupo, as falas são mais organizadas, coerentes e otimistas; descrevem um mundo onde as coisas funcionam. O quadro é diferente no caso do primeiro grupo, com um discurso mais prolixo, cheio de contradições e carregado de emoções fortes, desencadeando, muitas vezes, choro durante a fala.
Poucas doenças infantis benignas estao associadas a tanto estresse e ansiedade quanto a CICF. A persistência do sintoma leva à frustração, afetando negativamente a relação da criança com seus familiares:12
Dá vontade de ir embora quando vejo essas coisas que acontecem lá em casa [...]. Temos que insistir para ele trocar de roupa, três a quatro vezes no dia... É difícil demais. Ele vai ao vaso, quando sai de lá, tem que lavar o banheiro de tanta infecção que fica.. .Aquelas fezes... Ele não quer, sabe? E ainda tem muita roupa para lavar!... Eu fico tao depressiva com isso... (nº 13).
Bellman18 constatou que é muito difícil, talvez impossível, ficar indiferente ao escape fecal e a todas as complicações que ele provoca na vida dos membros de uma família. Sentimentos de aversão, nojo, raiva, frustração, mesmo que não nomeados pelas entrevistadas, estao nas entrelinhas de seus discursos, assim como nas expressões faciais e corporais das maes. As doenças crônicas da infância interferem na estrutura familiar, mas as pesquisas revelam que a sobrecarga recai sobre a figura materna.19 Apurou-se desgaste emocional acentuado, levando ao estresse, principalmente nas maes de crianças com escape fecal: "As vezes a gente fica nervosa, a gente agride, às vezes com palavras, xinga... também ando uma pilha de nervos, né? Eu acho que isso mexe muito com o inconsciente da criança" (nº 9).
O sentimento de culpa é pano de fundo no horizonte das relações das maes com seus filhos. Bongers et al.3 afirmam que o ato de desculpabilizar a mae e a criança é um fator importante a ser considerado durante o tratamento. Lazarus & Lazarus20 classificam a culpa como uma emoção existencial, porque ela é construída a partir da experiência de vida e dos valores da cultura na qual a pessoa está inserida. A culpa está relacionada a uma percepção de falha, fracasso em agir de acordo com códigos ou imperativos morais estabelecidos e/ou pela transgressão dos mesmos.21 No caso das entrevistadas, as condutas adequadas frente ao tratamento da criança são constantemente discutidas nas consultas, constituindo-se em padroes ideais de comportamento. Para se referir a sentimentos e atitudes negativas, observou-se que as entrevistadas adotaram alguns recursos, como: usar as expressões "antes" ou "antigamente"; falar da agressividade de forma projetiva, isto é, colocando-a em outra pessoa, ou acrescentar o "não" antes do verbo que expressava a ação ou emoção reprovada (ou reprimida): "As vezes, eu batia nele, mas agora não; eu lavo [...], pois não posso jogar a bermuda dele fora, não é?" (nº 3). "Eu tenho paciência, já as irmas dela não têm" (nº 1).
Freud22 afirma que "o conteúdo de uma imagem ou ideia reprimida pode abrir caminho até a consciência com a condição de que seja negado". Nesses casos, a função intelectual está separada do processo afetivo e o resultado é uma espécie de aceitação intelectual do reprimido.
Falar da própria agressividade foi uma tarefa difícil para as maes: "Eu não brigo mais, porque nas reunioes no hospital, eles ensinaram que devemos conversar" (nº. 8)]. Podemos atribuir essa dificuldade, em parte, a um efeito da interdição do discurso9,10, mas Moliner23 levanta uma questao interessante quando se refere à "ideologia tenaz sobre a meiguice natural das mulheres". Trata-se de um conjunto de condutas que uma mulher assume, com o objetivo de evitar as represálias de que será vítima, caso ela não aja segundo o que a sociedade espera dela. O amor e o dom de si são frequentemente atribuídos à condição feminina. Poucos autores falam a respeito do ódio materno; mais raramente ainda, fazem-no sem julgamento normativo.23 A psicanálise, em geral, oferece recursos para pensar a dinâmica intersubjetiva adulto-criança, mas em muitos aspectos contribui para a eufemização e patogenização do ódio materno.23 Um dos poucos autores que, de forma explícita, situa o ódio dentro da dinâmica normal da relação mae-filho é Winnicott,24 quando afirma que a mae odeia seu bebê desde o nascimento. O trabalho de cuidar de crianças e/ou pessoas vulneráveis ou dependentes não gera somente sentimentos de amor e compaixão, mas também poderosos desejos de destruição e de ódio. De acordo com o autor, esses sentimentos não pertencem ao lado patogênico da psique humana, como se poderia pensar. Embora a ambivalência e a flutuação dos sentimentos contidos no painel de cuidados para com o outro sejam reconhecidos, esses sentimentos, no que se refere às mulheres, tendem a ser apagados, minimizados ou mesmo patologizados, devido à ideologia da meiguice feminina.23
Por meio da análise das falas das maes de crianças com CICF detectou-se que os sentimentos e as reações despertados nas pessoas que integram o contexto social e familiar dessas crianças e adolescentes raramente ou nunca são da ordem da compaixão ou da empatia.
A civilização é construída sobre a renúncia de realização de nossas pulsões mais primitivas. Entre as exigências da civilização, a beleza, a limpeza e a ordem ocupam posição de destaque. O impulso cultural para a limpeza não é inerente à condição humana, mas fruto de uma pressão do processo civilizatório sobre o indivíduo.25
Freud26 comenta que, onde quer que tenham predominado formas arcaicas de pensamento, por exemplo, no folclore, nos sonhos, nas fantasias infantis ou nos contos de fadas, as fezes são carregadas de significados contrastantes, que vao do mais valioso (ouro, dinheiro) ao mais desprezível (sujeira, imundície). Um exemplo interessante, nos dias atuais, é o caganer.27 Trata-se de uma figura do folclore catalao representada por uma pessoa, não importa o sexo, durante o ato evacuatório, que é colocada no presépio ao lado das figuras tradicionais e tem significado positivo: traz sorte e representa fertilidade e prosperidade. De modo semelhante, no pensamento infantil, as fezes são percebidas de modo animista: são objetos corporais valiosos que podem ser utilizados para demonstrar afeição ou hostilidade nas suas relações familiares e sociais.28 O ser humano dificilmente acha repulsivo o odor de suas próprias excreções anais, mas somente o das outras pessoas.25 Algumas maes, entretanto, referem-se, perplexas, ao fato de seus filhos não se incomodarem por ficarem sujos de fezes até que elas ou alguém tomem a iniciativa de mandá-los tomar banho ou trocar de roupa: "As vezes, ele está com mau cheiro, mas fala que não percebe. Quem está em volta é que fala com ele, mas ele fala que não percebe em momento algum" (nº 4). A internalização dos ideais culturais de limpeza tem como consequência o fato de que a pessoa não asseada está ofendendo as outras pessoas e/ou não demonstra consideração por elas. Isso explica o opróbrio que atinge o individuo sujo e a rejeição total a ele:29
Lá na escola, uns tempos atrás, ele começou a sujar a roupa; eles jogavam ele para o lado de fora da escola e ficava sentado na porta até o final das aulas. Ele ficava ali... igual ao "negócio de discriminação". Entao, eu falei para a diretoria que se isto acontecesse de novo, eu iria ao Conselho Tutelar da Criança para reclamar, porque ele também tem direitos... Eles me falaram que meu filho tem de ir para uma escola especializada. Respondi que ele não é aleijado e que sujar a roupa é o único problema que ele tem. Disse também que eu não posso comprar fralda descartável todo dia para ele ir para escola (nº 3).
O cotidiano das maes e das crianças com escape fecal é repleto de situações constrangedoras, nos vários ambientes sociais em que circulam:
Eu gostaria que as pessoas entendessem isso, mas tem gente que não entende. As vezes, eu chego a algum lugar e, se ele já está sujo, as pessoas falam que, tem alguma coisa podre. Eu fico até sem jeito de responder que é ele, né? Entao, eu não saio para passear mais com ele, para a casa dos outros (nº. 3).
Na família, as humilhações e agressões físicas à criança são frequentes. Muitas vezes, ela é identificada como a causa de desentendimentos entre os pais, como no seguinte depoimento:
A gente, eu e o pai dele, ficou separado por mais de um ano e meio, pois não estava dando certo. Tanto ele comigo, quanto ele com ela, porque ele está sempre implicando com ela, o tempo todo. Ela que faz errado, ela. tudo de errado era ela. Uma vez, ele botou fogo no colchão e no sofá. Disse que é porque estavam "fedendo". Ele pegou o sofá, botou lá no lote vago da rua e tacou fogo... Chegou a bater nela de correia, de ficar desenhado a correia nela assim. Entao, assim, nós dois entramos muito em atrito com relação a isso. Ajudar mesmo, ele ajudou muito pouco (nº. 7).
O tratamento da CICF inclui o uso diário de um ou mais medicamentos, dieta e, em alguns casos, lavagens intestinais,21 sendo as últimas, geralmente, realizadas pelas maes. Lebovici29 chama a atenção para o fato de que práticas repetidas que envolvem manipulação anal, tais como o uso de supositórios e a lavagem intestinal, reforçam o laço erótico que une a criança à mae e as angústias vinculadas ao sentimento de onipotência materna: "De repente, eu até cheguei a pensar na hipótese dele ter medo de parar de fazer esta lavagem. Pensar que ele até não se esforçar para evacuar, para continuar fazer a lavagem e assim não perder a minha atenção naquele momento, pelo fato de eu trabalhar fora né?" (nº 4).
A psicanálise, desde Freud, reconhece na mae o papel de sedutora primordial, pois é ela quem, por meio de carícias, banhos, aplicação de óleo, entre outras ações, acaba por despertar a sexualidade infantil.30 Para a mae, a criança com escape fecal grave e de longa duração acaba por se constituir em uma ferida narcísica: "Qualquer pessoa ficaria sentida, principalmente eu, como mae, que queria ter um filho com o intestino normal, e não tenho" (nº. 9).
Em relação às crianças com CICF sem escape fecal, as repercussões geralmente ficam restritas ao círculo familiar. A mae sente dó e sofre por ver a dificuldade da criança para evacuar.
Para a maioria das maes, a criança estará curada quando o intestino estiver funcionando normalmente, sem medicação. Para outras, o conceito de cura agrega a concepção do cuidado e as mudanças de hábito: "[...] tem sim [cura]. Tem sim. A gente tem que seguir tudo corretamente. Se você seguir, tem sim. A médica já falou que ele vai ter que usar determinadas coisas para poder viver, para a constipação não voltar. Mas eu acho que tem cura sim" (nº. 9). Estudos recentes mostram que é importante integrar, no âmbito do atendimento, a visão que o paciente tem da sua doença.6 Na presente pesquisa, percebeu-se que, quando isso não aconteceu, não houve adesão ao tratamento: "Olha, eu não sei o que os médicos pensam, mas eu penso que se ele operasse para ver se melhora o intestino dele, e para ele não crescer um rapaz deste jeito, né? [...] Poderia ter cura se operassem ele. Fazer uma cirurgia, eu acho que resolveria o caso dele" (nº. 3). A afirmação dessa mae exemplifica uma das consequências da não integração da visão do paciente no diagnóstico e tratamento. Por outro lado, Caprara & Rodrigues31 demonstraram que 39,1% dos médicos não explicam de forma clara e compreensiva o problema do paciente, não verificam o grau de entendimento do paciente sobre o diagnóstico dado em 59% das consultas e não exploram os aspectos psicossociais como medos e ansiedades em 91,4% dos atendimentos.31
O impacto das dificuldades socioeconômicas da família no tratamento da CICF não pode ser subestimado, pois interfere na adesão ao tratamento, tanto na instituição da dieta prescrita, quanto na possibilidade de aquisição dos remédios, e esses geralmente não estao disponíveis nas unidades básicas de saúde, no nosso meio:
Não tem uma fruta que a gente poderia dar, que poderia ajudar ou uma verdura? Nem os medicamentos, eu não tenho conseguido ultimamente. E ele [pai] não está me ajudando em nada. Porque é um direito dela os remédios, né. [...] Já tem três meses que o médico me deu os papéis, falando que era um direito dela, que senão iria tomar outras providências (nº 1).
Pereira32 refere que um denominador comum à população periférica é a "falta"; não a falta presente na vida de todo ser humano, mas a falta de condições básicas de sobrevivência, que, quando presentes, auxiliam no enfrentamento dos embates da vida. O cenário, muitas vezes, é o de uma vida de muita privação, sofrida frequentemente no isolamento e num processo de desenraizamento".32
O universo do sujeito "criança" é origem de muitos impedimentos à realização do tratamento, dificultando a separação entre fatores de ordem psicológica e outros determinantes da doença, como, por exemplo, as dificuldades para se estabelecer hábitos evacuatórios regulares devido, entre outros fatores, ao medo de evacuar e à recusa em tomar a medicação: "A medicação, eu não consigo dar, não consigo. Porque ela tem que tomar o leite de magnésia e eu tentei dar, mas ela está fazendo vômito" (nº 8). Comportamentos típicos de "segurar as fezes" e evitação do uso do vaso sanitário fora de casa são frequentemente citados pelos pacientes: "E eu limpei, porque eu ando sempre com um vidrinho de álcool, né? Para, justamente, usar nessas horas. Não sei por que ele faz assim... Perguntei, não tive explicação" (nº. 14).
Os aspectos psicológicos são percebidos por algumas entrevistadas como fatores de alta relevância na melhora ou piora dos sintomas:
Olha, eu estava levando ele na psicóloga. Como ele ficou na escola, em turno diferente, entao eu parei de levar. Quando eu estava levando, ele estava legal. Por isso que eu te falo que eu acho que é um pouco psicológico, né? Porque quando eu estava levando ele na psicóloga, ele melhorou sim. Em dois meses estava ok (nº. 9).
Entre os fatores psicológicos, é importante considerar questoes do imaginário da criança ligadas às fantasias em relação ao material fecal e ao autoerotismo anal. As fezes têm significado importante para a criança pequena, que as percebe como parte do seu corpo e como instrumento que possibilita troca na relação com os pais. Retê-las ou expulsá-las pode ser uma expressão de sua discordância ou concordância com o ambiente que a cerca.29 Durante o período de treinamento do esfíncter anal, a criança terá de renunciar ao prazer autoerótico, submetendo as funções excretórias às normas sociais. Nos casos em que o processo evolui bem, o investimento autoerótico será gradualmente substituído pela satisfação de ser amado, elogiado e aprovado. Esse processo é descrito na literatura como um dos momentos críticos para o desencadeamento de uma constipação.12
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A constipação e o escape fecal funcional são frequentemente subestimados pelos cuidadores, por considerarem o quadro como o de uma doença infantil benigna.
No entanto, é importante distinguir entre constipação com ou sem incontinência fecal e incontinência fecal funcional não retentiva (IFFNR).33 Esses autores sugerem que diferentes mecanismos fisiopatológicos estejam envolvidos e em ambos os casos podem resultar em incontinência fecal, mas em crianças com IFFNR não há sinais de constipação. Em muitos estudos, crianças constipadas com incontinência fecal e crianças com IFFNR são agrupados em uma amostra, porque compartilham a queixa de incontinência fecal. De qualquer forma, sabe-se que os efeitos adversos da incontinência na vida desses pacientes são graves, o tratamento é prolongado e requer muito empenho do médico e colaboração da família.
Sabe-se que é a mae quem recebe a maior sobrecarga: assume o tratamento, identifica-se com os sentimentos e com o sofrimento físico e psíquico do(a) filho(a), além de ser a porta-voz dos sintomas para o médico. Essa posição a torna vulnerável ao descontrole pulsional e, em algumas situações, até mesmo ao adoecimento.
Quanto ao atendimento médico, as consultas são, normalmente, prescritivas, normativas e centradas na criança. Os autores do presente estudo acreditam que a inclusão, na rotina dos atendimentos, de um espaço direcionado à escuta das maes possibilitaria que elas elaborassem os sentimentos desencadeados na relação com a criança e a doença. Além disto, a troca de informações com outras maes favoreceria a descoberta de novas formas de lidar com esses problemas.
A quase total exclusão da figura do pai ou até a sua interferência nociva, descrita pela maioria das entrevistadas, é outro aspecto que merece atenção. Assim, sugere-se que os profissionais de saúde busquem estratégias que favoreçam a experiência de alteridade das figuras materna e paterna no processo de tratamento.
A escola tem potencial impacto no estabelecimento de padroes evacuatórios inadequados nas crianças. Pesquisa feita na pré-escola americana34 demonstrou que somente 18% dos professores tinham informação sobre os transtornos evacuatórios e percentual ainda mais baixo (8%) sabia que existem especialistas para tratar do assunto. Aspectos disciplinares que impedem a criança de ir ao banheiro quando ela necessita, banheiros em condições precárias de limpeza e conservação foram alguns dos aspectos verificados no estudo. No nosso meio, a realidade das escolas não é muito diferente. Atualmente, as crianças vao para a escola mais precocemente e, desta forma, o treinamento dos esfíncteres ocorre, em parte, com a intervenção de cuidadores e/ou professores. Uma política de educação para a saúde envolvendo os profissionais dessa área parece uma iniciativa premente.
Os novos modelos conceituais propostos para as doenças gastrintestinais funcionais da infância são bastante amplos, apagando os limites definidos entre o físico e o psíquico. Nessa perspectiva, percebe-se que o corpo não é somente um organismo biológico, mas é atravessado pela ordem do sexual e do pulsional, sendo, em seu processo de desenvolvimento, permeado inteiramente pela alteridade.35 O modelo biopsicossocial estabelecido pelo Roma III2 para as doenças gastrintestinais funcionais tem como prerrogativa que os profissionais da área da saúde devem levar em conta as questoes relativas à subjetividade do paciente, suas relações familiares e sociais, como estratégia para melhorar a eficácia e a resposta ao tratamento.
É de fundamental importância, em pesquisas futuras envolvendo doenças consideradas funcionais, considerar a criança como sujeito em todo o processo, investigando a sua indiferença ou até mesmo apatia frente ao tratamento, suas fantasias e o papel do erotismo anal, especialmente nos casos de retenção fecal funcional.
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