ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Associação entre trauma infantil, transtornos psiquiátricos e suicídio
Association between childhood trauma, psychiatric disorders and suicide
Dante Galileu Guedes Duarte1; Tatiana Tscherbakowski2; Humberto Correa3
1. Médico-residente em Psiquiatria. Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Professora adjunta do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte - MG, Brasil
3. Professor titular do Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Dante Galileu Guedes Duarte
E-mail: dantegalileu@yahoo.com.br
Instituição: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
Algumas evidências da literatura sugerem associação entre traumas infantis e comportamento suicida. Motivados pela questao, "os pacientes psiquiátricos população com transtornos psiquiátricos que sofreram traumas na infância suicidam mais?" O objetivo foi realizar revisão sistemática sobre o impacto de traumas infantis nos pacientes com transtornos psiquiátricos e sua correspondência com ideação e tentativas de suicídio. A pesquisa foi realizada por uma busca on-line no Medline, com tempo delimitado em cinco anos até a presente data, com artigos publicados em língua inglesa. Os termos de busca foram: "Child Abuse" [Mesh] AND "Mental Disorders" [Mesh]) AND "Suicide"[Mesh]. A pesquisa considerou os traumas como variável independente, transtornos psiquiátricos como variável dependente e independente e o suicídio (ideação, plano e tentativa) como variável dependente do trauma sobre o transtorno psiquiátrico. Todos os estudos descritos nesta revisão defendem significativa associação entre trauma na infância, transtorno psiquiátrico e suicídio. A intensidade dessa associação, bem como o número de eventos e o grau de interferência, varia entre os artigos.
Palavras-chave: Criança; Maus-Tratos Infantis; Ferimentos e Lesões/psicologia; Transtornos Mentais; Transtorno Depressivo; Transtornos de Estresse Traumático; Suicídio.
INTRODUÇÃO
Recentemente, muitos pesquisadores têm mostrado que sofrer abuso sexual ou físico ou psicológico na infância pode deixar repercussões duradouras no indivíduo, incluindo predisposição a ter mais frequência de comportamento suicida na idade adulta1 Ganha ainda mais importância esse fato em função de o comportamento suicida ter um conhecido determinante genético2 e de que estudos recentes terem mostrado que ter sofrido abuso na infância pode levar a alterações epigenéticas, alterando a expressão de alguns genes, incluindo genes candidatos a estarem associados ao comportamento suicida.1
Esta revisão bibliográfica tem por objetivo a associação entre trauma infantil, transtornos psiquiátricos e suicídio. Qual a associação e impacto de traumas infantis nos pacientes com transtornos psiquiátricos e sua correspondência com ideação e tentativas de suicídio? Dessa forma, o problema que norteou o trabalho de investigação foi: qual a parte da população com transtornos psiquiátricos que sofreu traumas na infância suicida mais?
Justifica-se a escolha do tema e problema pela relevância da matéria envolvendo a etiologia e a complexidade do trauma no desenvolvimento mental, podendo levá-lo, em última instância, ao autoextermínio. Conhecer o fenômeno é uma forma de trabalhar no sentido preventivo e de colaborar com outros estudos acadêmicos que tenham o mesmo objetivo.
METODOLOGIA
A pesquisa foi realizada por uma busca on-line no Medline. O tempo foi delimitado para o período de cinco anos até a presente data. Foram selecionados artigos do tipo Clinical Trial, Meta-Analysis, Randomized Controlled Trial, Clinical Trial, Phase I, Clinical Trial, Phase II, Clinical Trial, Phase III, Clinical Trial, Phase IV, Comparative Study, Consensus Development Conference, Consensus Development Conference, NIH, Controlled Clinical Trial, Evaluation Studies, Journal Article, Multicenter Study, Twin Study, Validation Studies.
Os termos de busca foram adequados e configurados no Mesh, pois tal instrumento favorece mais abrangência do conteúdo solicitado na literatura vigente. A utilização da palavra "e" (and) agrupa os termos e busca artigos que relacionam seus conteúdos. Seguem os termos pesquisados: "Child Abuse" [Mesh] AND "Mental Disorders"[Mesh]) AND "Suicide"[Mesh]. Foram identificados nessa pesquisa 86 artigos.
A pesquisa considerou os traumas como variável independente, os transtornos psiquiátricos como variável dependente e independente e o suicídio (ideação, plano e tentativa) como variável dependente do trauma sobre o transtorno psiquiátrico. Nesse sentido, foi possível selecionar 20 artigos aos quais acrescentamos três que, embora não atendessem ao rigor da seleção, indicam caminhos e críticas relevantes para o presente trabalho.
Entre os 23 artigos, 11 contêm pesquisas realizadas diretamente com pacientes, quatro foram feitas com dados de serviços de psiquiatria, também feitos diretamente com pacientes, cinco podem ser classificadas como explanações livres e duas são revisões bibliográficas.
RESULTADOS
Vários estudos demonstraram associação entre trauma na infância, transtornos mentais e suicídio. Os artigos, de acordo com a proposta estabelecida, a metodologia escolhida e a amostragem fixada, podem chegar a resultados diversos ou confluentes. A Tabela 1 evidencia os resultados encontrados nos estudos realizados diretamente com pacientes ou em dados de serviços de psiquiatria. O tipo de estudo informado é o que consta dos artigos pesquisados.
Pompili et al.3, em estudo transversal de caráter retrospectivo, em 2009, acompanharam 62 pacientes (sendo 14 homens e 48 mulheres) admitidos no Saint'Andrea Hospital de Roma, com quadro psiquiátrico agudo. Por meio de questionário avaliaram traços de temperamento e personalidade, níveis de desesperança, traumas infantis e risco de suicídio. Com o estudo, encontraram, entre os abusados fisicamente por membros familiares: aqueles que tiveram marcas de machucado apresentaram nove vezes mais risco de suicídio; os punidos com cinto ou outros objetos duros tiveram o risco de suicídio aumentado em 20 vezes; por outro lado, os que sofreram apenas insultos tiveram aumentado em seis vezes o referido risco. Os autores sugerem que os psiquiatras avaliem rotineiramente abusos sexuais e físicos em pacientes que tenham tentativa ou tendência suicida.
Já os pesquisadores Horesh et al.4 avaliaram a correlação entre vários tipos de eventos estressores ao longo da vida (EEV) entre adolescentes e adultos jovens suicidas com transtorno depressivo maior ou transtorno de personalidade borderline por um lado e não suicidas por outro, mas com os mesmos transtornos. Associaram a essa amostra outros 40 participantes, formando um grupo-controle. Os participantes suicidas tiveram mais eventos negativos durante a vida que os outros participantes. Participantes com transtorno depressivo maior tiveram mais EEV do que os borderlines. Os suicidas com transtorno depressivo maior apresentaram EEVs mais relacionados à morte e os com transtorno borderline manifestaram EEVs mais relacionados a abuso sexual. Concluíram, entao, que a complexidade da relação entre os eventos negativos referidos e a interação na tendência ao suicídio e na psicopatologia de base ainda necessita de muita discussão.
Bebbington et al.5 fizeram uma investigação randomizada com corte transversal, usando os arquivos da pesquisa nacional britânica de comorbidade psiquiátrica do ano de 2000, testando a hipótese de que as tentativas de suicídio em mulher são significantemente associadas à história de abuso sexual. Os participantes foram voluntários masculinos e femininos, de 16 a 74 anos (n=8.580). Tentativa e ideação suicida foram 28% em mulheres e 7% em homens, sendo que o abuso sexual apresentou-se como antecedente significativo, particularmente em mulheres. Os autores sugerem que, quando for identificado comportamento suicida, é importante considerar abuso sexual como foco de tratamento.
Em uma coorte retrospectiva, o grupo de estudiosos franceses liderados por Roustit et al.6 entrevistou 3.023 adultos da população da regiao metropolitana de Paris, em 2005, a fim de investigar a associação entre a exposição à violência sofrida dos pais na infância e a saúde mental na fase adulta. Após realizar ajuste estatístico por categoria familiar e nível social, perceberam que os adultos expostos à violência entre os pais na infância tiveram 1,44 vez mais depressão, 3,17 vezes mais violência conjugal, 4,75 vezes mais maus-tratos em crianças e 1,75 vez mais dependência de álcool.
Dois grupos de estudiosos canadenses da Universidade de Manitoba trouxeram importante contribuição à pesquisa envolvendo o tema, com a inserção das variáveis impactantes divórcio dos pais e tipos e repetição de traumas.
No primeiro estudo7, os autores almejaram determinar como as experiências de abuso na infância e divórcio dos pais são relacionadas à saúde mental de pessoas de uma população nacionalmente representativa, depois de serem ajustadas por variáveis sociodemográficas, fazendo uso da pesquisa nacional de comorbidades (n=5.877, idade=15-54 anos e taxa de resposta=82,4%). Modelos de regressão logística foram usados para determinar a OR (odds ratio) dos transtornos psiquiátricos ao longo da vida dos pesquisados, bem como das tentativas e das ideações suicidas. Entre outros achados, descobriram que, tanto divórcios quanto abuso sexual, separadamente, foram associados à ideação e tentativa de autoextermínio. Contudo, ocorrendo essas experiências juntas, houve significativo aumento de transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de conduta e tentativa de suicídio.
Num segundo estudo8 nessa mesma instituição, pesquisadores tentaram determinar se a exposição a tipos específicos de traumas é associada a tentativas de suicídio numa amostra representativa dos militares da ativa no Canadá. Coletaram dados do serviço de saúde e do bem-estar das Forças Armadas Canadenses, em pesquisa transversal (n=8.441; idade=16-54 anos; taxa de respostas=81,1%). Foram pesquisados 28 tipos de eventos traumáticos ao longo da vida e também tentativas de suicídio, com a simples pergunta: "você já tentou tirar sua vida?". A conclusão foi de relação positiva entre trauma sexual e traumas interpessoais (assalto, estupro, sequestro, abuso de cônjuge, abuso infantil) e tentativa de suicídio em ambos os sexos. O número de eventos traumáticos foi positivamente associado ao número de tentativas de autoextermínio, indicando efeito dose-resposta de exposição ao trauma, isto é, quanto mais eventos, mais alto o risco.
A relação entre abuso físico e sexual na infância e seu impacto no risco de suicídio também foi estudada em amostra de pacientes bipolares. Foi conduzido estudo retrospectivo (n=381) com pacientes bipolares diagnosticados pelo DSM-IV-TR que procuraram avaliação e tratamento na unidade de transtornos de humor da Universidade de Toronto, entre outubro de 2002 e novembro de 2005. Tiveram história de abuso na infância 18% dos pesquisados, sendo que, desses, 63% relataram episódios de tentativa de suicídio ao longo da vida. Pelo fato de abuso na infância estar associado à ideação e tentativa de suicídio, os autores9 aconselham realizar anamnese pormenorizada, levando em conta maus-tratamentos na infância e a elaboração de estratégias preventivas e de tratamento intervencionista nesses pacientes bipolares.
Brodsky et al.10 afirmam haver associação entre o abuso sexual autorrelatado, depressão maior e comportamento suicida. Tal estudo investiga a relação entre o abuso infantil descrito e a transmissão familiar de comportamento suicida e outros fatores relacionados. O estudo foi conduzido de maio de 1997 a fevereiro de 2004, avaliando 507 filhos pertencentes à prole de 271 pais com diagnóstico de transtorno depressivo maior, pelo DSM-IV. O abuso sexual, e não o físico, na infância dos probandos está correlacionado à tentativa de suicídio, transtorno de estresse pós-traumático, aparecimento precoce de depressão, altos níveis de impulsividade e mais probabilidade de abuso sexual na infância da prole, porém raramente perpetrado pelo pai afetado. Os que relataram história de abuso físico protagonizaram mais agressão na prole. Diante dos dados levantados, os autores concluem que a transmissão do risco de suicídio ao longo das gerações é relacionada à transmissão familiar de abuso sexual e impulsividade. Esse abuso não é diretamente transmitido pela vítima às próximas gerações; ele deve estar relacionado à dinâmica familiar envolvendo o abuso sexual.
Da mesma instituição, Carballo et al.10 verificaram que o transtorno bipolar está associado à alta prevalência de tentativa e conclusão de suicídio. História familiar de comportamento suicida e história pessoal de abuso na infância são citadas como fatores de risco entre os pacientes bipolares. O grupo pesquisou populações de pacientes bipolares com ambos os eventos (TAB-Ambos), com um dos eventos (TAB-Um) separadamente e sem algum deles (TAB-Nenhum). Quase 70% da amostra desses bipolares tiveram história de tentativa de suicídio. Nos grupos TAB-Ambos e TAB-Um houve alta taxa de tentativa prévia de suicídio que o grupo TAB-Nenhum, sendo que o grupo TAB-Ambos teve também episódios de transtorno de humor e a sua primeira hospitalização em idade mais jovem, assim como teve mais abuso de substância e alta taxa de transtorno de personalidade borderline. Os autores indicam a necessidade de estudos prospectivos para a confirmação de seus achados.
Gibb et al.11 evidenciaram que o polimorfismo funcional do gene transportador de serotonina (5-HTTLPR) modera o impacto dos eventos negativos na vida (por exemplo, abuso na infância) no desenvolvimento de depressão. Contudo, para eles não está claro se a interação do gene com o ambiente prediz a tentativa de suicídio, especialmente. Além disso, comentam que estudos anteriores não examinaram as diferentes formas de abuso infantil separadamente. Enfatizaram que o 5-HTTLPR genótipo modera a ligação entre abuso físico e sexual nos pacientes psiquiátricos com história de tentativa de suicídio pregressa. Mas não encontraram tal correlação em se tratando de abuso emocional.
A atenção de Dervic et al.12 focou-se na pesquisa de suicidas e não suicidas entre pacientes que declararam ter sofrido abuso infantil, comparando-os entre si, numa amostra de 119 pacientes com diagnóstico de depressão, para identificar fatores de risco ou de proteção contra comportamento suicida. O grupo com histórico de tentativa de autoextermínio é formado por pessoas jovens, com elevadas taxas de depressão grave e de ideação suicida, maiores traços de agressão e mais transtornos de personalidade do cluster B. Têm, como característica, menos objeções morais ao suicídio/crenças religiosas. Esse estudo concluiu que a crença religiosa espiritual pode servir como recurso adicional para a prevenção de suicídio em pacientes com história de abuso infantil.
Em amostra de 108 pacientes com depressão, Sarchiapone et al.13 avaliaram história de tentativa de suicídio. Foram aplicados questionário de trauma na infância Childhood Trauma Questionnairee (CTQ) escala de agressão Brown-Goodwin Lifetime History of Aggression (BGLHA). Da amostra, 47 tentaram suicídio e apresentaram altos escores no CTQ e no BGLHA. Por meio de regressão logística, foi identificado que ser mulher, desempregada, tendo sofrido negligência emocional e apresentado altos escores no BGLHA tiveram possibilidade bastante significativa de apresentar tentativa de suicídio.
Faltam estudos prospectivos, segundo Enns14, a respeito da área em questao. Seu artigo examina a associação entre adversidades na infância e o novo aparecimento de ideação e tentativa suicida em uma amostra populacional. O estudo usou dados da Pesquisa Nacional Holandesa, com n=7.076, e idade entre 18 e 64 anos, acompanhando, de forma longitudinal, durante três anos. Ao longo do estudo, houve 85 novos casos de ideação suicida e 39 novos casos de tentativa de suicídio. Negligência na infância, abuso psicológico e físico foram fortemente associados ao aparecimento dos eventos. A OR foi de 2,8 a 4,66 para novas ideações suicidas e de 3,6 a 5,43 para novas tentativas de suicídio. O autor concluiu que o abuso na infância e as múltiplas adversidades são fortemente associados ao comportamento suicida futuro e ao transtorno mental e acredita que, para entendimento mais pormenorizado do comportamento suicida, devem ser levadas em conta as adversidades na infância.
A pesquisa de Roy e Janal15 sobre questionamento a respeito da interação de história familiar para suicídio, sexo feminino e trauma infantil (Childhood Trauma Questionnaire - CTQ) entrevistou 1.889 pacientes dependentes, mas em abstinência, abordando os eventos citados. Cada um dos eventos no mínimo duplicou a chance de tentativa de suicídio. Os autores não acharam interações significantes entre os fatores citados e tentativa de suicídio, apenas sexo feminino e altos níveis de trauma infantil tiveram associação com primeira tentativa de suicídio em idade mais jovem e tendência a várias tentativas. Concluíram, entao, que sexo feminino, trauma infantil e história familiar de comportamento suicida não têm interação entre si como fatores de risco para autoextermínio.
Em novo artigo, no ano seguinte, mas usando os escores da mesma pesquisa, os autores16 tentaram explicar duas teorias diferentes sobre as altas taxas de suicídio em mulher. Uma dessas teorias atribui a taxa ao fato de as mulheres serem mais abusadas sexualmente que os homens. A outra teoria defende diferenças entre os gêneros e sua resiliência aos impactos do abuso sexual na infância. Os resultados mostraram que as mulheres e os suicidas tiveram escores mais altos no questionário CTQ que os homens e os não suicidas, respectivamente. Mostraram, também, à semelhança do artigo anterior, que o gênero e o abuso não interagem para determinar as tentativas de autoextermínio. Sendo assim, esses dados reforçam a primeira hipótese: aumento da frequência de tentativas em mulheres deve parcialmente ser atribuído à alta prevalência de abuso sexual nas meninas. Admitem, todavia, que tal generalização requer novos estudos.
Em estudo retrospectivo chinês, Chen et al.17 avaliaram 351 mulheres estudantes de uma escola médica secundária, na província central da China, aplicando um questionário não identificador, autoadministrável, incluindo itens como experiência sexual não consentida antes dos 16 anos, depressão, tendência suicida e comportamentos nocivos à saúde. Procuravam levantar a prevalência de abuso sexual na infância (ASI) e os possíveis efeitos na saúde mental e no comportamento das adolescentes. Mais de uma em cinco jovens mulheres informaram pelo menos um tipo de ASI antes dos 16 anos. E uma em sete teve contato físico. Os riscos para ASI não foram associados a nível educacional dos pais, existência de irmãos ou residência em área urbana ou rural. O mais significativo das vítimas com contato de ASI inclui altas taxas de depressão, tristeza, pensamento e planejamento suicida, uso de álcool, tabaco, envolvimento em brigas e intercurso sexual. Concluíram que os padroes de saúde mental e problemas de comportamento nessa amostra é inteiramente consistente com as pesquisas internacionais.
Na Tabela 2 estao os achados dos artigos classificados como explanação livre e revisão bibliográfica.
A complexidade dos diagnósticos nos pacientes com eventos traumáticos na infância é tao intensa que inspirou a seguinte observação de Jonsson18:
Para nós começarmos a entender o efeito das experiências abusivas na infância sobre o desenvolvimento da personalidade e os sintomas das doenças, nós temos que nos mergulhar em várias teorias. As mais importantes são relacionadas à fixação/ligação/conexão, mentalização, dissociação, trauma e repercussão no desenvolvimento cerebral.
Nessa linha de raciocínio, Ganz e Scher19 falam de uma relação reforçadora entre depressão, abuso de álcool e risco de suicídio. Veem clara relação com abuso na infância, pressão social, baixa autoestima e delinquência em adolescentes. Acham, inclusive, que tais associações de comorbidades têm correlatos bioquímicos e genéticos.
Criticando o fato de a maioria dos estudos de associação entre adversidade na infância e doença mental em adultos serem retrospectivos, Weich et al. avaliaram a evidência científica a partir de estudos prospectivos publicados entre 1970 e 2008. Foram identificados 23 papers sobre dados de 16 coortes que associaram relações abusivas na infância, podendo levar a depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático. Outro achado diz respeito à negligência materna no início da vida como variável impactante na tentativa de suicídio na adolescência. Esses estudos não chegaram à conclusão de associação causal em problemas menos graves, causando danos no desenvolvimento humano, segundo o próprio autor, devido à heterogeneidade da metodologia empregada. Mas evidenciam a necessidade de minimizar os prejuízos causados por relações disfuncionais entre pais e filhos.
Sher20 sugere a criação de uma nova nomenclatura, "transtorno do humor pós-traumático", para indicar a coocorrência de duas doenças: transtorno do estresse pós-traumático e transtorno depressivo maior. Sua ideia é baseada no fato de que significativo número de estudos propoe que pacientes que sofrem da comorbidade do TEPT com TDM são clínica e biologicamente diferentes dos indivíduos que os têm em separado. Aqueles, segundo o autor, são caracterizados por sintomas mais graves e alto nível de deterioração social e funcional. Evidências neurobiológicas realçam tal conceito, incluindo achados neuroendócrinos, fluidos cérebro-espinhais, sono e outros estudos. A nova proposta diagnóstica estaria intimamente relacionada a abuso na infância e a comportamento suicida na adolescência.
Em discurso crítico, Andover et al.21 afirmam que, apesar de muito difundidos, alguns estudos não apresentam aporte teórico suficiente para respaldar a associação entre abuso físico e sexual na infância e suicídio. Contudo, segundo os autores, poucas pesquisas investigaram a diferença de história de abuso físico e sexual entre os pacientes com comportamentos suicidas que tentaram autoextermínio uma ou várias vezes. Além de objetivar os achados prévios de associação entre abuso físico e sexual e tentativa de suicídio, objetiva também explorar a diferença desses eventos traumáticos nos comportamentos suicidas de uma ou mais tentativas: "nós não achamos diferença entre relatos de abuso (físico ou sexual) e os que tentaram o autoextermínio uma ou mais vezes. As implicações desses achados precisam ser corroboradas com mais pesquisas e discussões futuras".
No artigo a respeito das ligações entre abuso na infância e tendência suicida na adolescência, Makhija22 observa que as mais importantes consequências do abuso infantil são a tendência suicida e o abuso de álcool e outras substâncias. Afirma também que há relação direta e indireta entre esses eventos. Os pacientes que tiveram trauma na infância têm muito mais prevalência de tentativa de suicídio e o referido abuso, mostrando o trauma como fator de risco. O autor orienta os profissionais que trabalham com crianças e adolescentes vítimas de tais eventos a abordarem uma prevenção secundária, identificando, predizendo e tratando os riscos para abuso de substâncias e suicídio. Alerta, ainda, para que os profissionais examinem e identifiquem em que ponto houve o gatilho para essa corrente em direção ao uso e à ideação. Em trabalho posterior, mas do mesmo ano, o autor se associa a Sher23 e estende tais considerações à fase adulta, explorando os caminhos do abuso infantil ao comportamento suicida, passando pelo desenvolvimento de transtornos de dependência de álcool. E examina a significância da história familiar de abuso de álcool exacerbando o comportamento suicida desses adultos que foram abusados quando crianças. Orienta novamente os profissionais de saúde a identificarem esses caminhos e descreverem áreas como foco de tratamento para esses pacientes.
DISCUSSÃO
Todos os estudos descritos nesta revisão defendem significativa associação entre trauma na infância, transtorno psiquiátrico e suicídio. A intensidade dessa associação, bem como o número de eventos e o grau de interferência, varia entre os artigos. Alguns deles, Ganz e Scher21 e Gibb et al.13, encontraram evidências neurobiológicas que ligam os traumas na infância a transtornos psiquiátricos e ao suicídio. Mcintyre et al.9 e Carballo et al.11 estudaram o transtorno bipolar vendo nele a associação com a alta prevalência de tentativa e conclusão de suicídio. Aconselha a realizar pormenorizada anamnese, levando em conta maus-tratamentos na infância e a elaboração de estratégias preventivas e de tratamento intervencionista nesses pacientes bipolares.
A relação familiar é analisada por vários grupos. Roustit et al.13 entendem que a exposição à violência sofrida dos pais na infância influi na saúde mental na fase adulta. Weich et al. observaram que negligência materna no início da vida torna-se variável impactante na tentativa de suicídio. Afifi et al.7 identificaram a interação entre abuso na infância e divórcio dos pais como reforçadores no aumento significativo de transtorno de estresse pós-traumático, transtorno de conduta e tentativa de suicídio. Brodsky et al.10 trazem uma conclusão nova, de que o abuso não é diretamente transmitido pela vítima às próximas gerações; mas que deve estar relacionado à dinâmica familiar dele resultante.
O único estudo longitudinal de uma coorte prospectiva foi o de Enns15, que acompanhou os pacientes durante três anos e cuja conclusão é que abuso na infância e múltiplas adversidades são fortemente associados ao comportamento suicida futuro e ao transtorno mental. Acreditam que, para entendimento mais pormenorizado do comportamento suicida, devem ser levadas em conta as adversidades na infância.
Em editorial, Corrêa e Rocha1 reafirmam a importância da epigenética para integrar determinantes ambientais, psicológicos e biológicos. Contudo, o autor mostrou evidências contundentes de conexoes entre abuso e negligência na infância e comportamento suicida. Tais interligações devem ser mais pesquisadas e pormenorizadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alguns autores reconhecem a limitação de seus estudos devido a vieses de memória e de seleção dos pesquisados, assim como limitações metodológicas (entre outras, estatísticas e de amostragem).
Por outro lado, dada a importância do tema para a saúde não só mental como física do ser humano, são necessários mais estudos para clarear as relações aqui abordadas, entre traumas na infância, transtornos psiquiátricos e tendência ao autoextermínio.
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