RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 22. 4

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Educação Médica

Dilemas em um currículo

Dilemmas in a Curriculum

Daniel Riani Gotardelo1; José Carvalhido Gaspar2

1. Professor Assistente do curso de Medicina do Instituto Metropolitano de Ensino Superior - Univaço. Mestre em Farmacologia Clínica. Ipatinga, MG - Brasil
2. Professor assistente do curso de Medicina do Instituto Metropolitano de Ensino Superior - Univaço. Ipatinga, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Daniel Riani Gotardelo
E-mail:danielriani@famevaco.br , danielriani@uol.com.br

Recebido em: 03/09/2012
Aprovado em: 15/11/2012

Instituiçao: Instituto Metropolitano de Ensino Superior - UNIVAÇO Ipatinga, MG - Brasil

Resumo

Vários fatores relacionados à economia, ao mercado de trabalho, a demandas da sociedade, a instituições de saúde, ao Estado, a órgaos de classe e ideologias e crenças de professores e alunos, além dos aspectos pedagógicos, contribuem para a subsistência de dilemas e conflitos em um currículo médico. Aprofundar o conhecimento dessas variáveis é mister para o planejamento curricular e para as reformas necessárias para a formação requerida dos futuros médicos do país.

Palavras-chave: Educação Médica; Educação de Graduação em Medicina; Escolas Médicas; Currículo; Formação de Recursos Humanos.

 

INTRODUÇÃO

O termo currículo vem da palavra latina scurrere, correr, e refere-se a uma jornada que deve ser empreendida para alcançar objetivos relacionados à formação profissional. Hodiernamente esse percurso traduz-se por um conjunto de disciplinas ou módulos com seu corpo de conhecimento organizado em sequência lógica e temporalmente determinados, a matriz curricular.

Um currículo não é aleatoriamente elaborado, pois participa de um momento histórico e acarreta consequências nos egressos de determinado curso. Sua elaboração - seleção, organização e distribuição do conhecimento - dialoga com os grupos dominantes de poder e de controle social presentes na sociedade.1 Esses pressupostos são válidos para a organização curricular das profissões da área de saúde, em que o modelo assistencial, o mercado de trabalho, as demandas da população assistida e as políticas públicas contribuem para seu dinamismo e sua transformação.

Para a discussão envolvendo os desafios e dilemas que atualmente permeiam os currículos médicos no Brasil, torna-se necessária a contextualização dos processos históricos que levaram às concepções de construção curricular ora vigentes.

 

INFLUENCIA HISTORICA DA ORGANIZAÇÃO DOS CURRICULOS MÉDICOS NO BRASIL

No Brasil, a organização dos currículos das Faculdades de Medicina, a partir das décadas de 1950 e 1960, está intimamente ligada ao preceito político-econômico entao vigente, cujo conteúdo atendia aos interesses do capital, por meio do modelo flexneriano de formação. Nesse modelo, alusivo ao estudo feito pelo Dr. Flexner e sua equipe sobre o ensino médico nos Estados Unidos no início do século XX, o currículo é nitidamente dividido em básico (em salas de aula e laboratórios) e profissional (dentro dos hospitais). Hipervaloriza o ensino de anatomia e de outras disciplinas que destacam as dimensões física e biológica, é hospitalocêntrico e prega que o melhor ensino é aquele fragmentado em especialidades.

A proposta de atenção à saúde adotada pelo governo militar em grande parte da segunda metade do século XX restringia as verbas para prevenção, privilegiando o enfoque na doença, o uso de novas tecnologias, a construção de hospitais e a valorização dos especialistas. Essas prioridades se desnudavam em observação teórica do perfil curricular entao vigente, com intervenção direta na formação do médico.

A partir da segunda metade da década de 70, capitaneados por intelectuais das universidades, por várias Igrejas, pelo movimento estudantil e outras organizações, o movimento sanitário introduziu a proposta de novo modelo de atenção à saúde, procurando resgatar o ideário do movimento de Medicina social europeu do século XIX. Politicamente, a sublimação da democracia e a aprovação da Constituição e das Leis Orgânicas garantiram as bases legais para a implantação de um sistema público de saúde apoiado no tratamento, mas também na prevenção de doenças, cujo profissional médico pudesse fazer parte de uma equipe multidisciplinar. O objetivo seria entender e intervir nos problemas de saúde mais prevalentes na população junto a uma população adstrita - o Programa de Saúde da Família -, hoje considerada a estratégia em que se estrutura a atenção básica no país. A nova demanda político-social impôs emergente maneira de pensar o currículo do médico e dos outros profissionais da saúde, a ponto de entidades como a Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), a partir dos anos 80, e o próprio Ministério da Educação e Cultura (MEC), no início do século XXI, por meio das Diretrizes Curriculares Nacionais para a graduação em Medicina, indicarem as bases para novo modelo formador, direcionado para as necessidades sociais e de saúde do país.2

A partir da década de 90, reformas curriculares foram implementadas em todo o país com o intuito de adequar os currículos ao novo paradigma de formação médica desejado, isto é: formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, capaz de permitir a atuação, pautada em princípios éticos, no processo de saúde-doença em seus diferentes níveis de atenção, com ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência, com senso de responsabilidade social e compromisso com a cidadania, promotora da saúde integral do ser humano.3 O delineamento dos novos currículos deveria, entao, muito mais do que abarcar novos conteúdos, contemplar nova forma de entender o processo saúde-doença e novo norte de formação capaz de desenvolver, nos aprendizes, habilidades e competências que extrapolavam as do médico trabalhando em clínica especializada ou hospital de grande centro.

 

DESAFIOS E DILEMAS ATUAIS QUE PERMEIAM OS CURRICULOS MÉDICOS NO BRASIL

Desse contexto emergiram, nos últimos anos, grandes dilemas ideológicos, estruturais e pedagógicos nos currículos das escolas médicas que ensaiaram reformas curriculares com o propósito de atender ao novo perfil profissional desejado. Definem-se dilemas como situações embaraçosas, para as quais não há saída senão por um dos dois modos, ambos difíceis ou penosos.

Preliminarmente à discussão sobre os dilemas estruturais e pedagógicos relacionados aos meios utilizados para o alcance dos objetivos da formação profissional - o quê, quando, quanto e como ensinar/aprender -, cabe ressaltar que, até o momento, as políticas estatais de valorização do médico generalista têm se mostrado insuficientes para a fixação e seguimento de sua carreira na atenção básica. Inicialmente, pode-se considerar essa constatação ideologicamente dilemática para o currículo, na medida em que cria condições para legitimar o discurso da valorização da medicina de especialidades durante a graduação, além de possibilitar o reforço de questionamentos quanto às concepções de formação atualmente preconizadas. No entanto, assumir o mercado de trabalho como principal ou único condicionante da formação médica e admitir que os objetivos de formação profissional sugeridos pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a graduação em Medicina restringem-se à preparação de médicos de família ou voltados para a Atenção Básica pode ser considerado um equívoco por pelo menos dois motivos: o primeiro é que também existe carência atual e prospectiva de outros especialistas médicos em várias regioes do país4; o segundo é que a maioria das habilidades e competências gerais sugeridas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais deve (ou pelo menos deveria) ser de domínio de qualquer especialista. A intenção é a formação de médicos que:

prestem serviços em alto padrao de qualidade e dos princípios da ética/bioética;

sejam capazes de tomar decisões visando ao uso apropriado (eficácia e custo-efetividade) de medicamentos, equipamentos, procedimentos e práticas;

estejam aptos a assumir posições de liderança e a trabalhar em equipe multiprofissional;

estejam habilitados a aprender continuamente, tendo responsabilidade e compromisso com a própria educação.3

Quanto ao modelo pedagógico, discute-se sobre a adoção de currículos tradicionais ou currículos orientados pela aprendizagem baseada em problemas (PBL - problem based-learning). Apesar de alguns trabalhos não identificarem diferenças no desempenho dos alunos egressos de ambas as modalidades de currículo, principalmente no campo cognitivo, estudos nos campos da educação, neurociências e psicologia sinalizaram que métodos educacionais fundamentados em processo ativo de construção do conhecimento, também conhecidos como metodologias ativas de aprendizagem, são mais adequados ao aprendizado de adultos, gerando aprendizagem significativa em vez de memorização despropositada e dissociada da prática profissional.5-7 O termo pedagogia dá, assim, lugar ao vocábulo andragogia - princípios de aprendizagem de adultos - que considera:

a história e o conhecimento preexistente do indivíduo (os adultos gostam de utilizar o que já foi aprendido e de relacionar novos conhecimentos com suas experiências e conhecimentos prévios);

o contexto e as condições de aprendizagem (os adultos gostam de aprender significativamente e com propósitos, em ambientes confortáveis e seguros);

a diferença entre o que foi ou não aprendido/entendido como forma de criar lacunas para o desenvolvimento da aprendizagem (os adultos gostam de resolver problemas e de procurar respostas para as próprias lacunas de conhecimento);

a auto-organização (os adultos gostam de ter responsabilidade sobre a sua aprendizagem e de escolher as próprias abordagens para aprender);

a reflexão e a realimentação (os adultos gostam de receber feedback oportunamente e de refletir sobre o seu aprendizado).8

Ressalta-se que a proposta do PBL tem sido uma das formas de concretização desses princípios e que, assim como os métodos adotados em currículos tradicionais - aulas expositivas, discussão de casos, grupos de discussão, sessões anatomoclínicas -, é sujeita a vantagens e limitações.9 De outro modo, mesmo em currículos tradicionais, é possível contemplar as questoes socioculturais e os problemas cotidianos da prática profissional como elementos centrais de suas atividades nos diversos cenários de aprendizagem por meio, por exemplo, da inserção do aluno no serviço de saúde e na comunidade desde o início do curso. Isso significa que métodos ativos de aprendizagem não são específicos da proposta PBL e que podem ser contemplados com sucesso em outros modelos curriculares. Entretanto, observa-se que há o risco de, na tentativa de conciliar aspectos parciais de várias propostas curriculares, criarem-se situações contraditórias/antagônicas que podem confundir o estudante e prejudicar a aprendizagem10. Depreende-se, portanto, em relação ao dilema de qual estratégia curricular utilizar, que devem ser enfatizadas preferencialmente metodologias ativas de aprendizagem baseadas em princípios da aprendizagem de adultos, independentemente dos rótulos e das disciplinas/módulos existentes. Deve-se partir do pressuposto de que esses referenciais são capazes de trazer respostas às prementes necessidades da graduação médica em nosso país, principalmente no que diz respeito à formação de indivíduos éticos, humanistas, dotados de iniciativa, espírito crítico, criatividade, conhecimento da realidade, compromisso social e capacidade de "aprender a aprender".6

Situação igualmente emblemática relacionada aos conteúdos curriculares diz respeito a "o quê" e "quanto" aprender, ou seja, quais conhecimentos devem ser ensinados/aprendidos e em que profundidade. É fato que o conhecimento científico e a pesquisa biomédica, atualmente em crescimento exponencial, impossibilita aos estudantes aprender todo o conteúdo atualizado de todas as áreas do conhecimento médico. Entranhados pela exorbitante quantidade de informações recebidas em seus mestrados/doutorados e pela formação especializada recebida, os professores de Medicina tendem, por comodidade e pelo domínio extensivo do assunto, a considerar que tudo o que ensinam é importante em todas as situações. Vislumbra-se, entao, o dilema relacionado ao conteúdo a ser desenvolvido nas unidades curriculares, sejam elas disciplinas ou módulos. Nesse caso, a solução dilemática passa pela adoção do que se convencionou chamar de currículo nuclear. Segundo Marcondes11, optar por um currículo nuclear "não se trata apenas de resumir conteúdos, mas, sim, de considerar esse resumo um meio para atingir um fim maior, qual seja, o aprimoramento da graduação médica como um todo. E isso envolve o repensar de objetivos, conteúdos, técnicas instrucionais e procedimentos avaliatórios". Enfatizar a somatória dos conteúdos necessários e suficientes para a formação geral do médico, aliando-os à possibilidade de realização de estágios extracurriculares, disciplinas optativas, atividades complementares e outros mecanismos de flexibilização curricular, permite a incorporação de novos conhecimentos médicos e de inovações tecnológicas. Sendo assim, a opção pelo aprender o que é mais prevalente (enfoque epidemiológico), pela flexibilidade e pela possibilidade de mudar de acordo com o avanço do conhecimento se mostra reveladora do que (e em que magnitude) se deve aprender durante a formação profissional.

 

CONCLUSÃO

Finalmente, além dos aspectos pedagógicos, reforça-se que fatores relacionados à economia, ao mercado de trabalho, a demandas da sociedade, a instituições de saúde, ao Estado, a órgaos de classe e ideologias/crenças de professores e alunos contribuem para a subsistência de dilemas e conflitos em um currículo médico. Aprofundar o conhecimento dessas variáveis é mister para o planejamento curricular e para as reformas necessárias para a formação requerida dos futuros médicos do país.

 

REFERENCIAS

1. Zotti SA. Grupo de Estudos e Fesquisas "História, Sociedade e Educação no Brasil". Faculdade de Educação - UNICAMP 2012. [Citado em 2012 nov 12]. Disponível em: www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/.../verb_c_curriculo.htm

2. Da Ros MA. A ideologia nos cursos de medicina. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC, organizadores. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 224-44.

3. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução CNE/CES n° 4, de 7 de novembro de 2001. Institui diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em medicina. [documento na internet]. Brasília: MEC; 2001. [Citado em 2012 nov 12]. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES04.pdf.

4. Pérez PB, López-Valcárcer BG, Vega RS. Oferta, demanda y necesidad de médicos especialistas en Brasil: proyecciones a 2020. Gran Canaria: Universidad de Las Palmas de Gran Canaria; 2011.

5. Toledo Júnior ACC, Ibiapina CC, Lopes SCF, Rodrigues ACP, Soares SMS. Aprendizagem baseada em problemas: uma nova referência para a construção do currículo médico. Rev Méd Minas Gerais. 2008;18(2):123-31.

6. Gomes AP Rego S. Transformação da educação médica: é possível formar um novo médico a partir de mudanças no método de ensino-aprendizagem? Rev Bras Educ Med. 2011;35(4):557-66.

7. Gomes AP, Dias-Coelho UC, Cavalheiro PO, et al. A Educação Médica entre mapas e âncoras: a aprendizagem significativa de David Ausubel, em busca da Arca Perdida. Rev Bras Educ Med. 2008;32(1):105-11.

8. Mennin S, Mennin RP. Teoria da Aprendizagem de Adultos: como os adultos aprendem? (impresso). Estratégias e fundamentos na aprendizagem de adultos: por que buscar alternativas ao ensino tradicional, baseado em aulas expositivas? Fórum de Desenvolvimento Docente. In: 45° Congresso Brasileiro de Educação Médica (ABEM). Uberlândia: ABEM; 2007.

9. Gil AC. Como promover a aprendizagem baseada em problemas. In: Gil AC. Didática de Ensino Superior. São Paulo: Atlas; 2006. P. 175-96.

10. Feuerwerker LCM. Gestao dos processos de mudança na graduação em Medicina. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC, organizadores. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 17-39.

11. Marcondes E. Currículo nuclear. Medicina (Ribeirao Preto). 1996;29(4):389-95.