ISSN (on-line): 2238-3182
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CAPES/Qualis: B2
A atenção primária à saúde no município de Ouro Preto - MG: relato baseado na experiência do internato de saúde coletiva
Primary health care in Ouro Preto, Minas Gerais, Brazil: a report based on the experience of collective health internship
Marcelo Gomes de Almeida1; Marciléa Silva Santos1; Samuel Reis da Silva1; Apolo Heringer Lisboa2
1. Acadêmicos do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Professor Adjunto do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Marcelo Gomes de Almeida
E-mail: marcelomedile@yahoo.com.br
Recebido em: 24/04/2012
Aprovado em: 10/07/2012
Instituiçao: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
O Sistema Unico de Saúde (SUS) no Brasil, criado na Constituição Federal de 1988, enuncia todos os conceitos e medidas práticas de Estado para promover, proteger e recuperar a saúde humana no território nacional. A principal porta de entrada para o SUS se constitui das Unidades de Atenção Primária à Saúde (APS), que são capazes de identificar os fatores potencialmente danosos à saúde e atuar no sentido de seu equacionamento e resolução. Adicionalmente, lhes compete cuidar das demandas clínicas, seja no nível primário da atenção, seja por encaminhamento e recebimento posterior de contrarreferência dos casos que necessitam de mais incorporação tecnológica e de avaliação por especialistas. Este artigo apresenta a experiência na APS a partir da vivência discente supervisionada durante o Internato de Saúde Coletiva ("Internato Rural") realizado ao longo do quarto trimestre de 2011, no município de Ouro Preto, Minas Gerais. Intenciona também promover reflexoes acerca do conteúdo teórico de sua constituição e da realidade de sua prática.
Palavras-chave: Saúde Pública; Atenção Primária à Saúde; Sistema Unico de Saúde; Internato e Residência.
INTRODUÇÃO
As políticas assistenciais evoluíram historicamente sob capital influência da dinâmica econômica, dos movimentos sociais e das tendências mundiais. No Brasil o marco desse processo se deu na década de 1980, no cenário da Reforma Sanitária. O clímax desse processo foi a criação do Sistema Unico de Saúde (SUS), pela Constituição Federal de 1988, que estabeleceu seus princípios e sua regulamentação pela Lei Orgânica da Saúde, de setembro de 1990.1,2
Apesar da universalização do sistema assistencial e do entendimento integral do processo saúde-doença, a atenção à saúde, para grande parte da população brasileira, representa a imagem estereotípica das grandes filas, corredores de unidades de atendimento sempre lotados, com pessoas debilitadas, além de insegurança e medo.
A saúde, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)3, caracteriza-se pelo estado de completo bem-estar biopsicossocial, cultural e espiritual e não meramente a ausência de doença. Trata-se de definição complexa, não restrita à assistência médica. Dessa forma, a pessoa saudável é aquela que, além de não manifestar enfermidades, é membro de um grupo social, com o qual interage, e estabelece relação de equilíbrio com o meio em que está inserido, sendo, assim, parte de um ecossistema sustentável, cujas condições mínimas de vida são respeitadas. Diante de tal complexidade, a saúde deve ser abordada visualizando-se a pessoa e suas relações interpessoais e com o meio em que vive, incluindo o processo econômico, de forma a criar uma sociedade ecossistemicamente saudável.
Nesse contexto, sociedade civil, empresas e o Estado devem se organizar com sinergia de esforços e convergência conceitual, para atuarem no processo de preservação e promoção de saúde. Sem dúvida, a prática médica deve ser de grande importância na recuperação e desenvolvimento de estratégias para melhoria da saúde coletiva. A visão de saúde como direito a ser garantido por intervenções complexas, de cunhos principalmente social e ambiental, é o único caminho eticamente viável para o tamanho e as pretensões do SUS.
Em consonância com as transformações doutrinárias e operativas pelas quais passavam as políticas de saúde do país nas décadas de 1970 e 1980, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) implementou, em janeiro de 1978, o Internato Rural, denominado em 1993 de Internato em Saúde Coletiva4. Por suas características conceituais e organizacionais, possibilitou espaço de formação de nova mentalidade médica, embora sem conseguir mudar a concepção prevalente nas práticas das políticas públicas devido à resistência da indústria da doença.
Trazendo como objetivos a quebra do paradigma exclusivo do determinismo biológico das doenças e a relativização do poder e do objetivo curativos da Medicina, além do estímulo ao uso racional dos recursos tecnológicos, o Internato representou não apenas simples alteração curricular, mas a inserção dos conceitos envolvidos na transformação desse sistema. Ao inserir estudantes de Medicina nesse cenário, concebeu-se que os médicos, ainda precocemente, pudessem participar da missão de construção do SUS com visão não somente biopsíquica, mas acrescida de enfoque sociocultural.4,5
A realidade vivenciada na implantação do Internato, em 1978, não encontra total correspondência com os dias atuais. É pertinente, entao, considerar que a prática deve ser adequada às atuais necessidades das comunidades, dos estudantes e do avanço tecnológico e organizacional da assistência à saúde, superadas as questoes que inicialmente sustentavam implantação da disciplina, bem como reavaliada quanto ao benefício que, de fato, traz às partes envolvidas.
OBJETIVOS E MÉTODOS
Este artigo objetiva a discussão acerca da experiência do Internato em Saúde Coletiva da UFMG em Cachoeira do Campo, distrito de Ouro Preto, Minas Gerais, durante o quarto trimestre de 2011, considerando-se as experiências anteriores nessa mesma regiao; e a atuação das equipes de atenção primária locais no cenário proposto pelo SUS, traçando paralelo entre o que se propoe em lei e aquilo que se constata em campo.
Para tanto, utilizou-se como estratégia central a casuística de ocorrências e queixas dos estudantes de Medicina registradas de forma qualitativa durante o período supracitado sobre a atuação local do SUS. Além disso, lançou-se mão do estudo de publicações da época, baseadas em pesquisas, a partir das quais se pretendeu estribar a argumentação.
RELATO DE CASO
Foram encontradas várias descrições de situações do processo de trabalho durante o Internato de Saúde Coletiva, no quarto trimestre de 2011. Esses relatos foram relacionados aos atuais preceitos legais do SUS. Os pontos citados foram compilados em documento elaborado pelos internos a partir da prática diária de atenção à saúde e de reunioes promovidas pelo Conselho Municipal de Saúde da cidade de Ouro Preto, onde também foram apresentadas e discutidas.
Os casos descritos foram divididos em quatro grupos de acordo com as características analisadas, conforme:
grupo 1 - equipe de atenção primária: incluíram-se ocorrências relacionadas à estrutura organizacional da equipe de atenção primaria;
grupo 2 - qualificação técnica: foram apresentadas a qualificação dos profissionais envolvidos na APS;
grupo 3 - gestao em saúde: foram relacionadas questoes de gestao do serviço de saúde;
grupo 4 - referência e contrarreferência: foram incluídas situações envolvendo a comunicação entre os diferentes níveis de atendimento à saúde.
Grupo 1 - Equipe de atenção primária
Foram observados os seguintes problemas:
o atendimento de pré-natal, consultas ginecológicas e coleta de exames citopatológicos foram realizados apenas por enfermeiras e não pela equipe médica;
em três equipes de atenção primaria havia, em todas as salas, fichas, receituários e pedidos de exames carimbados, e em branco, pelo médico da unidade. Assim, as enfermeiras realizavam pedidos de mamografia e renovação de receitas em nome de outro profissional;
nas unidades, os pacientes com diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica e distúrbios neurológicos possuíam receitas deliberadamente renovadas sem consulta médica, durante vários trimestres e até anos, sendo que tanto médicos como enfermeiras transcreviam as receitas;
paciente de 72 anos, com celulite em membro inferior esquerdo, artrite reumatoide com doença em atividade e morando a menos de 1.000 metros do posto e que não estava recebendo cuidados;
no posto de saúde, a técnica de enfermagem fez o seguinte relato: "o médico só realiza visita domiciliar quando extremamente necessário";
a enfermeira atendeu o seguinte caso: mulher de 28 anos com quadro recente de "ansiedade", dispneia e vertigem. A própria enfermeira solicitou hemograma, prescreveu Labirin® e pediu que a paciente retornasse no dia seguinte;
no posto de saúde, o médico, ao ser convidado para participar de pesquisa sobre a confiabilidade das medidas de pressão arterial realizadas pelas técnicas de enfermagem, conduzida pelos internos, recusou-se sob a justificativa de que a população poderia questionar e criticar o trabalho da equipe, comprometendo, de forma importante, o vínculo estabelecido até entao;
durante reuniao da equipe, a motorista da unidade manifestou sua indignação por ter que realizar entrega de prescrições e marcações de consultas, trabalho de competência das agentes comunitárias de saúde (ACS);
encontrado caso de violência contra idoso em Glaura e São Bartolomeu, onde parentes de má índole desviavam recursos de idosos que viviam em situação de abandono e vulnerabilidade;
durante as reunioes da equipe de saúde do PSF, eram debatidos apenas os horários, sem manifestar preocupação com a organização de medidas voltadas para conteúdos de promoção da saúde e qualificação do atendimento;
o programa do grupo de tabagismo é ineficiente, pois funciona em horário que impede a participação de grande parte da comunidade nas atividades propostas. Além disso, o mesmo não conta com o envolvimento efetivo de toda a equipe, sendo que cada unidade tem uma pessoa qualificada para dirigir o grupo e as agentes comunitárias de saúde não sabem informar à população do que se trata.
Grupo 2 - Qualificação técnica
vários pacientes usando a mesma medicação há anos estavam com a pressão arterial sistêmica acima de 140x90 mmHg;
os etilistas crônicos eram tratados sem controle periódico e vigilância. Paciente do PSF com necrose do hálux direito e exposição da falange distal foi encaminhado para a UPA de Ouro Preto e voltou para domicílio sem a avaliação médica adequada, apenas com curativo realizado pela técnica de enfermagem da referida unidade;
paciente com 68 anos, com úlcera de estase bilateral na regiao pré-tibial há anos. Durante a visita domiciliar, foram feitos curativos durante um mês, com visitas semanais, sem que apresentasse resolução. Após exame foi notada extensa área de necrose. Optou-se por desbridamento no posto, conduta criticada pela enfermagem: "você perdeu tempo fazendo isso, pois vai voltar tudo outra vez";
técnicas de enfermagem de uma unidade de saúde realizaram curativos com material não esterilizado, mesmo com a unidade contando com autoclave. A justificativa obtida de funcionários foi de que os procedimentos não eram estéreis, logo, só seria necessário o processo de descontaminação;
paciente com 68 anos, com diabetes mellitus, tabagista e câncer de próstata, operado recentemente e com úlcera em membro inferior direito. Depois de investigação clínica e laboratorial, buscando possíveis fatores que estariam dificultando o processo de cicatrização, identificou-se que os curativos eram feitos com uso da colagenase, seguindo orientações da técnica de enfermagem do posto;
uma ACS relatou, durante reuniao da equipe, que a visita não é adequadamente realizada caso o morador não solicite a entrada na residência e que a entrega de receitas e marcações de consultas não é realizada de forma individualizada e sem respeitar a divisão territorial das microáreas;
após palestra realizada sobre epilepsia, a enfermeira orientou os integrantes da equipe sobre a necessidade de identificação e encaminhamento ao neurologista de todos os pacientes portadores dessa morbidade;
as medidas de mudança de estilo de vida não são reconhecidas nem incentivadas de forma efetiva pelos membros da equipe, sendo que as agentes comunitárias de saúde fornecem opinioes leigas para os pacientes, exaltando generalizadamente o uso de medicamentos;
na pré-consulta, as técnicas de enfermagem realizavam medidas da pressão arterial sistêmica. Os esfigmomanômetros utilizados para esse fim não eram revisados periodicamente e geralmente o médico decidia sua conduta com base na medida realizada pela técnica, não conferindo com seu próprio aparelho em cada consulta.
Grupo 3 - Gestao em saúde
nas unidades de saúde o médico solicita exames e a enfermeira faz o controle de quem deve ter ou não a prioridade de realizá-los, baseando-se na data do último exame solicitado e, em geral, sem priorizar a gravidade do quadro clínico;
a produtividade de médicos e enfermeiros é feita com anotação das consultas em folha própria. Toda vez que médicos e enfermeiros anotam resultados de exames no prontuário na ausência do paciente registram como atendimento;
na reuniao do Conselho Municipal de Saúde, o vice-presidente falou sobre a falta de compromisso dos médicos em cumprir o expediente, não seguindo a forma de atuação nas equipes até às 16 horas na unidade de saúde, realizando atividades pessoais no horário da tarde. Nesse momento, foi repreendido por representante da Secretaria de Saúde, que negou ser esse um problema de sua competência e que dependia da consciência de cada profissional.
Grupo 4 - Referência e contrarreferência
paciente de 90 anos ficou internado durante 14 dias na Santa Casa de Ouro Preto. Após a alta hospitalar, foi realizada visita domiciliar. Porém único relatório médico referente à internação informava apenas: "paciente com HDA e alta após EDA";
paciente de 85 anos mora com a esposa de 78 anos, não tem filhos, realizou consulta com neurologista devido à suspeita de acidente vascular encefálico. Nem no prontuário nem no domicílio foi encontrado qualquer documento redigido pelo especialista;
paciente de 28 anos, com suspeita de síndrome de Cushing esteve durante um ano em acompanhamento com endocrinologista da Universidade Federal de Ouro Preto e na unidade de saúde não havia algum relatório sobre propedêutica, terapêutica ou mesmo hipótese diagnóstica aventada pelo especialista.
DISCUSSÃO
No Brasil, a saúde foi, durante décadas, encarada como bem de consumo. Até o início do século XX, os atendimentos eram realizados em domicílio e reservados apenas aos que podiam comprar os serviços. Isso ocorreu até a década de 1930, quando foram edificados os primeiros hospitais com recursos estatais, no governo de Getúlio Vargas. Essas instalações, contudo, beneficiavam apenas os segmentos de trabalhadores vinculados aos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), criados por Vargas para gerir tais unidades e os recursos das antigas Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs).6
Não obstante, o maior marco desse processo de mercantilização da saúde no Brasil ocorreu na década de 1960, na ditadura militar, com o advento do Instituto Nacional da Previdência Social (INPS). Nesse momento da história nacional assistiu-se a uma colossal expansão da estrutura hospitalar, possível graças à extinção dos IAPs e utilização de seus recursos para o financiamento dessas obras. É importante ressaltar, contudo, que tais estabelecimentos foram erguidos por grupos privados, com o patrocínio do Estado. Naturalmente, a ampliação do acesso e a bancarrota previdenciária que se instalou pressionaram significativamente para mudança radical da lógica vigente até entao, o que culminou com a criação do SUS6 em 1988.
Assim, historicamente, somente após a experiência do SUS, com seus acertos (a universalização e a descentralização) e seus desacertos (iniquidade e má-qualidade ao ampliar a cobertura sem organização e rigor técnico adequados), a abordagem ecossistêmica do processo de saúde passou a ser cogitado lentamente e esbarrando em jogos políticos que marcam o sistema perverso de clientelismo e do lucro como objetivo do mercado aberto pelo SUS. A prática política usa favores que utilizam medidas de recuperação da saúde como moeda corrente, criam uma fachada de trabalho que acoberta investimentos vultosos, que não se destinam à promoção ou preservação de saúde, e incentivam o assistencialismo de baixa resolutividade. A mercadologia envolvida nesse processo é atrelada às empresas produtoras de insumos para a "prática médica". Esse sistema vem substituindo a relação médico-paciente e enterrando os princípios de que a clínica médica é soberana, de que saúde não é questao basicamente médica. A dominação ideológica da indústria da doença consegue influenciar os pilares da formação da mentalidade do médico e diminuir seu papel como agente de promoção e prevenção da saúde, além de reduzir o conceito de saúde ao tratamento das doenças. O estado brasileiro assegura essa condição devido à sua natureza histórica ou herança maldita secular.
A atenção primária apresenta-se como componente mais importante do sistema de saúde, considerando-se que constitui a estratégia organizativa da sua atenção. É definida por seus princípios e diretrizes, com base em: coordenação, incluindo o acompanhamento do usuário nos demais níveis de atenção; integralidade; continuidade (longitudinalidade) do cuidado; acesso, considerando tanto a facilidade do acesso quanto a definição de APS como a porta de entrada do sistema de saúde; atenção centrada na pessoa e não na enfermidade, focada na família e comunidade; trabalho em equipe; promoção da cultura local7. Além disso, por definição, utiliza tecnologias de alta complexidade (muito conhecimento) e baixa densidade (equipamentos reduzidos, com máxima resolutividade).8
Considerar todos esses dados é de suma importância para se analisar o que ocorre na APS em grande parte do território nacional. Pode-se notar, ao se avaliar a experiência em Ouro Preto, que esses preceitos enunciados se mantêm restritos ao plano teórico, produzindo como efeito uma população que se vê à mercê de uma "prática de medicina inferior", desqualificada e desrespeitosa, destinada aos cidadaos de baixa renda. Como exemplos podem ser citados os casos nos quais o profissional da equipe de enfermagem assume responsabilidades do médico, o que contraria o artigo 2º do Código de Ética Médica9, e os artigos 48º e 51º do Código de Ética da Enfermagem10, bem como o princípio do trabalho em equipe.
Também se pode identificar a ineficiência do serviço de atenção à saúde ao se analisarem falhas no controle e avaliação de doenças crônicas prevalentes, como diabetes mellitus, hipertensão arterial sistêmica e etilismo, e suas complicações, ferindo, por conseguinte, os princípios da integralidade, continuidade e acesso, como visto em vários dos relatos. Além disso, podem ser citados os relatos que denotam o acompanhamento médico inadequado dos pacientes hipertensos, sem implementação das condutas baseadas em evidência científica11,12, o que não condiz com os princípios da integralidade, continuidade, acesso e atenção centrada no indivíduo. Constata-se, ainda, na equipe de saúde, a falta de conscientização sobre a importância das medidas de promoção de saúde e da identificação de fatores ambientais que possam interferir na qualidade de vida da comunidade, na contramão dos conceitos da atenção centrada na família e comunidade, trabalho em equipe e cuidado centrado na pessoa, e não na enfermidade.
As referidas situações demonstram como, na prática, o SUS distancia-se de suas diretrizes teóricas previstas na Carta Magna e na Lei Orgânica da Saúde. A Constituição Federal de 1988 diz, no art. 196:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.1
A Lei nº 8.080 (SUS), de 19/09/90, no art. 3, diz:
A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do país.2
De acordo com dados publicados pelo Conselho Federal de Medicina, em 1998 eram apenas 42 equipes de Saúde de Família, em 22 municípios de Minas Gerais. Em dezembro de 2009, esse número subiu para 3.983 equipes, que atuavam em 838 municípios - 98,2% do total de cidades, e Minas Gerais era o estado com maior número absoluto de equipes13. Entretanto, essas informações não refletiam a qualidade de vida e de saúde da população nem a qualidade e adequação da assistência prestada à comunidade por essas equipes, comprovado pela sobrecarga observada nos atendimentos de urgência/emergência, erroneamente utilizados como porta de entrada para o serviço público de saúde. Esse fato ressalta inadequado fluxo de pacientes, decorrente de gestao ineficaz, o que reduz a resolutividade das unidades básicas de saúde e a fragmentação dos cuidados prestados ao paciente nos diferentes níveis de atenção. Vários dos relatos abordados exemplificam como isso se dá na prática.
Segundo a opiniao do Dr. Carlos William Delfim, clínico geral há 15 anos no Hospital Joao XXIII da Fundação Hospitalar de Minas Gerais, em entrevista para a Revista Médicos das Gerais13, existem graves problemas na atenção primária que geram sobrecarga nos demais níveis de atenção.
Como a resolução dos problemas é mais rápida na urgência/emergência, os pacientes acabam buscando o serviço e gerando sobrecarga, apesar de muitos já saberem que no Hospital Joao XXIII os casos mais graves são priorizados; atendemos a um grande número de pacientes que sofreram um derrame ou um infarto. Isso poderia ser evitado se fosse feito o controle da pressão arterial e do colesterol. O mesmo se pode afirmar sobre os acidentados. Se controlássemos o alcoolismo, haveria menos acidentes de trânsito.
Esses não são eventos isolados, sendo característicos da atual atenção primária à saúde no país.
A atenção primária utiliza tecnologias de baixa densidade, porém oferece a maior resolutividade do sistema de atenção à saúde, com o mais baixo custo por paciente e com a capacidade de promover melhor qualidade de vida para a população e não apenas o tratamento de doenças. Nesse contexto, os profissionais deveriam possuir ampla formação sobre as diversas morbidades, atuando na sua prevenção e tratamento, considerando-se tratar de modelo de alta complexidade tecnológica. Os princípios fundamentais do acesso, continuidade, integralidade e coordenação só serao garantidos mediante gestao eficiente dos recursos humanos e financeiros, ainda aquém do ideal.
O objetivo de se criar um sistema que privilegie a promoção de saúde e prevenção de agravos está longe de ser alcançado e a integração dos estagiários ocorre em um sistema desorganizado e de eficiência questionável.
CONCLUSÃO
Diante de toda a situação aqui exposta, fica evidente a importância de se repensar a forma de atuação das equipes de Saúde da Família, que deve estar entrosada com outras estruturas, na busca da mudança do paradigma em prol de serviço integral que promova saúde e não vise apenas ao tratamento de doenças. Especial cuidado deve ser endereçado à vigilância epidemiológica nos municípios, de forma que os dados sejam analisados e permeiem as discussões nesse nível de atenção. Entretanto, também é possível constatar que não basta um debate político para resolver tal problema. A atuação multiprofissional na atenção primária deve ser exercida dentro das competências de cada profissional e com constantes discussões para a elaboração de propostas destinadas ao seu território.
A pedra angular de qualquer atuação na APS está no envolvimento da população com a unidade referência, principalmente aderindo às medidas de preservação e promoção de saúde e buscando o serviço como direito que é financiado por todos e garantido pela fiscalização dos conselhos municipais de saúde. Assim, será possível vencer a ideia de que a saúde seja um prêmio cedido pelos prefeitos e seus gestores.
Em relação à participação dos profissionais da saúde e dos estudantes, espera-se que tenham boas condições para o exercício nas evidências científicas atuais e que possam exercer papel de agentes da promoção, prevenção e da cura ou controle das doenças. Nesse âmbito, o profissional deve ser preparado não só para lidar com doenças em pacientes de ambos os gêneros e de todas as faixas etárias, mas principalmente entrar na equipe como membro estruturador de ações a médio e longo prazo que visem à obtenção de população saudável. A abordagem de saúde pública e da saúde coletiva deveria ser especificada, não se confundindo os dois conceitos. O SUS não incorporou ainda a concepção da saúde coletiva ecossistêmica em sua prática social e médica.
No meio acadêmico deveria se almejar o preparo do profissional, com ampla visão do processo do adoecer a ser estruturada durante toda a formação a partir de discussões com professores das diferentes especialidades, sendo fundamental que o estudante, durante o Internato em Saúde Coletiva, avaliasse criticamente os problemas, para não se replicar o descaso atualmente vigente nas unidades.
Percebe-se que os avanços trazidos com o SUS são inquestionáveis quanto à universalidade, porém sua sustentação depende de nova intervenção, em que a qualidade das medidas de saúde, individuais e coletivas deve ser o alvo perseguido, possibilitando, também, a conquista da equidade. Só assim o SUS escapará à promoção do apartheid social e os seus gestores e suas famílias não temerao ser seus usuários.
REFERENCIAS
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