RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 22. (Suppl.4)

Voltar ao Sumário

Artigos de Revisão

Farmacogenética em anestesia obstétrica

Pharmacogenetics in obstetric anestesia

Fernando Bliacheriene

Médico Anestesiologista, Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo - FMUSP. Supervisor da Anestesia Obstétrica do Hospital das Clinicas da FMUSP. Sao Paulo, SP - Brasil

Endereço para correspondência

Hospital das Clinicas - FMUSP
Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar , nº 155, 8º Andar, Prédio dos Ambulatórios, Bloco 3 Bairro: Cerqueira César
CEP: 05403-900 Sao Paulo, SP- Brasil
E-mail: fernandobli@uol.com.br

Instituiçao: Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo - MFUSP Sao Paulo, SP-Brasil

Resumo

A associação de dor pós-operatória intensa com dor crônica suscitou pesquisa sobre a identificação de indivíduos susceptíveis à dor aguda. Além disso, aventou-se a hipótese de que a resposta variável a analgésicos sistêmicos ou neuroaxiais e a ocorrência de dor crônica pós-cesariana poderiam estar associadas a um perfil genético específico. Diversas publicações surgiram sobre farmacogenética recentemente e espera-se que com esses novos conhecimentos o anestesista possa desenvolver um atendimento personalizado às necessidades específicas de seu paciente. O objetivo desta revisão é apresentar essa nova ferramenta e citar exemplos de possíveis aplicações práticas na anestesia obstétrica, no período periparto como um todo.

Palavras-chave: Farmacogenética; Polimorfismo Genético; Analgésicos Opioides; Cesárea; Anestesia Obstétrica; Período Periparto; Dor Pós-Operatória.

 

INTRODUÇÃO

Farmacogenética é definida como o estudo da variabilidade na resposta a um fármaco em virtude da variabilidade genética individual. Em termos semânticos, vale diferenciar esse termo de farmacogenômica, que é similar, mas incorpora testes genômicos e aborda o genoma de forma mais abrangente para definir a natureza da resposta a um fármaco. O exemplo clássico de sua aplicação foi a descoberta de Kalow, em 1957, do bloqueio neuromuscular prolongado seguido ao uso da succinilcolina, por alteração genética da pseudocolinesterase.1

O intuito da farmacogenética é utilizá-la como ferramenta que possa melhorar a eficácia ao saber como um indivíduo responderia a determinado fármaco, aumentando a segurança ao predizer o risco de eventos adversos e oferecer a possibilidade de se fazer uma medicina personalizada, derrubando estratégias como titular o fármaco até se obter o efeito esperado ou a terapia da tentativa e erro ou, ainda, "uma receita serve a todos".

Em relação à anestesia obstétrica, há relevância no tocante à associação entre dor aguda e dor crônica pós-operatória, a identificação de susceptíveis, inclusive geneticamente, e a formulação de estratégia de analgesia específica e personalizada para as pacientes vulneráveis.2

A seguir, serao descritos exemplos de aplicações que envolvem a anestesia obstétrica.

resposta a vasopressor para hipotensão por raquianestesia para cesariana:

Observou-se que essa resposta está relacionada ao genótipo do receptor adrenérgico β2. Padroes genotípicos Gly16Gly e Glu27Glu, comum em caucasianas, requerem menos efedrina para tratar hipotensão após raquianestesia para cesariana, mostrando uma possível explicação para a variabilidade na resposta a esse vasopressor.3 A propósito da efedrina, seu uso em obstetrícia vem sendo questionado pelas evidências de piora no perfil gasométrico neonatal (acidose). Uma das hipóteses para esse fenômeno seria a passagem transplacentária desse fármaco, que geraria mais estímulo β-fetal. A intensidade desse estímulo também pode ser mediada geneticamente e está em estudo.

resposta a β-bloqueadores:

Polimorfismos no genótipo do receptor β2 (Arg16/Gln27) que aumentam o downregulation, isto é, diminuem a população de receptores, aumentam a mortalidade por uso de β-bloqueadores após evento coronariano agudo. Nenhuma variante do receptor β1 foi associada a aumento da mortalidade nesse caso.4 Já em casos de hipertensão, variantes do receptor β1 estao associados à mortalidade aumentada em pacientes hipertensos e β-bloqueadores podem ser benéficos em subgrupos de pacientes com genótipos específicos.5 Não há evidências ainda de que variantes do receptor β2 tenham relação com mortalidade e hipertensão. Mas não só o genótipo influi nessa resposta e outros fatores devem ser levados em conta, como a etnia. Há diferenças de resposta entre brancos e negros (mais resistência a β-bloqueadores), mesmo se corrigindo os resultados para o genótipo.6

resposta a broncodilatadores para asma:

Variantes do receptor β2 não determinam a susceptibilidade à asma, mas sim a sua gravidade e padrao (noturna), ou seja, são relevantes para a farmacodinâmica. Estudo recente em que o alelo selvagem Arg16 aparece mais resistente ao broncodilatador contradiz os estudos iniciais que mostravam resposta mais expressiva. Esse grupo aguarda novas investigações. Demonstrou-se, no entanto, que a variante homozigota Gly16 apresenta boa resposta.1

resposta a tocolíticos para TPP:

Estudo mostra que a variante homozigota Arg16 produz melhor resposta a β2-agonistas para trabalho de parto prematuro idiopático entre 24 e 34 semanas de gestação. Isso teve impacto no desfecho neonatal de maes com esse genótipo, com mais peso ao nascimento e menos admissões na UTI neonatal. No entanto, não se sabe se a variante tem impacto na resposta ao fármaco ou na intensidade da doença (atividade uterina prematura).7

resposta a fármacos para analgesia:

A variabilidade é conhecida há muito, repercutindo na eficiência, efeitos colaterais e tolerância. Os opioides são os principais fármacos utilizados para analgesia e sua ação é influenciada por alterações no metabolismo (citocromo P450) e por variantes que codificam o receptor µ correspondente. O citocromo P450 é muito polimórfico e produz quatro fenótipos: metabolizador ultrarrápido, extensivo, normal e baixo. Um exemplo prático das implicações desse polimorfismo envolve a codeína. Ela precisa ser convertida em morfina para produzir analgesia, pelo CYP450. O indivíduo com baixa metabolização terá pouca analgesia, enquanto o ultrarrápido poderá resultar em intoxicação neonatal pelo leite materno. O tramadol, comumente utilizado como analgésico de resgate, também é influenciado pelo CYP450 e pode apresentar comportamento semelhante. O receptor μ é codificado pelo locus OPRM1 e uma variante na posição 118 (adenina por guanina) é observada em 10-30% de caucasianos, com alta prevalência entre asiáticos. Produziria aumento do limiar à dor, afetaria a resposta aos analgésicos e a predisposição ao desenvolvimento de dor crônica.8 De fato, resultou em menos fentanil intratecal necessário para analgesia de parto adequada, mas não influenciou na duração (PK) da analgesia. Mas outros dois estudos mostraram aumento de consumo venoso de morfina em pós-operatório de cesariana em pacientes com ao menos um alelo G118.9,10

Discrepâncias nos estudos podem ocorrer por diferenças PK/PD entre a via espinhal e venosa, a natureza diferente do estímulo doloroso do trabalho de parto, por poligenismos genotípicos, na definição de dor por ser multifatorial e subjetiva, com diferenças étnicas e ambientais e a dificuldade de "traduzir" estudos em animais e extrapolar seus resultados para aplicação em humanos.

Uma informação nova, publicada recentemente, revela uma mutação em gene que codifica o canal de sódio Nav1.7 como responsável pela síndrome rara da "indiferença congênita à dor". Novos fármacos bloqueadores de canal de sódio com propriedades analgésicas podem surgir com essa descoberta.2

 

CONCLUSÃO

Concluindo, apesar do Projeto Genoma ainda não ter produzido amplas mudanças na prescrição de medicamentos, já existem alguns testes farmacogenéticos que tiveram impacto prático ao mudar as bulas da warfarina e tamoxifeno, por exemplo. Para o anestesista, será possível predizer a eficácia ou eventual toxicidade de alguns fármacos, personalizando o atendimento, como por exemplo, com o teste CYP2D6 para prescrição de codeína e tramadol.

 

REFERENCIAS

1. Landau R. Pharmacogenetic influences in obstetric anaesthesia. Best Pract Res Clin Obstet Gynaecol. 2010;24(3):277-87.

2. Landau R, Kraft JC. Pharmacogenetics in obstetric anesthesia. Cur Opinion Anaesthesiol. 2010;23(3):323-9.

3. Smiley RM, Blouin JL, Negron M, Landau R. beta2-adrenoceptor genotype affects vasopressor requirements during spinal anesthesia for cesarean delivery. Anesthesiology. 2006;104(4):644-50.

4. Lanfear DE, Jones PG, Marsh S, Cresci S, McLeod HL, Spertus JA. Beta2-adrenergic receptor genotype and survival among patients receiving beta-blocker therapy after an acute coronary syndrome. JAMA. 2005;294(12):1526-33.

5. Pacanowski MA, Gong Y, Cooper-Dehoff RM, et al. beta-adrenergic receptor gene polymorphisms and beta-blocker treatment outcomes in hypertension. Clin Pharmacol Ther. 2008;84(6):715-21.

6. Kurnik D, Li C, Sofowora GG, et al. Beta-1-adrenoceptor genetic variants and ethnicity independently affect response to beta-blockade. Pharmacogenet Genomics. 2008;18(10):895-902.

7. Landau R, Morales MA, Antonarakis SE, Blouin JL, Smiley RM. Arg16 homozygosity of the beta2-adrenergic receptor improves the outcome after beta2-agonist tocolysis for preterm labor. Clin Pharmacol Ther. 2005;78(6):656-63.

8. Landau R, Kern C, Columb MO, Smiley RM, Blouin JL. Genetic variability of the mu-opioid receptor influences intrathecal fentanyl analgesia requirements in laboring women. Pain. 2008;139(1):5-14.

9. Sia AT, Lim Y, Lim EC, et al. A118G single nucleotide polymorphism of human mu-opioid receptor gene influences pain perception and patient-controlled intravenous morphine consumption after intrathecal morphine for postcesarean analgesia. Anesthesiology. 2008;109(3):520-6.

10. Tan EC, Lim EC, Teo YY, Lim Y, Law HY, Sia AT. Ethnicity and OPRM variant independently predict pain perception and patient-controlled analgesia usage for post-operative pain. Mol Pain. 2009;5:32.