RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 24. (Suppl.3) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.2014S011

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Artigos de Revisão

Anestesia na gestante portadora de estenose mitral

Anesthesia in pregnant women with mitral stenosis

Eliane Cristina de Souza Soares1; Carlos Othon Bastos2; Rachel de Andrade Ivo3

1. Médica. Anestesiologista do Hospital Mater Dei e Professora Assistente do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Título Superior em Anestesiologia - TSA da Sociedade Brasileira de Anestesiologia - SBA. Vice-diretor científico - Sociedade de Anestesiologia do Estado de São Paulo. Diretor científico - Latin American Society of Regional Anesthesia - Brasil. Responsável pela Residência Médica do Centro de Ensino e Treinamento Integrado de Campinas. Campinas, SP - Brasil
Médica em Especialização do Serviço de Anestesiologia do CET/SBA/IPSEMG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Eliane Cristina de Souza Soares
E-mail: elianecssoares@gmail.com

Instituição: Hospital Mater Dei Belo Horizonte, MG - Brasil.

Resumo

A doença cardíaca é a principal causa não obstétrica de morte materna e sua incidência varia entre 0,1 e 4% das gestações.1 No Brasil, 55% dos casos de cardiopatias em gestantes têm como etiologia a doença reumática, com 70 a 80% dos casos representados pela estenose mitral. A evolução da estenose mitral na gravidez envolve complicações tanto maternas quanto fetais, com incidência diretamente relacionada à gravidade da lesão. O objetivo deste artigo é revisar a fisiopatologia, quadro clínico e condução anestésica em gestantes portadoras de estenose mitral.

Palavras-chave: Anestesia Obstétrica; Febre Reumática; Estenose da Valva Mitral.

 

INTRODUÇÃO

No Brasil, a estenose mitral é a lesão valvular mais comum na gestação, sendo a doença cardíaca reumática a sua principal causa, seguida por doenças cardíacas congênitas, artrite reumatoide, lúpus e síndrome carcinoide.1 Aproximadamente 90% de todas parturientes com doença cardíaca reumática têm estenose mitral como lesão predominante.1 Embora a estenose mitral seja frequentemente acompanhada por algum grau de regurgitação, a morbimortalidade relacionada à gestação é usualmente ligada às consequências da estenose.2

A área normal da válvula mitral varia entre 4 e 6 cm2 e a gravidade da estenose mitral é classificada de acordo com a área valvar (Tabela 1).1-3 Pacientes usualmente desenvolvem sintomas quando o orifício valvar torna-se inferior a 2 cm2.2 A gravidade da estenose mitral avaliada pela medida da área valvar pelo ecodoppler é um importante preditor de edema pulmonar.1 Esta técnica, no entanto, tende a superestimar a área valvar e subestimar a gravidade da estenose.1,2

 

 

FISIOPATOLOGIA

A estenose mitral pode produzir repercussões hemodinâmicas importantes, por dificultar o esvaziamento do átrio esquerdo e o enchimento do ventrículo esquerdo (Figura 1).2 Como resultado da lesão, pode ocorrer elevação da pressão atrial esquerda, dilatação do átrio esquerdo e aumento da pressão arterial pulmonar com aumento reativo da resistência vascular pulmonar.2 Tais alterações predispõem à formação de trombos murais intra-atriais, fibrilação atrial, dispneia, hemoptise, dor torácica e edema pulmonar.2 A incidência de fibrilação atrial em gestantes portadoras de estenose mitral é de 30 a 70% e a minoria das pacientes com estenose moderada a grave que permanecem com ritmo sinusal possui um átrio pequeno, fibrótico e hipertensão pulmonar secundária.1

 


Figura 1 - Fisiopatologia da estenose mitral.

 

A progressão da doença pode levar à hipertrofia ventricular direita, seguida de insuficiência tricúspide e falência do ventrículo direito.2 O prejuízo ao enchimento ventricular esquerdo leva à redução do volume sistólico e do débito cardíaco.2

Após um episódio agudo de febre reumática, a doença progride lentamente por 20 a 30 anos e a área valvar decresce aproximadamente 0,09 a 0,17 cm2/ano.1,2 As alterações fisiológicas da gestação podem tornar manifesta uma estenose mitral até então assintomática e em aproximadamente 25% das mulheres com estenose mitral os sintomas iniciam durante a gravidez.2 A história natural da estenose mitral na gravidez envolve significativa taxa de complicações, tanto maternas quanto fetais. A incidência de complicações está relacionada à gravidade da estenose, sendo 67% para os casos graves, 38% para lesão moderada e 26% para leve.2,3 A maioria das pacientes com estenose moderada a grave mostra piora de uma ou duas classes funcionais durante a gestação.1 Em pacientes com classes funcionais III e IV a mortalidade materna é estimada em quase 7%, sendo muito baixa (<1%) em pacientes assintomáticas.1 Na classe funcional IV, a mortalidade fetal pode atingir até 30%.1 Em relação ao feto, há aumento nas taxas de prematuridade, retardo de crescimento fetal e baixo peso ao nascimento.

 


Figura 2 - Alterações fisiológicas da gestação vs. estenose mitral.

 

ABORDAGEM TERAPÊUTICA

Na maioria dos casos de estenose mitral, o tratamento clínico é suficiente.3 A abordagem é direcionada para a redução da frequência cardíaca e diminuição da pressão do átrio esquerdo a partir da restrição de atividade física, redução na ingesta de sal e uso de beta-bloqueadores e de diuréticos (estes últimos de forma criteriosa, para evitar hipovolemia e redução da perfusão uteroplacentária).1 A fibrilação atrial está associada a alto risco de complicações maternas e requer tratamento agressivo. A perda da sístole atrial associada ao aumento da frequência ventricular resulta em piora do débito cardíaco e da congestão pulmonar. Nos casos agudos, caso não haja resposta ao tratamento farmacológico, a cardioversão está indicada. Cerca de 80% dos casos de embolização sistêmica ocorrem em pacientes com fibrilação atrial, indicando, portanto, o uso de anticoagulação na presença desta arritmia.3,4 Alguns autores sugerem a anticoagulação profilática mesmo em pacientes com estenose grave e aumento do átrio esquerdo não associado à fibrilação.2,4

Nos casos de estenose grave com classe funcional III ou IV, outras medidas podem ser necessárias, incluindo desde reparo valvular (cirúrgico ou percutâneo) até a troca valvar.1 O índice da válvula mitral, obtido pela ecocardiografia, avalia a mobilidade, o espessamento, a calcificação do folheto e o espessamento subvalvular e pode ser usado para predizer quais pacientes se beneficiam de valvuloplastia percutânea com balão e quais requerem cirurgia para valvuloplastia ou troca mitral.1 Intervenções cirúrgicas devem preferencialmente ser realizadas antes do planejamento da gravidez.1-3

A valvuloplastia percutânea por balão tem se mostrado segura durante a gravidez, resultando em significativo aumento da área valvar, geralmente acima de 2.0 cm2, com os benefícios mantidos por vários anos.1 A técnica é recomendada quando sintomas estão presentes e em pacientes assintomáticas nos casos de estenose moderada a grave, com pressões pulmonares elevadas no repouso ou início recente de fibrilação atrial. O ideal é que seja realizada entre a 13ª e a 28ª semanas de gravidez, para reduzir risco de abortamento e parto prematuro.1,2 A anatomia desfavorável e a associação de regurgitação mitral importante ou trombo atrial contraindicam a técnica.1 Essas situações impõem a cirurgia de troca valvar.1

O reparo cirúrgico (comissurotomia) e a troca da valva mitral, quando indicados, devem ser idealmente realizados no período preconcepção.1-3 Durante a gestação estão indicados apenas nos casos de estenose grave refratária aos medicamentos e naquelas situações em que o acompanhamento médico ideal estiver impossibilitado.1 Quando a troca valvar é indicada, a seleção e o tipo de prótese devem ser baseados no seu perfil hemodinâmico, durabilidade e na necessidade de anticoagulação, sendo mais comum o uso de próteses biológicas.1,2

 

VIA DE PARTO: ABORDAGEM ANESTÉSICA

A via de parto é de indicação obstétrica, não havendo contraindicação ao parto vaginal.1 A estenose mitral não afeta a abordagem ao primeiro estágio do trabalho de parto, sendo a analgesia, no entanto, essencial, por impedir o aumento da pressão arterial pulmonar secundário à dor.1-3 Durante o segundo estágio, a manobra de Valsalva associada aos puxos maternos pode resultar em aumentos indesejáveis e agudos do retorno venoso, sendo, desta forma, importante o uso de fórceps de alívio.1-3

Nas gestantes portadoras de estenose mitral usualmente está indicado o parto por via vaginal, sob analgesia neuroaxial e com a instrumentação da terceira fase, a fim de diminuir os esforços associados ao período expulsivo.

A monitorização invasiva da pressão arterial deve ser empregada em todas as pacientes sintomáticas ou com área valvar < 1,5 cm2 e deve ser mantida por várias horas no pós-parto imediato.1 Nas pacientes portadoras de estenose grave e hipertensão pulmonar grave deve ser considerada a monitorização invasiva da pressão arterial pulmonar.5,6

A antibioticoprofilaxia contra endocardite bacteriana não é recomendada para o parto vaginal ou cesariana de acordo com as novas diretrizes, considerando lesão valvar não corrigida e ausência de história prévia de endocardite.1,3,7

Tendo como base os aspectos discutidos anteriormente, a anestesia/analgesia em gestantes portadoras de estenose mitral deve observar as metas propostas na Tabela 2 e as técnicas anestésicas sugeridas estão listadas na Tabela 3.

 

 

 

 

A profilaxia para atonia uterina com ocitocina, metilergonovina e prostaglandina F2α deve ser feita de forma cuidadosa já que estas drogas podem afetar a resistência vascular periférica e pulmonar.2

O parto, clampagem do cordão umbilical e dequitação placentária causam elevação importante e aguda no retorno venoso e débito cardíaco (pela auto-hemotransfusão secundária à involução uterina, exclusão da circulação placentária e fim da compressão aorto-cava). Desse modo, o período pós-parto imediato acarreta risco importante de descompensação aguda com congestão pulmonar.2 É fundamental manter vigilância e monitorização intensivas nas primeiras horas após o parto, sendo indicado CTI pós-operatório a todas as pacientes sintomáticas ou portadoras de estenose moderada ou grave.2

Gostaríamos de convidá-lo a testar os seus conhecimentos após a leitura deste artigo. Seguem abaixo cinco questões referentes ao tema abordado e o gabarito encontra-se ao final.

1. A causa mais comum de estenose mitral em gestantes é:

a) doença cardíaca reumática
b) valvulopatia congênita
c) lúpus eritematoso sistêmico
d) artrite reumatoide

2. Sobre a área valvar mitral é correto afirmar que:

a) é adequada quando entre 4 e 6 cm2
b) caracteriza estenose moderada quando maior que 1,5 cm2
c) geralmente está associada a sintomas quando menor que 4 cm2
d) caracteriza estenose grave quando menor ou igual a 0,5 cm2

3. Sobre a estenose mitral em gestantes, é incorreto afirmar que:

a) Em aproximadamente 25% das mulheres os sintomas iniciam durante a gravidez
b) A incidência de complicações maternas está associada à gravidade da estenose, sendo em torno de 60-70% nas gestantes portadoras de lesões graves
c) Em pacientes com classes funcionais III e IV a mortalidade materna é estimada em quase 7%, sendo <1% em pacientes com classe funcional I
d) Em relação ao feto, há aumento nas taxas de prematuridade, retardo de crescimento fetal e baixo peso ao nascimento, sendo a mortalidade fetal, no entanto, baixa, atingindo 5% em pacientes com classe funcional IV.

4. Sobre a abordagem terapêutica nas gestantes portadoras de estenose mitral, é incorreto afirmar que:

a) O tratamento clínico é suficiente na maioria dos casos e envolve restrição de atividade física, redução na ingesta de sal e uso de beta-bloqueadores e de diuréticos
b) A fibrilação atrial pode ocorrer em virtude do aumento do átrio esquerdo e é, em geral, bem tolerada, sem necessidade de abordagem terapêutica pelos riscos fetais envolvidos no uso de medicamentos e cardioversão
c) Intervenções cirúrgicas devem preferencialmente ser realizadas antes do planejamento da gravidez
d) A valvuloplastia percutânea por balão tem se mostrado segura durante a gravidez, devendo ser realizada entre a 13ª e a 28ª semanas, para reduzir risco de abortamento e parto prematuros

5. Sobre a abordagem anestésica na gestante portadora de estenose mitral, é incorreto afirmar que:

a) A monitorização invasiva da pressão arterial deve ser empregada em todas as pacientes sintomáticas ou com área valvar < 1,5 cm2
b) A efedrina é o vasopressor de escolha para o tratamento da hipotensão arterial resultante do bloqueio neuroaxial
c) A raquianestesia em dose única para cesariana deve ser evitada nas pacientes sintomáticas ou portadoras de lesões moderadas e graves
d) A profilaxia para atonia uterina com ocitocina, metilergonovina e prostaglandina F2α deve ser feita de forma cuidadosa, já que estas drogas podem afetar a resistência vascular periférica e pulmonar.

 

GABARITO

1) A
2) A
3) D
4) B
5) B

 

REFERÊNCIAS

1. Moreira WR, Andrade LC. Anestesia para gestante cardiopata. Rev Med Minas Gerais. 2009;19(4 Supl 1):S21-S62.

2. Harnett M, Tsen L C. Cardiovascular disease. In: Chestnut DH, Polley LS, Tsen LC, Wong CA. Obstetric Anesthesia: principles and practice. 4th ed. New York: Mosby Elsevier, 2009. p 892-4.

3. Klein LL, Galan HL. Cardiac disease in pregnancy. Obstet Gynecol Clin North Am. 2004;31:429-59.

4. Carvalho B, Jackson E. Structural Heart Disease in Pregnant Women. In: Gambling DR, Douglas MJ, McKay RSF. Obstetric Anesthesia and Uncommon Disorders. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press; 2008. p 18-20.

5. Gomar C, Errando CL. Neuroaxial anaesthesia in obstetrical patients with cardiac disease. Curr Opin Anaesthesiol. 2005;18:507-12.

6. Ayoub CM, Jalbout MI, Baraka AS. The pregnant cardiac woman. Current Curr Opin Anaesthesiol. 2002;15:285-91.

7. European Society of Gynecology (ESG); Association for European Paediatric Cardiology (AEPC); German Society for Gender Medicine (DGesGM), Regitz-Zagrosek V, Blomstrom Lundqvist C, Borghi C, Cifkova R, Ferreira R, et al. ESC Committee for Practice Guidelines.ESC Guidelines on the management of cardiovascular diseases during pregnancy: the Task Force on the Management of Cardiovascular Diseases during Pregnancy of the European Society of Cardiology (ESC). Eur Heart J. 2011 Dec; 32(24):3147-97.