RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 24. (Suppl.3) DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.2014S019

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Relato de Caso

Choque neurogênico e posicionamento após trauma raquimedular

Neurogenic shock and positioning after spinal cord injury

Ana Paula Almada1; Michelle Nacur Lorentz2; Bruna Silviano Brandão Vianna3

1. Médico Especializando em Anestesiologia - ME3 do Centro de Ensino e Treinamento - CET da Fundação Hospitalar de Minas Gerais-Fhemig - FHEMIG, Hospital Julia Kubstchek - HJK. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Médico. Título Superior em Anestesiologia - TSA, Sociedade Brasileira de Anestesiologia - SBA. Anestesiologista do Biocor Instituto. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Médico Anestesiologista do Biocor Instituto. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Michelle Nacur Lorentz
E-mail: mnacur@yahoo.com.br

Instituição: Biocor Instituto BeloHorizonte, MG - Brasil

Resumo

A lesão raquimedular constitui consequência importante no cenário do trauma no Brasil. Sua incidência é desconhecida, porém estima-se que ocorram a cada ano no país mais de 10.000 novos casos.1 É importante que o anestesiologista esteja atento a essa enfermidade, incluindo não só o manejo anestésico como também suas inúmeras complicaçoes. Trata-se de paciente de 31 anos, sexo feminino, vítima de trauma raquimedular (TRM) após acidente automobilístico (fratura de T2-T4 e fratura-luxação de T6-T7), além de fratura de arcos costais e de esterno e hemotórax bilateral drenado no atendimento inicial, sem evidências de contusão pulmonar. Admitida no centro cirúrgico para realização de artrodese de coluna torácica via posterior no quarto dia pós-trauma. Após monitorização e indução anestésica, a paciente foi posicionada em decúbito ventral e apresentou queda brusca e acentuada da pressão arterial média (PAM), não responsiva a doses crescentes de vasopressornoradrenalina. Optou-se pelo retorno da paciente para decúbito dorsal, com normalizacão do quadro hipotensivo após poucos minutos. O procedimento foi então suspenso, a paciente encaminhada à UTI e posteriormente realizado sem intercorrências após três semanas. Conclui-se que o conhecimento da história natural e evolução do TRM é muito importante para o manejo perioperatório, devendo ser escolhido o melhor momento para a intervenção cirúrgica. O diagnóstico diferencial entre as várias possíveis etiologias de choque que podem se apresentar nesses casos é fundamental para a boa evolução.

Palavras-chave: Choque; Choque Traumático; Traumatismos da Medula Espinal.

 

INTRODUÇÃO

O traumatismo raquimedular (TRM) é um trauma extremamente grave e com consequências devastadoras. Apresenta alta morbidade e mortalidade e tem incidência anual de aproximadamente 40 casos por milhão nos Estados Unidos, representando em torno de 12 mil novos casos por anos. A maioria dos pacientes é do sexo masculino e a idade média atingida é em torno de 40 anos.1 Acidentes automobilísticos são responsáveis por 42,1% dos casos, seguidos de quedas (26,7%), atos de violência (15,1%) e atividades esportivas (7,6%). A consequência mais comum do TRM com lesão espinhal é a tetraplegia incompleta (30,1%), seguido de paraplegia completa (25,6%), tetraplegia completa (20.4%) e paraplegia incompleta (18,5%). Fraturas na coluna representam 3 a 6% de todos os traumas.2 Fraturas na coluna torácica e lombar são mais comuns que na coluna cervical após trauma espinhal; os danos cervicais são mais comuns após trauma na cabeça e pescoço.2

 

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 31 anos, 70 kg, previamente hígida. Vítima de acidente automobilístico, com relato de ejeção do veículo, resultando em TRM, fratura de processos espinhosos de T2 a T4, além de fratura-luxação grave de T6-T7. Além disso, apresentava fratura de arcos costais (5º, 6º e 7º à esquerda) e fratura de esterno, sem movimento paradoxal, característico de tórax instável. Não havia imagem de Raios-X de tórax ou de tomografia computadorizada de tórax que sugerisse contusão pulmonar. No dia do trauma apresentava hemotórax bilateral, mas no momento do procedimento cirúrgico já se encontrava sem os drenos. Realizou eletrocardiograma (ECG), que se encontrava sem alteraçoes, e ecocardiograma, que revelou derrame pericardicolaminar, sem outras alteraçoes, com FEVE=70%. Permaneceu na unidade de tratamento intensiva (UTI) monitorizada, devido à dificuldade ventilatória estabelecida. Após o quarto-ia de trauma, deu entrada no centro cirúrgico do Hospital João XXIII, em Belo Horizonte-MG, com a programação de ser submetida à artrodese de coluna torácica em decúbito ventral.

A admissão, encontrava-se paraplégica, orientada, queixando-se de dispneia intensa, usando máscara facial de oxigênio (O2) com fluxo de 6 L/min, apresentando frequência respiratória de 30 irpm, com exames laboratoriais (gasometria, ionograma, função renal e glicemia) dentro dos limites da normalidade e hemograma revelando anemia com hemoglobina (Hb) de 8,5 mg/dL.

Foi monitorizada com ECG, oximetria de pulso, medida da pressão intra-arterial (PIA) em artéria radial esquerda, cujos parâmetros revelavam: taquicardia sinusal com aproximadamente 120 bpm, PIA de 110/60 mmHg e saturação de O2 (SpO2) de 97%.

Realizaram-se pré-oxigenação e indução anestésica com propofol (150 mg), fentanil (250 mcg) e cisatracúrio (10 mg). A seguir, foi feita intubação orotraqueal (IOT) com tubo nº 8,0 sob laringoscopia direta, com imobilização cervical manual pelo próprio neurocirurgião. Logo após a IOT, foi puncionado acesso venoso central em veia subclávia direita pela técnica de Seldinger e inserido cateter de duplo-lúmen.

Após a IOT, a ventilação foi mantida com a modalidade de pressão controlada de 10 mmHg, mantendo volume de 500 mL, frequência respiratória programada de 10 irpm e PEEP de 5 mmHg, resultando em ETCO2 de aproximadamente 30 mmHg. Para manutenção anestésica, iniciou-se a administração de sevoflurano a 1,5%. Após esses procedimentos houve queda da pressão arterial média (PAM) em torno de 15%. A paciente foi então movimentada em bloco e posicionada em decúbito ventral. Após alguns minutos, ocorreu queda brusca e acentuada da PAM. Iniciada infusão de noradrenalina em doses progressivas de 0,1 mcg/kg/min e após 10 minutos a taxa de infusão chegou a 2 mcg/kg/min, sem resposta, mantendo PAM de 40 mmHg. Nesse momento o procedimento cirúrgico foi suspenso e a paciente foi colocada novamente em decúbito dorsal. Cerca de cinco minutos após a mudança de decúbito, a administração de noradrenalina foi reduzida progressivamente e, após 10 minutos, já era possível retirar a administração de noradrenalina, pois PAM retornou aos níveis pressóricos anteriores. A paciente foi encaminhada à UTI, intubada e sedada.

Após três semanas, retornou ao bloco cirúrgico, estava traquestomizada, em ventilação mecânica, mantinha a paraplegia anteriormente apresentada, sem fármacos vasoativos e, dessa vez, foi possível a realização da artrodese sem sérias complicaçoes.

 

DISCUSSÃO

Pacientes com TRM frequentemente se apresentam para a cirurgia de estabilização da coluna durante o período de choque neurogênico ou espinhal. Este tem duração variável, com início quase que imediatamente após o acidente, podendo durar até três semanas. A simpatectomia fisiológica, também Chanda de disautonomia, ocorre abaixo do nível da lesão, o que pode levar a hipotensão secundária à vasoplegia arterial e venosa que se segue. Bradicardia também acontece se a lesão é no nível das fibras cardíacas simpáticas (acima de T2-T4).3

No caso relatado registraram-se hipotensão grave e taquicardia, muito provavelmente associadas à posição prona, o que descaracteriza o choque puramente neurogênico. A partir daí, deve-se fazer o diagnóstico diferencial das possíveis causas de choque que se manifesta com taquicardia e hipotensão na normovolemia e que possa ser desencadeado pela mudança de posição do paciente.

Um desses seria o choque obstrutivo, que é causado por obstrução aguda ao fluxo circulatório. Exemplos relacionados ao trauma incluem a obstrução do débito cardíaco do ventrículo direito por tromboembolismo pulmonar (TEP), tamponamento cardíaco e pneumotórax hipertensivo4. Inicialmente, a hipótese de choque obstrutivo por pneumotórax hipertensivo ou TEP (complicação comum em pacientes com TRM) poderia justificar a instabilidade apresentada pela paciente após a sua colocação em decúbito ventral. Entretanto, os sintomas não melhorariam simplesmente com o retorno ao decúbito dorsal.

O choque cardiogênico consiste em outra modalidade de choque que pode se caracterizar com normovolemia, taquicardia e hipotensão. Não é a primera causa de choque nos casos de trauma, mas pode ocorrer em casos de contusão cardíaca e infarto do miocárdio (IAM), resultante de estresse pela injúria do trauma.4

Nesse caso, se a principal hipótese para o choque apresentado tivesse origem cardíaca, a manifestação provavelmente já teria tido início antes da admissão no bloco cirúrgico, tendo em vista que a paciente se encontrava no quarto dia após o trauma. Além disso, mesmo que se atribuísse a origem do choque a um IAM no momento da indução anestésica, o desfecho do quadro de retorno da estabilidade hemodinâmica não seria capaz de justificá-lo.

Assim, após se considerarem as etiologias possíveis para a instabilidade verificada, não se pode deixar de considerar as implicaçoes da posição prona na fisiologia cardiovascular. Quando se coloca o paciente na posição prona, há diminuição do índice cardíaco, fato confirmado por vários estudos.5 Essa diminuição pode ser atribuída ao aumento da pressão intratorácica em decorrência da posição, causando diminuição no enchimento atrial e também da complacência do ventrículo esquerdo, o que contribui ainda mais para a redução do débito cardíaco.

Na tentativa de compensar essa diminuição, que pode variar de 20 a 24% de acordo com a literatura disponível, constata-se aumento na atividade simpática via reflexo. baroceptor.5

A paciente em questão já tinha atividade simpática prejudicada em decorrência do nível da lesão, o que justificaria a não compensação na manutenção da PAM.

Obstrução da veia cava inferior também pode contribuir para a redução do débito cardíaco de alguns pacientes na posição prona. É também claro que essa obstrução contribui para o sangramento durante cirurgias de coluna, pois o retorno venoso para o coração segue uma rota alternativa (usualmente o plexo venoso de Batson).5

Dessa forma, a hipótese que melhor justificaria o desfecho do presente caso seria a associação de diminuição do débito cardíaco em decorrência da posição prona com a incapacidade de resposta simpática na tentativa de manutenção do débito cardíaco e da pressão arterial. O retorno da paciente ao decúbito dorsal fez reduzir a pressão intratorácica e a pressão sobre a veia cava inferior, fazendo com que os níveis pressóricos retornassem aos valores habituais.

 

CONCLUSÃO

O conhecimento da história natural e evolução do TRM é muito importante para o manejo perioperatório, devendo ser escolhido o melhor momento para a intervenção cirúrgica. O diagnóstico diferencial entre as várias possíveis etiologias de choque que podem se detectar nesses casos é fundamental para a boa evolução. É importante lembrar que as várias alteraçoes fisiológicas decorrentes da posição prona podem não ser bem toleradas pelo paciente na vigência de TRM devido à disautonomia.

A incidência de choque neurogênico em paciente com TRM parece ser baixa.6 Entretanto, isso não exclui a possibilidade de o paciente ter dificuldade em apresentar resposta compensatória simpática em situaçoes em que haja diminuição do débito cardíaco. Logo, todo paciente com TRM, mesmo que não tenha desenvolvido choque neurogênico com tempo inferior a três semanas, e que for submetido a procedimento cirúrgico em decúbito ventral deve ser avaliado quanto à possibilidade dessa disautonomia para evitar sérias complicaçoes.

 

REFERÊNCIAS

1. Campos MF, Ribeiro AT, Listik S, Pereira CAB, Andrade Sobrinho J, Rapoport A. Epidemiologia do traumatismo da coluna vertebral. Rev Col Bras Cir. 2008;35:88-93.

2. Looby S, Flanders A. Spine trauma. Radiol Clin N Am. 2011;49:129-63.

3. Raw DA, Beattie JK, Hunter JM. Anaesthesia for spinal surgery in adults. Br J Anaesth. 2003,91:886-904.

4. Cocchi MN, Kimlin E, Walsh M, Donnino MW. Identification and resuscitation of the trauma patient in shock. Emerg Med Clin N Am. 2007;25:623-42.

5. Edgcombe H, Carter K, Yarrow S. Anaesthesia in the prone position. Br J Anaesth. 2008;100:165-83.

6. Guly HR. The incidence of neurogenic shock in patients with isolated spinal cord injury in the emergency department. Resuscitation. 2008;76:57-62.