RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. (4 Suppl.1)

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Artigos de Revisão

Trombose de veia porta em crianças e adolescentes: revisão de literatura

Portal vein thrombosis in children and adolescents: literature review

Priscila Menezes Ferri1; Alexandre Rodrigues Ferreira2; Eleonora Druve Tavares Fagundes2; Shinfay Maximilian Liu3; Nikole Nascimento de Albuquerque4; Flávia Carvalho Botelho4; Maria do Carmo Barros de Melo5; Francisco José Penna6

1. Pediatra. Especialista em Gastroenterologia Pediátrica. Mestre em Pediatria pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Professor(a) Adjunto do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Médico. Residente de Patologia Clínica e Medicina Laboratorial do Hospital das Clínicas da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. Acadêmica do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
5. Professora Associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil
6. Professor Titular do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Rua São Romão, 197/202 Bairro: Santo Antônio
Belo Horizonte, MG - Brasil CEP: 30330-120
Email: pmferri.liu@gmail.com

Instituição: Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte - MG, Brasil

Resumo

Trombose de veia porta (TVPO) refere-se à obstrução total ou parcial do fluxo sanguíneo nessa localização, secundária à formação de trombos. Essa entidade se mostra importante na faixa etária pediátrica, por ser causa importante de hipertensão porta, com elevadas taxas de morbidade devido à sua principal complicação - a hemorragia digestiva alta (HDA). Aproximadamente 79% das crianças com diagnóstico de trombose de veia porta apresentarão ao menos um episódio de HDA. A etiologia da trombose é variada e, na maioria dos casos, há associação de fatores locais e sistêmicos, sendo o cateterismo umbilical o principal fator etiológico encontrado em crianças. A importância dos distúrbios de coagulação entre esses fatores está se tornando mais acentuada à medida que novos estudos e métodos diagnósticos são disponibilizados. O tratamento varia de acordo com a forma de apresentação - aguda ou crônica - e com a existência ou não de complicações associadas à TVPO. No quadro agudo a anticoagulação está indicada na maioria dos casos, enquanto no quadro crônico sua indicação acontece geralmente quando há trombofilias associadas. Na evolução crônica, o tratamento se direciona às complicações decorrentes da hipertensão porta secundária à TVPO.

Palavras-chave: Veia Porta; Trombose; Hipertensão Portal; Coagulação Sanguínea; Crianças; Fatores de Coagulação Sanguínea; Trombofilia.

 

INTRODUÇÃO

Trombose de veia porta (TVPO) refere-se à obstrução total ou parcial do fluxo sanguíneo nessa localização, secundária à formação de trombos. Estes podem se estender até o fígado, envolvendo vasos intra-hepáticos, ou alcançar veias esplênicas e/ou mesentéricas.1,2 O primeiro caso de trombose de veia porta foi descrito em 1868, por Balfour e Stewart3, em um paciente com esplenomegalia, ascite e varizes esofágicas. Nos últimos anos, nota-se aumento no número de diagnósticos, possivelmente pela maior disponibilidade de métodos propedêuticos, principalmente a ultrassonografia com doppler.2,4,5

A incidência na população geral é estimada em 1% após estudo realizado por Ogren et al.6 em cadáveres. Essa entidade se mostra importante na faixa etária pediátrica, por ser causa importante de hipertensão porta, com elevadas taxas de morbidade, devido à sua principal complicação - a hemorragia digestiva alta. Aproximadamente 79% das crianças com diagnóstico de trombose de veia porta apresentarão ao menos um episódio de HDA durante suas vidas.7

 

TROMBOSE DE VEIA PORTA E HIPERTENSÃO PORTA

A veia porta é formada pela junção da veia mesentérica superior e veia esplênica, com trajeto de 5 a 8 cm até o hilo hepático (porta hepatis), dividindo-se, então, em ramos direito e esquerdo.7 A direção do fluxo sanguíneo no sistema porta é determinada pelo gradiente de pressão. Dessa forma, a obstrução da veia porta por um trombo pode gerar aumento do fluxo ou sua inversão nas conexões entre as tributárias da porta e as veias sistêmicas, sendo essa alteração responsável pela maior parte das manifestações clínicas. Os sítios venosos que podem estar envolvidos são: veia mesentérica inferior e veia cava inferior e suas tributárias; veias gástricas e veia cava superior e suas tributárias; veias retroperitoneais e sistemas cava e ázigos; veias paraumbilicais e subcutâneas.7

A manifestação clínica varia com a extensão e a velocidade da formação do trombo, podendo ser aguda ou crônica.1,2,8 Na evolução crônica, a hipertensão porta é definida por pressão venosa acima de 10 mmHg e é responsável pela maior parte das complicações observadas na TVPO.7,8 Orllof et al.9 estudaram 200 adultos jovens e crianças, determinando o local da obstrução, e observaram que 67% deles apresentavam obstrução exclusiva da veia porta, enquanto 28% tinham comprometimento das veias porta e esplênica e em 5% a trombose acometia as veias porta e mesentérica superior.

 

FISIOPATOLOGIA

A obstrução da veia porta reduz até dois terços do fluxo sanguíneo hepático. Interessantemente, enquanto a obstrução aguda pode resultar em insuficiência hepática grave e até óbito, a obstrução com evolução crônica é geralmente bem tolerada pelos pacientes, que permanecem assintomáticos por longos períodos.2

Essa condição pode ser explicada pela existência de alguns mecanismos compensatórios, que tentam manter o fluxo sanguíneo hepático. O primeiro mecanismo é a vasodilatação reflexa imediata da artéria hepática, que também é observada durante procedimentos cirúrgicos nos quais a veia hepática é clampada.2,10 O segundo mecanismo decorre da formação de vasos colaterais que envolvem e ultrapassam a região trombosada, formando, após aproximadamente três a cinco semanas, uma neoformação venosa denominada "cavernoma" ou "transformação cavernomatosa".2 Essas alterações podem ainda ser insuficientes para aliviar a pressão no sistema porta, o que pode levar então à formação dos fluxos hepatofugos através dos shunts espontâneos.11 Estes últimos podem se tornar proeminentes, apresentar manifestações clínicas e até necessitar de correção cirúrgica.7

Além desses mecanismos compensatórios, o fígado consegue manter funcionamento adequado por certo tempo, mesmo com fluxo sanguíneo reduzido. Essa redução estimula a apoptose de alguns hepatócitos em regiões com menos fluxo de forma gradual e aumenta a atividade mitótica em regiões mais bem irrigadas. A perda gradual de hepatócitos pode resultar na ocorrência de quadros leves a moderados de insuficiência hepática nos estágios avançados da doença.12

 

ETIOLOGIA

Vários fatores causais são possíveis na trombose de veia porta. A avaliação da etiologia da trombose vem sendo melhorada paralelamente à evolução da propedêutica médica disponível, incluindo o perfil genético.2

Em estudos no período de 1979 a 1997, até metade dos pacientes permanecia sem esclarecimento da etiologia da TVPO, o que vem sendo reduzido atualmente com uma causa provável sendo descoberta em até 80% dos pacientes adultos rigorosamente investigados.10 A teoria atual é de que haja associação de fatores pró-trombóticos e fatores locais desencadeantes.2,7,8,10 As causas de TVPO podem ser agrupadas em três categorias: a) lesão direta da veia porta, com consequente formação de trombo; b) malformação vascular, que inclui estenose da veia porta ou até sua atresia; c) estados de hipercoagulabilidade, que favorecem a formação de trombos.2,10 Os que não se enquadram nesses grupos são denominados de TVPO idiopática (causa não identificada).

Nas crianças e adolescentes, as principais causas detectadas são a lesão direta da veia porta (onfalite e cateterismo da veia umbilical) e sepse com foco abdominal.7 Outras causas possíveis são trauma abdominal, trauma cirúrgico, cistos e tumores no porta hepatis, sepse neonatal, desidratação, malformações cardiovasculares e exsanguineotransfusão.2,7,10 Apesar disso, a maioria dos casos na infância ainda permanece como idiopática.13

Mais importância tem sido dada atualmente aos distúrbios de coagulação nessa faixa etária, seja como possível causa ou fator predisponente. Ainda são poucos os estudos disponíveis na literatura avaliando casuísticas pediátricas e trombofilias hereditárias ou adquiridas em crianças, com resultados controversos.4 No entanto, diante desse fato e da característica multifatorial da TVPO também em crianças, é indicada a pesquisa dessas alterações quando houver suspeita clínica ou história familiar de trombose.14

Cateterismo umbilical

Cateterismo umbilical tem sido cada vez mais utilizado à medida que o suporte de vida neonatal tem avançado, permitindo sobrevida de recém-nascidos pré-termos até mesmo extremos. É visto como fator de risco para a TVPO, já comprovado em estudos, algumas vezes apresentando até mesmo resolução espontânea com desaparecimento do trombo.5 Características do paciente que podem aumentar as chances de TVPO são o baixo peso ao nascer (<1,5 kg), estados de choque, distúrbios da coagulação e hipóxia.8,9 Fatores de risco relacionados ao cateterismo são a introdução tardia, tempo de permanência prolongado (acima de três dias), posição inadequada (subdiafragmática ou periférica), trauma na introdução do cateter e tipo de soluções infundidas (cálcio/hemoconcentrados).5,11 Há recomendação de que, em casos suspeitos, o cateter seja retirado o mais rápido possível e o recém-nascido acompanhado do ponto de vista clínico e radiológico (US abdome), diante da possibilidade de regressão espontânea.5

Sepse de foco abdominal

Estudos retrospectivos demonstraram associação de quadros de sepse intra-abdominal e TVPO em até 40% dos pacientes, principalmente em recém-nascidos submetidos a cateterismo umbilical.15 Não se sabe, nestes casos, a contribuição de cada um dos fatores, no entanto, há também estudos comprovando trombose de veia porta em pacientes com sepse abdominal mesmo sem cateterismo umbilical.10,11

Trombofilias

A trombofilia pode ser definida como um distúrbio do equilíbrio da hemostasia a favor da formação do trombo. Pode ser hereditária ou adquirida.2 Ambas já foram descritas como possíveis causas de TVPO em crianças e adolescentes, sendo necessários mais estudos avaliando tal associação.4,14 As trombofilias hereditárias relacionadas à coagulação são representadas pela mutação do gene da protrombina, mutação do fator V de Leiden, deficiências primárias das proteínas inibidoras da coagulação - proteínas C, S e antitrombina III - e pela mutação da metilenotetrahidrofolato redutase (MTHFR) associada à hiper-homocisteinemia. Por outro lado, as trombofilias adquiridas são representadas pelas doenças sistêmicas como a síndrome do anticorpo antifosfolípide, hemoglubinúria paroxística noturna e neoplasias mieloproliferativas. Este último grupo engloba a policitemia vera, trombocitose essencial e a mielofibrose idiopática e tem sido encontrada, em até 30% dos casos de TVPO sem doença hepática associada, em adultos no Ocidente.16 A descoberta recente da mutação da Janus Kinase 2 (V617F-JAK2), presente em 40 a 95% dos pacientes com doenças mieloproliferativas, facilitou o diagnóstico.17

 

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS

A trombose de veia porta pode se apresentar em qualquer idade, desde a infância até a vida adulta. A manifestação clínica pode variar desde ausência de sintomas até hemorragia digestiva alta de grande volume.2,4,7 Há duas categorias de apresentação: aguda e crônica, sendo diferenciadas pelas características clínicas do paciente e os achados radiológicos.18

O quadro agudo é pouco comum em crianças e se apresenta como dor abdominal aguda, náuseas, febre e hematoquezia, geralmente devido à ocorrência de trombose mesentérica e isquemia intestinal.1,19 Ao exame físico o paciente pode apresentar distensão abdominal e irritação peritoneal caso exista infarto intestinal com perfuração.19 Alguns pacientes podem também apresentar ascite, que geralmente é transitória.10 A proporção de pacientes com trombose aguda que posteriormente desenvolvem complicações relacionadas à trombose crônica não é conhecida.

As manifestações iniciais mais comuns do quadro crônico em adultos e crianças são a hemorragia digestiva alta ou esplenomegalia em exame clínico de rotina. Melena isolada também pode ocorrer, mas é menos frequente. Outras manifestações incluem dor abdominal, fadiga, anorexia, perda de peso e complicações relacionadas ao hiperesplenismo (anemia, plaquetopenia e leucopenia).2,7,10 Ascite é rara quando não há doença hepática subjacente, ocorrendo com mais frequência em pacientes com longa evolução da doença e/ou após episódios de hemorragia digestiva alta.10,18

Ao exame físico podem-se notar esplenomegalia e palidez cutâneo-mucosa. Hepatomegalia não é comum caso não exista hepatopatia associada. Síndrome hepatopulmonar e encefalopatia hepática podem raramente ocorrer.4

 

COMPLICAÇÕES

Atraso do crescimento

Crianças com diagnóstico de trombose de veia porta podem apresentar déficit de crescimento.7,20 O mecanismo que leva a este quadro não está claro, porém existem duas hipóteses principais. A primeira é que a anemia crônica - secundária a perdas por sangramento e/ou hiperesplenismo -, a congestão venosa abdominal, com má-absorção secundária, e a distensão abdominal possam levar à redução da taxa de crescimento.7,20 A segunda hipótese fundamenta-se na redução do suprimento sanguíneo hepático, resultando em privação de hormônios hepatotróficos com consequente déficit no crescimento.20

Estudos sugerem que os cuidados pediátricos e o tratamento adequado de complicações como as varizes esofagogástricas poderiam assegurar bom crescimento a essas crianças.21 Apesar de poucas evidências, um fato que apoia tal hipótese é o aumento na velocidade de crescimento observado em crianças submetidas a shunts cirúrgicos.20 Kato et al.20 estudaram retrospectivamente o efeito do shunt portossistêmico no crescimento de 12 crianças, seis delas apresentando doença hepática associada, e registraram melhora no crescimento dessas crianças após o procedimento. Estudo mais recente não demonstrou alteração do crescimento.21

Hiperesplenismo

Ocorre na maioria dos casos crônicos.2,7,10 É evidenciado pela leucopenia e trombocitopenia em até 40 a 80% dos pacientes.4 As plaquetas têm sua função preservada. Pode evoluir para quadro grave de pancitopenia, sendo em alguns casos necessário shunt cirúrgico com ou sem esplenectomia para a melhora dessa alteração.2

Varizes esofagogástricas

Apesar das baixas taxas de mortalidade associadas a sangramento por varizes esofagogástricas, esta ainda é a principal complicação e forma de apresentação da trombose de veia porta. Contribui como importante fator de morbidade e causa de internações dos pacientes, sendo que cerca de 90 a 95% dos pacientes apresentam varizes de esôfago e 35 a 40%, varizes gástricas.2,10 Podem já estar presentes até um mês após a TVPO aguda, sendo importante o screening com endoscopia alta em todos os pacientes.1

O sangramento geralmente ocorre nos primeiros anos de vida e não parece diminuir com o avançar da idade. Adolescentes que não receberam tratamento adequado apresentam risco elevado de sangramento na segunda década de vida.22 A gravidade dos sangramentos por varizes esofagogástricas é menor em pacientes com trombose de veia porta sem doença hepática associada, em comparação aos cirróticos, assim como a gastropatia da hipertensão porta é menos frequente nos primeiros.19

Biliopatia portal

Alterações na via biliar extra-hepática podem ser encontradas em até 80% dos pacientes com evolução crônica da trombose de veia porta que apresentam a formação do cavernoma.23 Vários mecanismos foram sugeridos para explicar tais alterações, incluindo compressão da via biliar pelas varizes periportais, compressão pelo próprio cavernoma, fibrose e até isquemia.23 Pode haver, então, estenose e formação de cálculos em ductos biliares. Manifesta-se geralmente na idade adulta, tendo evolução silenciosa e progressiva, sendo detectada mais comumente após sua complicação mais comum: a cirrose biliar.23

 

DIAGNÓSTICO

O ultrassom com doppler é considerado eficaz, menos invasivo e menos dispendioso, por isso é o método de primeira escolha para a investigação.2,4,5,7,10 Sua sensibilidade e especificidade são, no entanto, examinador-dependentes. É o mais utilizado em pediatria, apresentando alta sensibilidade (94 a 100%) e especificidade (90 a 96%).4,7 Os achados podem ser trombo ecogênico no lúmen da veia porta, dilatação dos vasos próximos da região ocluída, colaterais e não identificação da veia porta.24 A neoformação vascular na região do trombo (cavernoma) ocorre nos casos crônicos.2,4,7,10

Tomografia computadorizada já não é um exame operador-dependente e se mostra mais específico no diagnóstico e é também menos sensível e mais invasivo quando comparado ao ultrassom com doppler.24 Pode fornecer informações sobre a condição dos vasos, avaliar a existência de nódulos hepáticos e mostrar a extensão do trombo.24 É muito pouco utilizada em crianças.

Outros métodos, como a ressonância magnética, esplenoportografia e portografia arterial, não são recomendados de rotina, por serem muito caros e/ou invasivos. Porém, podem auxiliar em casos de dúvida no diagnóstico.7

Avaliação da função hepática se mostra normal na maioria dos pacientes, exceto naqueles de evolução prolongada com alterações hepáticas secundárias e nos casos de biliopatia portal.7 Pode ocorrer redução de fatores de coagulação, ocasionando alteração do tempo de protrombina e atividade de protrombina, possivelmente devido ao maior consumo e menor produção destes.25 A biópsia hepática é normal na maioria das crianças sem cirrose associada.12

Todos os pacientes devem ser submetidos à endoscopia digestiva alta para avaliação de varizes esofagogástricas e programação de abordagem terapêutica, quando necessária.18

A pesquisa de fatores associados deve ser realizada em todos os pacientes, mesmo se algum fator local causal for encontrado, devido à natureza multifatorial da TVPO.1,8,14 Esta deve incluir pesquisa de trombofilias adquiridas ou hereditárias para que, se necessário, seja instituído tratamento adequado.14 No diagnóstico diferencial deve-se pensar em outras causas de esplenomegalia e pancitopenia, como doenças onco-hematológicas e infecto-parasitárias.7

 

TRATAMENTO

O tratamento da trombose de veia porta varia de acordo com o tempo de início do quadro (agudo ou crônico), apresentação clínica, fatores etiológicos associados e idade dos pacientes. Os objetivos do tratamento devem ser: a) reverter ou prevenir progressão da trombose do sistema porta e b) tratar as complicações já presentes, principalmente as varizes esofagogástricas e alterações biliares.8,10 Resolução espontânea acontece em poucos casos e em frequência mais baixa do que a observada nos pacientes que recebem tratamento.19

Quadros agudos

A anticoagulação é recomendada nos casos de trombose aguda com relatos de recanalização total ou parcial em até 80% dos pacientes.26 Quanto mais cedo for instituída a anticoagulação, melhor a resposta, com relatos de recanalização em até 69% dos pacientes quando iniciada na primeira semana após o diagnóstico, reduzindo para 25% dos pacientes com início na segunda semana.18,26 Não há aumento do risco de sangramentos segundo estudos com uso de anticoagulação e esse tratamento pode prevenir a ocorrência de isquemia mesentérica, a extensão da trombose e, consequentemente, a hipertensão porta.10,26 O tempo mínimo de tratamento indicado na maior parte dos estudos é de seis meses, devido ao risco de recorrência da trombose; e a heparina é o anticoagulante mais utilizado.10,18,26 Após duas a três semanas, esta pode ser substituída por antagonista de vitamina K, mantendo-se o RNI entre dois e três.1,26

Terapia trombolítica é outra opção, podendo ser utilizada de forma sistêmica através da artéria mesentérica superior, da veia porta ou por via trans-hepática.10,26 Não há estudos sobre quando a terapia trombolítica deve ser preferida à anticoagulação, mas há demonstrações da eficácia da primeira quando a terapia com heparina não obteve sucesso.27 Portanto, esse tratamento fica reservado aos pacientes com TVPO grave e sem resposta à anticoagulação.1

Naqueles pacientes em que seja encontrado distúrbio de coagulação com tendência à trombose ou fator local persistente que predisponha à trombose de veia porta, pode haver benefício da anticoagulação a longo prazo.10,18 São necessários estudos maiores para comprovação desse fato.

O quadro agudo é raro em crianças, mas pode ser verificado em recém-nascidos submetidos a cateterismo umbilical ou com lesão abdominal que leve à trombose de veia porta.5 Nestes casos, deve-se inicialmente avaliar o grau de acometimento do vaso. É necessário proceder à remoção do cateter umbilical (nos recém-nascidos) e iniciar terapia trombolítica ou anticoagulante sistêmico, com duração mínima de tratamento de seis meses.7 Se ocorrerem sintomas de isquemia intestinal, deve-se indicar tratamento cirúrgico a partir de remoção transjugular do trombo ou laparotomia com trombectomia.27

Quadros crônicos

O tratamento do quadro crônico envolve principalmente o controle das complicações existentes, já que não está bem estabelecido o uso da anticoagulação nesses pacientes.2,10,18,26 A principal indicação de anticoagulação são pacientes com diagnóstico de trombofilia ou história familiar importante de trombose.1,18

 

Hemorragia digestiva alta e varizes esofagogástricas

O manejo da hemorragia digestiva alta nas últimas duas décadas está sendo cada vez mais estudado e definido.10,18 É baseado, em grande parte, em estudos realizados em pacientes adultos com quadro de hipertensão porta e cirróticos de várias etiologias. O uso em crianças desse tratamento é ressaltado em poucos estudos existentes nessa faixa etária e nos estudos em adultos, necessitando-se de novas pesquisas. Pode ser dividido de acordo com a condição dos pacientes:

Pacientes com alto risco de sangramento, mas que nunca sangraram: profilaxia primária;

pacientes em vigência de sangramento agudo;

pacientes com varizes esôfago-gástricas e história prévia de hemorragia digestiva alta: profilaxia secundária.

Profilaxia primária

Beta-bloqueadores se mostraram eficazes em reduzir a ocorrência do primeiro episódio de sangramento em adultos com cirrose, assim como em estudo recente a ligadura elástica das varizes mostrou eficácia comparável ao uso destes, tornando obsoleta para este fim a escleroterapia, devido à alta incidência de complicações.4,10,18,28

O uso desse tratamento em crianças com trombose de veia porta como profilaxia primária é ainda controverso e sem consenso na literatura, devido à escassez de estudos em crianças e ao fato de que os estudos realizados em adultos tratam de pacientes com cirrose hepática. Não tem sido, portanto, rotineiramente recomendado. 7,28

Sangramento agudo

O tratamento do quadro agudo deve ser realizado o mais rápido possível. Os pacientes devem ser encaminhados ao hospital, onde se realizará a avaliação inicial com ressuscitação cardiorrespiratória, quando necessária.7

O uso de droga vasopressora (octreotide) de forma contínua pode ser necessário (dose de 1 a 5 mcg/kg/h) para controle do sangramento.7,10 Considerações têm sido feitas em alguns estudos sobre o uso desta, devido ao risco teórico de indução da progressão do trombo consequente à redução no fluxo sanguíneo esplâncnico.2 No entanto, até o momento os benefícios têm se mostrado mais significativos que os riscos, mantendo-se a indicação do tratamento, quando necessário.7,10

O tratamento endoscópico deverá ser tentado com escleroterapia ou ligadura elástica.30 Se, mesmo assim, persistir o sangramento, existe a opção de uso do balão de Sengstaken-Blackmore, antes de ser utilizado o tratamento cirúrgico de urgência.7

Profilaxia secundária

Os beta-bloqueadores têm eficácia comprovada também na profilaxia secundária em adultos cirróticos, reduzindo o número de episódios de sangramento, mas o uso em crianças ainda é restrito e não recomendado.2,10

O tratamento endoscópico e suas melhorias ao longo dos anos permitiram grandes avanços no tratamento das varizes esôfagogástricas. A ligadura elástica de varizes em adultos mostrou eficácia similar ao uso de beta-bloqueador em estudos recentes.18 Em crianças esta última vem também sendo preferida à escleroterapia, devido à baixa incidência de complicações.29

Biliopatia portal

Intervenções de urgência são indicadas apenas nos casos com manifestações de obstrução biliar.2,7,10 A terapia endoscópica tem sido a primeira escolha (esfincterotomia endoscópica) nos pacientes com varizes próximas do colédoco, com baixo risco de sangramento em comparação aos procedimentos cirúrgicos.23 Stenting biliar também mostrou eficácia em estudos recentes na resolução de estenoses do ducto biliar.10 Os shunts portossistêmicos devem ser pensados para aqueles pacientes assintomáticos, com longa duração da doença, na tentativa de evitar a progressão do quadro biliar e suas complicações.10

Tratamento cirúrgico

O tratamento cirúrgico está indicado nos casos de sangramento recorrente mesmo após tratamento endoscópico adequado; na esplenomegalia volumosa e/ou hiperesplenismo grave; retardo no crescimento em crianças; e biliopatia portal sintomática.7,10,30 O objetivo dos shunts cirúrgicos é descomprimir o sistema venoso portal, reduzindo sua pressão e, consequentemente, o risco de sangramentos e outras complicações. Importante complicação da redução da pressão portal é o desencadeamento de encefalopatia hepática pela redução do fluxo sanguíneo hepático.20 Devido à alta mortalidade observada após realização dos shunts portossistêmicos em adultos, em conjunto às baixas taxas de mortalidade por sangramento e eficácia do tratamento endoscópico e farmacológico, atualmente esse tratamento tem sido utilizado apenas como última escolha nessa faixa etária.10,15,30

O surgimento de novas técnicas cirúrgicas tem melhorado os resultados obtidos com os shunts em crianças. Hoje ainda há preferência pela derivação esplenorrenal distal na maioria dos serviços, mas o Rex shunt tem surgido como técnica importante, sendo a de escolha nos casos de trombose de veia porta.20,30 Neste último, a região trombosada da veia é ultrapassada com enxerto venoso interposto entre a veia mesentérica superior e veia portal esquerda, restaurando, dessa forma, o fluxo fisiológico do sangue destinado ao fígado.30 A restauração desse fluxo fisiológico pode levar à correção dos fatores de coagulação sintetizados no fígado e promover melhor crescimento pôndero-estatural.20,30 Essa técnica deve ser considerada quando for necessária a realização da derivação portossistêmica em crianças com trombose de veia porta sem cirrose devido a sangramentos repetidos, sem resposta aos demais tratamentos ou com complicações graves.7

 

PROGNÓSTICO

A mortalidade por sangramento de varizes em pacientes com trombose de veia porta, mas sem cirrose, é de aproximadamente 2 a 5%, muito menor que a apurada em pacientes cirróticos que está entre 30 e 70%.6 Em crianças, o prognóstico geralmente é melhor que o de adultos, devido à baixa incidência de doenças associadas, havendo taxa de sobrevida maior que 70% em 10 anos.15

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A TVPO é considerada condição de grande morbidade nas crianças, levando a internações hospitalares frequentes, absenteísmo escolar e impacto emocional sobre as crianças e seus familiares.7 O prognóstico nos pacientes não cirróticos tem melhorado cada vez mais com os avanços na abordagem da hipertensão porta, incluindo a erradicação endoscópica das varizes esofagianas e a profilaxia medicamentosa.2,7,10 Deve-se suspeitar de TVPO em toda criança com esplenomegalia afebril e/ou hematêmese, sem hepatomegalia e com testes de função hepática normais.

Hoje é mundialmente aceito que a trombose de veia porta ocorre pela associação de predisposição à trombose e um fator desencadeante para a formação do trombo.2,10 A minoria dos casos parece apresentar fatores causais hereditários, o que atualmente só pode ser confirmado por investigação cuidadosa do paciente e membros da família.14,16 Apesar disso, entender os fatores genéticos predisponentes à TVPO mostrou-se importante para identificar subgrupos de pacientes nos quais a trombofilia hereditária atua na patogênese e auxiliar na decisão sobre o uso e duração de anticoagulação nos casos necessários.10

Sobre a anticoagulação, novas considerações devem ser feitas e novos estudos são necessários para avaliar seu uso nos casos crônicos e o benefício do uso em pacientes com trombose de veia porta que serão submetidos a cirurgias; durante a gravidez; e em outras situações que sabidamente predisponham à trombose.26,27

 

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