ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Asma não controlada e angústia na adolescência: escutar o paciente?
Uncontrolled asthma and psychological distress in adolescence: hearing the patient?
Maria Cândida Marques1; Rubén Dario Araya Krstlovic2; Maria Jussara Fernandes Fontes3; Roberto Assis Ferreira4; Jésus Santiago5; Marie-Jose Del Volgo6
1. Doutorando em Saúde da Criança e do Adolescente, Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte - MG, Brasil
2. Professor Auxiliar Facultad de Psicologia Universidad Alberto Hurtado. Santiago, Chile
3. Professor Adjunto III Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte - MG, Brasil
4. Professor Emérito da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte - MG, Brasil
5. Professor Adjunto Faculdade de Psicologia da UFMG. Belo Horizonte - MG, Brasil
6. Maître de Conferènce. Université Aix-Marseille II ; Praticien hospitalier à l'Hôpital Nord Marseillle; Directeur de recherche dans le Laboratoire de Psychopathologie clinique et Psychanalyse à l'Université d'Aix-Marseille. Marseille, France
Maria Cândida Marques
Av. do Contorno 4.747, sala 812, Lifecenter
Belo Horizonte, MG - Brasil
Email: mariacmarques@hotmail.com
Instituiçao: Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
Este artigo, com base na apresentação do caso clínico de uma adolescente portadora de asma persistente associada a distúrbios psicoafetivos, procura comentar o atual modelo biotecnológico de atendimento que exclui a subjetividade do paciente. Discute, a partir do caso apresentado, as possíveis contribuições da escuta médica de orientação psicanalítica na condução de casos de pacientes portadores de asma não controlada.
Palavras-chave: Asma; Adolescente; Sintomas Afetivos; Medicina Clínica; Psicologia Clínica; Psicanálise; Psiquiatria do Adolescente
INTRODUÇÃO
De acordo com Holgate e Dahlén1, a primeira referência à asma como doença é atribuída a Moses Maimonides (1135-1204), mas somente em 1868 o médico britânico Henry Hyde Salter a definiu como uma entidade clínica distinta. Até então, o termo asthma era usado para nomear muitas outras doenças respiratórias que determinavam dispneia.
Atualmente, a asma, doença crônica inflamatória mais comum da infância, constitui objeto de importante investimento no campo da pesquisa científica. Entretanto, sua etiologia continua obscura, sua fisiopatogenia múltipla e seu quadro clínico heterogêneo, podendo ser mais bem caracterizada como uma síndrome com fenótipos diversos.2
Não obstante a importância de exames complementares e a existência de inúmeros protocolos e alterações genéticas, fisiológicas, imunológicas, histológicas e bioquímicas pelas quais o indivíduo possa ser identificado como "asmático", critérios clínicos ainda se impõem.3 Apesar dos programas preventivos, da diversidade de medicamentos, do arsenal tecnológico atualmente disponível e dos benefícios obtidos, o controle dos sintomas da asma em suas formas graves representa um desafio, constituindo importante causa de morbidade e mortalidade.4
Vários trabalhos indicam a necessidade de ampla abordagem, considerando a grande diversidade dos fatores etiopatogênicos envolvidos. Abre-se um campo extenso de pesquisa que inclui desde a genética e a farmacologia até o impacto de fatores ambientais, sociais, culturais, comportamentais e psicológicos. Ainda se entrelaça a questão da relação médico-paciente, ponto nevrálgico da chamada não adesão ao tratamento, uma das principais causas dos insucessos terapêuticos, remetendo à reflexão sobre a necessidade de outras formas de abordagem desta doença.5-7
Muitos estudos têm sido feitos no sentido de pesquisar a relevância de fatores emocionais, psicológicos, comportamentais, biopsicossociais8-19, psiquiátricos20-22 e psicossomáticos23-25 na origem do problema. Nessas iniciativas, a partir das quais inegavelmente se dá um passo para além da abordagem estritamente protocolar e medicamentosa, a consideração dos aspectos psicológicos, psíquicos, familiares e sociais dos pacientes constitui importante diferencial em seu atendimento, especialmente nos casos ditos "refratários" ou "não controlados". Entretanto, no tocante à singularidade do sujeito, observa-se certa limitação da aplicabilidade clínica desses métodos, pois, ao buscarem uma causalidade "psíquica", uma classificação e uma nomeação para o sintoma, essas práticas acabam por excluir do paciente a sua história, sua subjetividade, seu prazer e sua dor experimentados como tais. Com essa postura, determinam apenas mínimo distanciamento do enquadramento normalizador do cientificismo, método universalizante do qual almejam se distinguir.
Considerando o processo de adoecimento como algo ao mesmo tempo social e culturalmente construído, salienta-se, entretanto, que, aos olhos da clínica, este consiste fundamentalmente em uma experiência única e singular na vida de cada paciente.26 Nesse aspecto, Foucault afirma que "o doente é a doença que adquiriu traços singulares, dada como sombra e relevo, modulações, matizes".27
Ferreira28, neste sentido, observa que os livros de clínica e semiologia têm procurado estimular a melhor relação médico-paciente baseando-se em princípios de solidariedade, boa comunicação e de compreensão do ser humano doente. Essa abordagem, de importância indiscutível, mostra já uma inconformidade com o modelo biotecnológico, sem, contudo, conseguir ultrapassá-lo.
Em contraste com sua alta eficiência técnica em definir o diagnóstico e tratamento nas doenças "orgânicas", o médico atual apresenta certa limitação e despreparo para escutar o paciente, principalmente nos casos em que o emocional parece estar envolvido e a terapêutica se revela errática e impotente. Verifica-se, nessas circunstâncias, o uso frequente do encaminhamento ao psicólogo ou ao psiquiatra, conduta muitas vezes destituída de verdadeira necessidade de indicação.
Do ponto de vista desta discussão, o que se torna bizarro na abordagem cientificista é a subordinação do psíquico ao corporal, ou seja, nos casos em que falham o diagnóstico e a terapêutica e suspeita-se da associação de transtornos emocionais ou subjetivos, repete-se, como nas doenças orgânicas, também uma estratégia de busca pela origem do sintoma (p. ex. um trauma, uma depressão, um estresse, uma disfunção de neurotransmissores). Quando na verdade, na maioria desses casos, a causalidade da queixa constitui algo a ser construído pelo próprio paciente durante seu atendimento e somente revelado em seus ditos. Esses pacientes, cujas histórias não são escutadas, são os que correm o risco de ficarem para sempre rotulados como "somatizadores" "poliqueixosos", "pacientes difíceis", "pacientes questionadores" cuja necessidade de cuidado permanece definitivamente mal-entendida pela Medicina. Esta, além de não acolhê-los, fomenta-lhes uma peregrinação infinda por diversas clínicas, causando gastos desnecessários. Nesses casos, em que se insiste no estabelecimento de um ideal de saúde, no qual se busca dar conta de uma especificidade psíquica a partir de uma contingência orgânica, não se estaria mais a obturar o interrogante do paciente à cientificidade moderna?
Pensa-se que dessa profunda mudança no seio da Medicina ocorrida depois do final do século XVIII, momento em que a temporalidade histórica cedeu lugar à temporalidade operatória, derivou a atual dificuldade dos médicos em acolher o discurso de sofrimento dos pacientes, fato bastante recente considerando-se a longa história da prática médica.
Em outras palavras, ao exilar a subjetividade do tratamento e da doença, o atual discurso médico deixou de levar em conta, seja em sua prática, seja em seus conceitos, o drama imaginário, o simbolismo, o aspecto ético do sofrimento. A Medicina "dessubjetivou" a queixa do paciente e "deserotizou" o corpo, que ficou reduzido, nas palavras de Roland Gori, ao suporte de uma molécula:"[...].poderíamos dizer que o homem se transformou no meio disponível para um gene produzir outro gene"29 (tradução nossa). A clínica tradicional do cuidado à cabeceira do leito, kliné30, acabou por se confundir e se reduzir a uma Medicina contida entre o que é economicamente aceitável e cientificamente correto.31
Nesse contexto turbulento de dificuldades e questionamentos em relação à abordagem de casos ditos refratários, não controlados ou de difícil controle, um médico com formação em Psicanálise decidiu acolher o encaminhamento de uma adolescente portadora de asma não controlada associada a distúrbios emocionais e observar, dentro dos rigores do método clínico, os efeitos da escuta de sua queixa. Recortes do caso clínico descrito a seguir referem-se a alguns momentos do trabalho realizado ao longo de 10 meses.
O CASO CLINICO
Z., adolescente com 15 anos, é encaminhada para atendimento pela pneumologia, portadora de asma "não controlada" associada a "problemas emocionais". Teve o primeiro episódio de broncoespasmo aos dois meses de idade, sendo incluída no protocolo de profilaxia da asma aos 12 meses de vida, a partir de dados que sugeriam diagnóstico de asma persistente grave/moderada, não controlada. Desde então, fazia uso contínuo de beclometasona por via inalatória em doses variáveis de 500 a 1.000 mcg/dia associada a broncodilatadores nas crises. Não obstante sua boa adesão ao tratamento, ainda apresentava crises frequentes que a levavam a atendimentos de emergência e internações. Já havia passado anteriormente por atendimentos de psicólogos.
Deixada na porta do consultório pela mãe, Z. entra na sala, senta-se e mostra-se bastante arredia, resistente, pouco disposta ao contato, afirmando insistentemente que "tudo estava bem, que havia vindo mais por causa de sua mãe, que com ela não havia nada de errado, nada de mal, e que não tinha o que dizer". Referindo-se a atendimentos psicológicos anteriores, pergunta: "Não vamos ter jogos, grupos? No outro atendimento com a psicóloga tinha jogos". Respondi que não, que aqui ela iria ter um espaço para falar, se quisesse. Incomodada, comentou:
- Isto aqui, para mim... essa coisa de falar é muito difícil, sou muito tímida... não sou muito 'amigável', não tenho amigos na escola e fico muito sozinha....
Pontuo, então, valendo-me de algo que ela própria dissera, se alguma coisa poderia não estar tão bem. Esta observação a fez desmanchar-se em lágrimas, quando então passou a interpelar-me com o olhar. Permaneci em silêncio, a seu dispor por longos minutos, até que naturalmente começou a respirar mais devagar, foi mudando de fisionomia e disparou:
- Mas você não é médica?
- Também! Marcamos novamente semana que vem?
Surpresa, ela respondeu:
- Sim!
Iniciou-se, então, um trabalho de atendimento semanal.
Primogênita de casal com duas filhas, Z. refere-se à irmã de 5 anos como "folgada, bagunceira", de quem a mãe nunca exige muito. O pai, motorista de caminhão, ausenta-se bastante de casa e ela se diz "mais chegada" à mãe. Ela menciona que a medicação trouxera-lhe certo controle das crises, mas que nunca havia ficado totalmente assintomática. Sentia-se "dependente das bombinhas", tinha medo de ter crises muito fortes, que pudessem levá-la à internação - pelo que sentia pavor.
Entre seus relatos, afirmou que às vezes sai de casa sem vontade de voltar, não sabendo o motivo desse sentimento e que se sente muito triste. Tirou da bolsa e colocou sobre a mesa uma foto na qual aparece, aos cinco anos de idade, ao lado de sua mãe. Nesse dia fez várias reflexões:
As pessoas envelhecem, eu não quero envelhecer, eu quero voltar à época em que eu era feliz, olhe como eu era feliz nessa época. O que um adolescente faz? Acho que adolescente é um barco fraco afundando, sendo jogado pelo mar forte. Me acho (sic) gorda e feia. O médico mandou eu (sic) emagrecer, algumas pessoas também falam. Tive minha primeira regra com 11 anos e achei péssimo, acho muito difícil virar mulher adulta. Não gosto de novelas e detesto esse trem (sic) de Belíssima (novela da Rede Globo de 1996). Esse negócio de convivência é muito difícil, porque as meninas da minha idade só falam em namorado e eu não gosto disso, porque não gosto de ninguém me sufocando. Quando eu tiver namorado, vai ter que ser de longe. Parece que estou no meio de um "medamoinho".
Em fevereiro de 2007 veio à sessão e queixou-se de falta de ar. Referiu que estava "sem remédio" porque sua mãe não conseguira pegar a medicação no posto, atribuindo sua crise a essa situação. Constatados os sintomas - dispneia, palidez e sudorese -, fiz certo cálculo clínico de que poderia escutá-la ainda algum tempo antes de encaminhá-la ao pronto-atendimento para controle medicamentoso da crise. Essa aposta, essa responsabilidade que decidi assumir resultou na retomada da fala pela paciente em meio à crise de asma30:
Quando minha irmã nasceu eu tinha nove anos, não foi muito bom porque eu tive que ir dormir na casa de outras pessoas enquanto minha mãe estava no hospital. Estranho. Me dá (sic) uma sensação estranha quando vou dormir na casa de outras pessoas, não gosto, não consigo dormir fora do meu quarto. [Por quê?] Porque o meu quarto é todo ajeitado para a asma!
- Não é ajeitado para você? - pergunto.
Ela sorriu e se calou com a minha pergunta. Em poucos instantes retomou a fala e contou que sua irmã E. dorme desde pequena no quarto dos pais, ao lado da cama deles e que ela também dormiu no quarto dos pais ate os cinco anos de idade, "porque tinha muito medo, medo do escuro, medo do olho da boneca mexer e me olhar".
- Medo dela olhar e ver o quê?
- Não sei, não me lembro.
Quando terminou, encontrava-se visivelmente diferente, mais tranquila, respirando devagar. Haviam desaparecido a sudorese e a dispneia. Avaliada sua condição clínica imediatamente após essa sessão por outro colega do ambulatório, não foram evidenciadas quaisquer alterações compatíveis com asma aguda, sendo apenas reiteradas as prescrições preventivas.
Desde então, a adolescente iniciou um novo movimento trazendo histórias da vizinhança, da escola, de suas produções de desenho, de seu desejo de viajar, de seu bom desempenho em várias matérias, da feira de ciências, de colegas de quem tentou se aproximar com algum sucesso, até que decidiu comunicar-me que não iria mais aos atendimentos por ter questões mais importantes a tratar.
De acordo com o último registro da pneumologia, encontrava-se clinicamente estável, sem crises graves recentes e com redução da medicação inalatória preventiva. Há relato da pneumologista que a acompanha há vários anos sobre significativas mudanças em sua maneira de ser, de se vestir e de se conduzir diante das dificuldades do difícil processo da adolescência. O choro fácil e frequente cedeu lugar a atitudes mais seguras, tranquilas e a um rosto mais alegre.
DISCUSSÃO
O médico e a palavra: o romance da doença
Considerando que a psicanálise nasceu da Medicina e de sua clínica, Freud bem cedo reconheceu a importância dos ensinamentos que lhe foram transmitidos por suas pacientes histéricas, portadoras de doenças marginalizadas.31 Para Lacan32,"[…]é justamente a assunção de sua história pelo sujeito, no que ela é constituída pela fala endereçada ao outro, que serve de fundamento ao novo método ao qual Freud deu nome de psicanálise."
Historicamente, foi em um texto de 1893, no final do caso de Elisabeth von R., que Freud definiu pela primeira vez a tarefa do analista (der Analytiker), que ele chamava de psicoterapeuta e que, nos escritos posteriores sobre técnica analítica, designará o mais das vezes pelo termo "médico" (der Arzt). Já nesse escrito, ao final do primeiro tratamento analítico (1892-1893), Freud sublinha a relação interna e significante entre a história subjetiva de um sofrimento e os sintomas clínicos.33
Sobre a asma, há mais de um século, em seu texto sobre a teoria das neuroses, Freud mencionou que os ataques de angústia "poderiam vir acompanhados de distúrbios respiratórios, acessos semelhando a asma e similares, constituindo várias formas de dispneia nervosa."34
Sobre a adolescência, de forma sucinta, pode-se afirmar que seja uma época marcada por dois momentos distintos da vida humana, primeiro, da entrada na sexualidade e, segundo, da saída para o mundo com certa separação dos pais. Especialmente na contemporaneidade, tempo marcado por uma crise de legitimidade e de referências em que se busca um ideal igualitário, observa-se crescente demanda por atendimento a jovens em profunda crise de angústia e desamparo, frequentemente desprovidos dos elementos necessários à elaboração das questões dessa travessia.35
Considerando o caso clínico relatado, em termos psicopatológicos simples, considera-se tratar-se de uma adolescente com estrutura neurótica, com forte ligação materna, que sofria e traduzia em sintomas sua angústia, sensações de sufoco, asma, sua grande dificuldade em se constituir como sujeito de escolha e de desejos próprios.
A oferta de um espaço de escuta no qual não se sugeriram modelos, não se sufocou, não se julgou, ao contrário, valorizou-se a singularidade de seu sintoma em uma universalidade clínica normativa pareceu-nos ter sido determinante no processo de subjetivação observado. Justamente esse "não saber" clínico, bem distinto da separação cartesiana entre somático e psíquico da Medicina contemporânea, veio possibilitar a tradução em palavras de seu mal-estar: "Estranho. Me dá (sic) uma sensação estranha quando vou dormir na casa de outras pessoas, não gosto, não consigo dormir fora do meu quarto, porque o meu quarto é todo ajeitado para a asma!"
Considera-se que o teor dessa fala dá a exata dimensão do sentido e dos desafios estabelecidos pelos autores que se propõem, especialmente nos casos difíceis ou refratários, permitir aos pacientes adentrarem sua história como sujeitos e se implicarem em suas queixas. Propõe-se a escuta da história do paciente também na busca daquilo que o molesta, e não apenas na identificação da doença.
Desta forma, a oferta da palavra à adolescente, momento em que se escapa à evidência e ao enquadramento do protocolo, parece ter sido a mola propulsora da retomada de sua própria história, da dimensão subjetiva de sua doença.
Diante disto, a afirmação de Vieira36 de que "os médicos de hoje, de maneira análoga aos reacionários colegas de Freud e sua moral burguesa, não querem ouvir o paciente por terem se dobrado às exigências da ciência ou do mercado e esquecido o sujeito" não permite dizer que todos estejam nesse mesmo lugar, em que eles são incapazes de abordar alguns aspectos singulares das mazelas com que lidam. Nem permite, por outro lado, afirmar que se esteja pretendendo com essa prática, organizar a psicanálise para que possa ser transmitida, para que possa ser reproduzida em contextos diversos, à semelhança do que pretendeu Royer, por ocasião da conferência proferida por Lacan aos médicos no pavilhão pediátrico do La Pitié-Salpêtrière de Paris, em 196637.
Esta investigação, de forma singular, aponta para um outro campo. Esforça-se por se referir à formalização de uma práxis na qual o médico, em seu lugar como detentor do saber da ciência, também não consente em abrir mão de sua função operativa como soberano em relação ao juízo clínico. Nesse campo pantanoso, Lacan intervém e pergunta aos médicos nessa mesma conferência, em 196637: "Onde está o limite em que o médico deve agir e a que deve ele responder? A algo que se chama demanda?"
Considerando que toda demanda seja autenticamente de amor, a demanda dirigida ao sujeito suposto saber encarnado pelo médico evoca o fenômeno da transferência e toca na dimensão mais primitiva, ao mais enraizado do desejo de saber. Compreender a significação da demanda e a dimensão da estrutura de falha que existe entre demanda e desejo é entender que quando o doente é enviado ao médico ou quando o aborda, nem sempre ele espera ou deseja exatamente a cura37.
Conforme Lacan, em sua Conferência no Hospital Salpetrière, em 1966, "é no registro do modo de resposta à demanda do doente que está a chance de sobrevivência da posição propriamente médica"37. Pressupõe-se que a escuta ao paciente, o manejo da transferência e sua sustentação a partir de posições discursivas outras que não apenas o lugar do saber possam possibilitar o surgimento de um sujeito em questão.
Neste ponto, levanta-se a discussão de que talvez não seja da competência exclusiva dos psis o conhecimento de que nem sempre as demandas do paciente são exclusivas de saúde. Em outras palavras, pensamos que o sintoma, além de seu caráter patológico, também pode carregar embutido um outro tipo de pedido, uma autêntica demanda de amor. Essa dúbia significação do sintoma não deveria ser considerada algo de reduzido valor na clínica. Para Lacan, "o que ensinamos ao sujeito reconhecer como seu inconsciente é sua história"32.
Neste sentido, Del Volgo, ao ofertar um momento de escuta a alguns pacientes submetidos ao exame de pletismografia, observou que muitos tinham o que falar. Em sua obra "O Instante de dizer", fruto de suas observações, afirma que a história do caso, assim como a história do sintoma, interessa, fazendo existir o "romance da doença"38. Na perspectiva de sua prática singular, ponte verbal que não objetiva unir Psicanálise e Medicina - união contranatura, propõe deixar advir do lado do paciente um verdadeiro que não se confunde com o exato, verificando-se que a doença quanto seu romance provém de uma construção conjunta, elaboração do doente e a reconstrução do próprio médico, um duplo encontro39.
De forma distinta de um simples humanismo ou da retomada do velho empirismo médico, a posição de escuta e o método de referência proposto por Del Volgo são determinantes no tratamento do paciente no momento em que ele próprio propõe explicações para seu sofrimento, pois "a escuta operatória faz advir o discurso operatório, a escuta ideológica faz advir o discurso ideológico, enquanto que a escuta flutuante faz advir o discurso de livre associação"31,38 (tradução nossa) . Assim, Foucault40 afirma que "a clínica não constituiria um instrumento para descobrir uma verdade ainda desconhecida, mas uma determinada maneira de dispor a verdade já adquirida e de apresentá-la para que ela própria se desvele sistematicamente". Considera-se, entretanto, que a prática médica sem a racionalidade de seu exercício pode ser tão cega e danosa quanto uma investigação científica sem o exercício da sua prática clínica pode ser vazia.
Nesse mesmo contexto, Ferreira41, em seus seminários proferidos no ambulatório da Medicina do Adolescente da UFMG, sempre reafirma a importância da abertura, por parte do médico, de "uma janelinha de escuta", partindo do pressuposto de que sua função clínica não deve se restringir ao lugar do saber já que a verdadeira demanda do paciente nem sempre é falada a princípio.
Existe a tendência a pensar que a posição médica e a escuta sejam inconciliáveis, exclusivas. Seja porque o médico que faz a escuta destitui-se de seus atos médicos ou porque o médico como apenas "engenheiro da saúde" privilegia sua técnica e negligencia a escuta e a relação humana.
De acordo com Gori42, alguma possibilidade de diálogo entre Psicanálise e Medicina encontra-se pautada na questão da ética, mais precisamente na instauração de uma preocupação na relação médico-paciente bem além do que propõe a abordagem científica padronizada pelos protocolos. Dito de outra forma, o cuidado ético incluiria, além da abordagem científica, uma prática terapêutica que não se reduziria simplesmente a uma técnica, já que leva em conta a escuta do sofrimento humano, este irredutível às doenças, convocando de seu praticante, além do conhecimento teórico, a experiência, a decisão e o julgamento.42
Desviando-se da identificação a um psicologismo como técnica auxiliar dos tratamentos enquanto se mantém a devida e necessária distinção entre as duas epistemes, procura-se ressaltar com esta discussão uma outra perspectiva dentro do que poderia vir a se constituir uma prática médica que escape tanto aos limites da normatização científica quanto ao empirismo.43 Ansermet44 afirma que o clínico, seja ele médico ou psicanalista, deveria ser aquele que estaria pronto a deixar-se surpreender.
Neste sentido, não se pode afirmar que a Psicanálise não seja um discurso que favoreça o reencontro da Medicina com sua dimensão clínica; e do lado do médico não é utópico pensar-se que não haja uma única saída digna se não aquela em que ele consente em dizer de sua prática, em ser e tornar-se o sujeito de seus atos, isto é, levar em conta o contexto do discurso e da linguagem no qual se dá a dor.31
Na perspectiva de um mundo onde cada vez mais o progresso técnico-científico não se acompanha da reafirmação de valores humanos, sem respostas prontas, procura-se abrir com esta discussão uma outra frente na abordagem clínica dos pacientes, especialmente dos ditos refratários, crônicos e de difícil controle.
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