RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. (4 Suppl.4)

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Relato de Caso

Anestesia em paciente portador da Doença de Charcot-Marie-Tooth: qual a melhor técnica anestésica?

Anesthesia in patient with Charcot-Marie-Tooth Disease: what is the best anesthetic technique?

Amanda Guerson Porto1; Jaci Custódio Jorge2; Ana Luiza Murta Timponi de Moura1; Romildo Loures de Alcântara1

1. ME3 de Anestesiologia do CET/SBA/MEC do IPSEMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Anestesiologista do Hospital IPSEMG. Responsável pelo CET/SBA/MEC do IPSEMG - Belo Horizonte, MG - Brasil. Coordenador do Serviço de Anestesiologia do Hospital Vera Cruz. Título Superior de Anestesiologia fornecido pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Belo Horizonte, MG - Brasil.

Endereço para correspondência

Jaci Custódio Jorge
Av. Professor Cândido Holanda, 120/301 Bairro Sao Bento
CEP: 30301-340 Belo Horizonte, MG - Brasil
E-mail: jacic@globo.com

Instituiçao: CET do IPSEMG - Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

A doença de Charcot-Marie-Tooth (CMT) é uma polineuropatia periférica hereditária motora e sensitiva, caracterizada clinicamente por acometimento distai, principalmente de membros inferiores, levando a à fraqueza muscular e atrofia.1,2,3 A incidência de 1:2.500 4 torna possível ao anestesiologista defrontar-se com essta situação com certa frequência. Apesar do avanço na descoberta de novos genes responsáveis pela doença e da correlação entre genótipo e fenótipo, a experiência anestésica com esses pacientes é bem limitada.4,5 O objetivo do trabalho é apresentar a conduta anestésica no em relação ao paciente com CMT que, no caso relatado, foi submetido à cirurgia de ressecção prostática transuretral (RTUP), devido à hiperplasia prostática benigna, uma cirurgia classicamente realizada com bloqueio de neuroeixo, considerando-se as controvérsias ainda existentes relacionadas à doença. Trata-se de paciente de 60 anos sabidamente portador da doença de CMT, com diagnóstico há cinco anos, com anestesia do tipo botas e luvas, associado à parestesia de membros, sem cirurgias prévias.

Palavras-chave: Doença de Charcot-Marie-Tooth; Polineuropatias; Doenças Desmielinizantes; Bloqueio Sinoatrial; Bloqueadores Neuromusculares; Anestesia.

 

INTRODUÇÃO

A doença de Charcot-Marie-Tooth (CMT) é uma polineuropatia hereditária motora e sensitiva, com apresentação clínica e geneticamente heterogênea.1-3 Foi descrita pela primeira vez em 1886, por Jean-Martin-Charcot, Pierre Marie e Howard Henry Tooth, de onde advém o nome da doença.2 Recentes estudos epidemiológicos demonstraram ser a doença de CMT o tipo mais comum de neuropatia hereditária1, com acometimento de 1 um para em cada 2.500 indivíduos,4 o que significa que no mundo há em torno de 2,6 milhoes de pessoas acometidas, tornando importante o adequado conhecimento dessa patologia doença pelo anestesiologista. O objetivo deste relato é avaliar qual a melhor técnica anestésica, a mais segura, para um paciente com CMT, considerando as controvérsias anestésicas ainda existentes em relação à doença, como a resposta aos bloqueadores neuromusculares, aos agentes desencadeantes de hipertermia maligna e à realização de bloqueios de neuroeixo em patologias doenças neuromusculares. Serao apresentados os fatores relevantes da doença, como as duas principais formas: desmielinizante e degeneração axonal crônica e as considerações pertinentes para ao manejo anestésico.

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Trata-se de paciente de 60 anos, 71 kg, IMC de 25, programado para ressecção prostática transuretral (RTUP) devido à hiperplasia prostática benigna, com peso prostático estimado de 82 g. Relatava que há 5 cinco anos iniciaram de forma progressiva e simétrica, dor e redução de força em membros inferiores, associado com à parestesia nos pés. Recentemente, observou comprometimento também dos membros superiores. Apresentava redução do tônus e trofismo muscular nos interósseos, com anestesia de distribuição tipo luvas e botas. Esses sintomas que impossibilitavam condições laborativas. Paciente sem outras comorbidades e vícios. A história familiar era positiva para doença neuromuscular não especificada. A biópsia de n. sural mostrou fragmento de nervo periférico com fibras preservadas, sem alterações histológicas relevantes e sem sinais de atividade inflamatória. A eletroneuromiografia de membros inferiores revelou sinais de instabilidade dos sarcolemas e potenciais de unidades motoras remodelados, indicando presença de polineuropatia periférica sensitivo-motora-axonal crônica de moderada a grave intensidade. O diagnóstico foi de doença de CMT tipo 2. Os dados do exame eletrofisiológico atual mostravam potenciais de ação de nervos sensitivos de amplitudes baixas, estando normais as velocidades, duração e latências.

A técnica anestésica escolhida foi anestesia venosa total alvo-contolada (TIVA) com propofol e remifentanil, . Ae após tentativa de inserção de máscara laríngea sem sucesso, foi realizada intubação orotraqueal sem o uso de relaxante muscular e submetido à ventilação mecânica pressão controlada. O procedimento anestésico-cirúrgico transcorreu sem intercorrências e teve duração aproximada de 40 minutos. Paciente manteve-se estável hemodinamicamente, com hemograma e ionograma seriados no pós-operatório sem alterações. Alta hospitalar após 48 horas.

 

DISCUSSÃO

A classificação da Doença de Charcot-Marie-Tooth é complexa, considerando que existem aproximadamente 26 lócus envolvidos.1 No entanto, é classificada de forma mais simples de acordo com apresentação clínica, modo de transmissão da herança, que pode ser autossômica dominante, autossômica recessiva ou ligada ao X, padrao eletrofisiológico e biópsia de nervo periférico como forma desmielinizante ou axonal.1,3,4

Mutações em múltiplos diferentes genes expressos nas células de Schawann e neurônios causam a variedade de fenótipos clínicos, caracterizados por falhas no transporte axonal e anormalidades de tráfego protéico.3 A patogênese da doença envolve a interação entre as células de Schawann e o axônio, assim como a arquitetura molecular do axônio e da mielina.2,4 A expressão aumentada do gene da proteína PMP22 leva a um defeito da mielinização do axônio1,4, sendo o nível de déficit motor relacionado com ao número de neurônios motores funcioniais envolvidos.1

São descritos até 7 sete tipos da doença, com diversos subtipos4, mas para o interesse clínico foram basicamente divididas em 3 três principais formas:

CMT I é a forma desmielinizante, de transmissão autossômica dominante ou ligada ao X, com início dos sintomas ainda na primeira década ou início da segunda década de vida, com forte correlação com história familiar típica para neuropatia. Caracterizada por aspecto de bulbo de cebola na biópsia de nervo periférico5, com velocidade de condução de nervo mediano menor ou igual ou inferior a 38 m/s.1,3,4 A velocidade de condução de nervo mediano é parâmetro válido para diferenciar geneticamente os fenótipos de CMT.1 O subtipo I A geralmente é causado pela duplicação do cromossomo 17p.11, que inclui o gene codificador da proteína PMP22. Nessa forma, os sinais mais frequentes, detectados em torno dos 4 quatro anos de idade, são: arreflexia de membros inferiores, dificuldade em deambular com os calcanhares, estando normal a posição na ponta dos pés, com alargamento de nervos, proeminência do tendao de Aquiles, atrofia da musculatura intrínseca dos pés, presença de pés cavos ou varos, fraqueza em regiao fibular.1,2

CMT II é a forma com acometimento axonal e não desmielinizante, de transmissão autossômica dominante ou recessiva, com acometimento mais tardio em relação ao tipo I. Os sintomas sensoriais são predominantes sobre a disfunção motora, mas com manifestações clínicas semelhantes ao tipo anterior.5 O diagnóstico é feito ao encontrar a velocidade de condução de nervo mediano superior a 38 m/s1 e não há o aspecto de bulbo de cebola na biópsia neural.5 O subtipo CMTIIC tem como peculiaridade significativo grau de fraqueza diafragmática e de corda vocal, tendendo a à apneia obstrutiva do sono, de interesse para o anestesiologista.5 Embora muitos genes causadores sejam ainda desconhecidos, já foram identificados oito lócus responsáveis por essa forma.1

CMT III, também conhecida como Doença de Dejerine-Sottas, é uma forma grave, com desmielinização severa grave, transmitida por herança autossômica recessiva1, de início precoce na infância ou ao nascimento, marcada por intensa hipotonia e neuropatia sensorial e motora.5

Há ainda outro tipo da doença (CMT IV) com classificação ainda controversa entre forma desmielinizante e axonal, caracterizado pelo início precoce de neuropatia severa grave sensorial e motora com ou sem paralisia de corda vocal.1

O diagnóstico deve ser suspeitado com uma história clíinica detalhada e exame físico, considerando também o acometimento de parentes próximos, com biópsia de nervos reservada para casos duvidosos, esporádicos e com herança de caráter recessivo.1

Apesar de recentes avanços no reconhecimento de genes responsáveis por diferentes neuropatias, do melhor entendimento da patogênese dessas doenças e da correlação entre genótipo e fenótipo4, a experiência anestésica com esses pacientes ainda é limita da.6 A escolha da anestesia regional para pacientes com doenças neuromusculares é historicamente controversa, sendo considerado fator de risco para lesão neurológica7 e piora do prognóstico. O uso do bloqueio de neuroeixo baseia-se mais em dados teóricos do que em medicina baseada em evidências. No entanto, essa técnica tem se mostrado de escolha, principalmente nos casos de maior alto risco de efeitos adversos graves com a anestesia geral, como no caso de pacientes obstétricas e potencial via aérea difícil7, ou quando a monitorização neurológica é desejada, como em cirurgias de RTU de próstata.

Controvérsias na literatura também foram encontradas quanto ao tempo para término de ação de bloqueadores neuromusculares e CMT.8 Pogson et al. 8 relataram o caso em que vecurônio utilizado na dose de 0,11 mg/kg produziu prolongamento de bloqueio neuromuscular por tempo até 115 min.Diferentemente, de Naguib et al. descreveram dois procedimentos distintos com o mesmo paciente com CMT, quando atracúrio e mivacúrio foram utilizados nas doses habituais e não foram encontradas evidências de efeito prolongado desses medicamentos se comparados a com pacientes sadios.9 Assim também, como o uso de mivacúrio em 5 cinco crianças com CMTI, com monitorização de bloqueio neuromuscular no músculo adutor do polegar e orbicular, não mostrou diferenças quanto à duração clínica em relação à população pediátrica sem a doença.10 Importante observar que implicações anestésicas diferentes em relação aos diversos subtipos de CMT não foram listadas na literatura.7

Medicações que desencadeiam hipertermia maligna (HM), como succinilcolina e anestésicos inalatórios, já foram utilizadas em CMT sem relato de hipermetabolismo.5 Mas a experiência anestésica com essa doença é pequena, limitada e o relato da ocorrência de 2 dois casos de HM e CMT fazem com que a maioria dos autores desconsidere o uso dessas medicações em doenças neuromusculares, apesar da fraca evidência.5,6 Podem-se verificar ocorrer arritmias malignas secundárias à hipercalemia com o uso de succinilcolina em doenças neuromusculares.5

O óxido nitroso é considerado medicamento de risco moderado a significativo2 para toxicidade e piora da neuropatia em CMT, de acordo com as associações de CMT canadense, norte-americana, australiana e do Reino Unido.11 A despeito desse efeito, é amplamente utilizado. E estudo realizado por Isbister11 mostrou que não houve piora da neuropatia em crianças e adultos em uso de óxido nitroso em anestesia geral, relato de 41 exposições.

 

CONCLUSÃO

A literatura anestésica disponível não estabelece qual a melhor anestesia na doença de CMT. Tanto a anestesia geral quanto o bloqueio regional não estao contra-indicados nesses pacientes. Controvérsias em relação ao efeito de bloqueadores neuromusculares, tanto no potencial de desencadear hipercalemia e arritimias malignas, quanto no tempo mais longo de efeito clínico, necessitam adequar seu uso de acordo com riscos e benefícios. Embora não haja uma contraindicação formal para a realização de bloqueios de neuroeixo para pacientes com a doença de CMT, o anestesiologista deve avaliar cada caso, a preferência do paciente, a relação médico-paciente estabelecida e, orientá-lo sobre a história natural da doença, para que o mesmo não implique o seu prognóstico à técnica anestésica utilizada.

 

REFERENCIAS

1. Berciano J, Combarros O. Hereditary neuropathies. Curr Opin Neurol. 2003;16:613-22.

2. Charcot-Marie-Tooth Association. [Cited 2011 set 30]. Available from: http://www.charcot-marie-tooth.org/med_alert.php.

3. Shy ME. Charcot-Marie-Tooth disease: an update. Curr Opin Neurol. 2004;17:579-85.

4. Zhou L, Griffin J W. Demyelinating neuropathies. Curr Opin Neurol. 2003;16:307-13.

5. Fleisher LA. Anesthesia and uncommon diseases. 5th ed. Maryland Heights, MO: Elsevier Health Science; 2005.

6. Ginz HF. The hereditary motor-sensory neuropathy Charcot-Marie-Tooth disease: anesthesiologic management-case report with literature review. Anaesthesist. 2001;50(10):767-71.

7. Brock M, Guinn C, Jones M. Anesthetic management of an obstetric patient with Charcot-Marie-Tooth disease: a case study. AANA J. 2009;77:335-7.

8. Pogson D. Prolonged vecuronium neuromuscular blockade associated with Charcot Marie Tooth neuropathy. Br J Anaesth. 2000;85(6):914-7.

9. Naguib M. Response to atracurium and mivacurium in a patient with Charcot-Marie-Tooth disease. Can J Anaesth. 1998;45(1):56-9.

10. Schimitt HJ. Onset and duration of mivacurium-induced neuromuscular blockade in children with Charcot-Marie-Tooth disease. A case series with five children. Paediatr Anaesth. 2006;16(2):182-7.

11. Isbister GK. Safety of nitrous oxide administration in patients with Charcot-Marie-Tooth disease. J Neurol Scien. 2008;268(1-2):160-2..