RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. (4 Suppl.4)

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Relato de Caso

Bloqueio atrioventricular de 2° grau tipo Mobitz II evidenciado no ato cirúrgico: a importância de adequada avaliação do risco perioperatório

Second degree atrioventricular block Mobitz II evidenced during surgery: the importance of adequate perioperative risk evaluation

Ana Luiza Murta Timponi de Moura1; Jaci Custódio Jorge2; Tereza Augusta Grillo3; Amanda Guerson Porto1; Camilla Frota Barroso4

1. ME3 de Anestesiologia do CET/SBA/MEC do IPSEMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Responsável pelo CET/SBA/MEC do IPSEMG - Belo Horizonte, MG - Brasil. Coordenador do Serviço de Anestesiologia do Hospital Vera Cruz. Belo Horizonte, MG - Brasil. Título Superior de Anestesiologia fornecido pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Anestesiologista do Hospital IPSEMG
3. Arritmologista do Hospital Vera Cruz. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. ME2 de Anestesiologia do CET/SBA/MEC do IPSEMG. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Jaci Custódio Jorge
Av. Professor Cândido Holanda, 120/301 Bairro: Sao Bento
CEP: 30301-340 Belo Horizonte, MG - Brasil
E-mail: jacic@globo.com

Instituiçao: CET do IPSEMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

O período perioperatório engloba o intervalo que se relaciona ao pré, intra e pós-operatório (até 30 dias). Nesse período, existe o risco de complicações relativas à própria intervenção cirúrgica e ocasionadas pelo estresse físico e emocional, pelo aumento da atividade simpática ou, ainda, decorrente dos distúrbios metabólicos e hidroeletrolíticos (hipocalemia, hipomagnesemia, hipoxemia), além da administração de agentes anestésicos com incidência de 15-30% para o desencadeamento de arritmias cardíacas.1 Portanto, é de grande importância o reconhecimento de fatores de risco e as estratégias para diminuir problemas. Relata-se o caso de um homem de 61 anos de idade hospitalizado com quadro de colecistite aguda e indicação de cirurgia em caráter de urgência. Na monitorização eletrocardiográfica no ato operatório, observou-se ritmo bradicárdico, com QRS estreito e frequência cardíaca de 47 bpm. Optou-se pela infusão endovenosa de 1 mg de atropina, registrando-se na sequência piora da bradiarritmia, com freqüência cardíaca de 33 bpm. Houve necessidade de marca-passo transcutâneo. O procedimento cirúrgico foi continuado, durando 1 hora e 30 minutos, e o paciente permaneceu hemodinamicamente estável. Existia relato de ser ele portador de hipertensão arterial (HAS), com registro eletrocardiográfico anterior à hospitalização, demonstrando padrao de bloqueio atrioventricular (BAV) do 2° grau do tipo 2:1, com condução intraventricular normal (sem bloqueio de ramo troncular ou fascicular) e frequência cardíaca de 47 bpm. O padrao de resposta à atropina fez considerar esse paciente como portador de BAV de 2° grau tipo Mobitz II.

Palavras-chave: Bloqueio Atrioventricular; Período Perioperatório; Bradicardia; Marca-Passo Artificial; Arritmias Cardíacas.

 

INTRODUÇÃO

Considera-se ritmo cardíaco normal aquele originado no nódulo sinusal seguido de estimulação do átrio e do ventrículo, com relação A/V 1:1 e tempo de condução AV igual ou inferior a 0.20 segundos. Prolongamentos no tempo de condução AV, com ou sem quebra nas relações normais de respostas 1:1, constituem um bloqueio atrioventricular (BAV). A história dos BAVs modificou-se profundamente a partir de 1969, com a introdução regular dos estudos eletrofisiológicos (EEF) clínicos invasivos, ampliando muito os conhecimentos acerca dos mecanismos de produção, características anatômicas e clínicas desse tipo de arritmia.2 A correlação de dados obtidos no EEF com o registro no eletrocardiograma (ECG) de superfície permitiu, com esse método simples e acessível, o atingimento de elevado nível de acuidade diagnóstica. O substrato básico para o aparecimento do distúrbio da condução AV é o aumento nas refratariedades teciduais. E dependendo da intensidade do transtorno, de sua extensão e de sua localização anatômica, respostas diferenciadas serao produzidas, desde um simples atraso da condução (BAV 1° grau) ao aparecimento de prolongamento progressivo no tempo de condução com sequencial bloqueio da mesma, até exaustao súbita tecidual com recuperação posterior (BAVs 2° grau)3 ou total interrupção da condução entre os átrios e os ventrículos (BAV 3° grau). Os BAVs com padroes fixos de resposta tipo 2:1 são classificados dentro dos BAVs de 2° grau e, baseado em características eletrocardiográficas como tempo de condução AV normal ou prolongado, presença ou não de bloqueios de ramo (troncular, fascicular ou ambos) e também padroes de resposta à estimulação simpática ou bloqueio parassimpático, pode-se diferenciá-lo quanto à sua localização anatômica (nodal ou infranodal) e posterior orientação terapêutica.4

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Homem com 61 anos de idade, portador de HAS, em acompanhamento cardiológico e uso regular de hidroclorotiazida 25 mg/dia e amlodipina 5 mg/dia, hospitalizado com quadro de febre, vômitos, dor constante, intensa, espontânea e à palpação no hipocôndrio direito, com irradiação para a regiao infraescapular, leucocitose, apresentando persistência do quadro clínico e laboratorial após 24 horas de medidas conservadoras, sendo optado pela intervenção cirúrgica. ECG registrava ritmo sinusal com padrao de BAV do tipo 2:1, com QRS estreito, frequência cardíaca de 42 bpm e repolarização ventricular normal (Figura1).

 


Figura 1 - BAV 2ºgrau do tipo 2:1 (ECG pré-operatório)

 

Recebeu diagnóstico de colecistite aguda e foi indicada a cirurgia em caráter de urgência. A técnica anestésica empregada foi anestesia geral balanceada e manutenção com sevoflurano. Foi monitorizado com ECG, SpO2, pressão não invasiva (PNI), capnografia, analisador de gases anestésicos e estimulador de nervo periférico (TOF). Bradiarritmia observada na monitorização eletrocardiográfica e com agravamento do grau de BAV após a infusão da atropina. Marca-asso transcutâneo utilizado durante o ato cirúrgico que não apresentou complicações, permanecendo o paciente hemodinamicamente estável e PNI em torno de 120/80 mmHg. Após o despertar, o paciente foi encaminhado para a UTI para recuperação e observação, permanecendo hemodinamicamente estável.

Informava ser assintomático do ponto de vista cardiovascular, com hábito de prática desportiva três vezes na semana (musculação) e negando qualquer outra anormalidade. Informava cirurgias prévias como hemorroidectomia e varicectomia, sem quaisquer intercorrências. Propedêutica cardiovascular realizada, apenas o ECG. Paciente informou que não havia sido orientado previamente quanto à arritmia cardíaca.

 

DISCUSSÃO

Com o registro de potenciais elétricos intracavitários obtidos no nível da válvula tricúspide, o intervalo PR do ECG de superfície pode ser desdobrado em três subintervalos: P-A, A-H e H-V. O intervalo PA representando o tempo de condução entre o átrio direito alto e o átrio direito baixo. O intervalo AH representa de maneira bastante aproximada o tempo de condução pelo nódulo AV, pois essa estrutura é o elemento que se interpoe entre o átrio direito baixo e o tronco do feixe de His. O intervalo HV representa o tempo de passagem do potencial elétrico pelo tronco do feixe de His, ramos direito e esquerdo até a sua chegada ao septo interventricular, iniciando-se entao a ativação ventricular propriamente dita. Distúrbios da condução AV que ocorrem na regiao que engloba o nódulo AV, representada pelo intervalo AH, são denominados de BAV pré-hissianos ou nodais. Bloqueios que se instalam na regiao do tronco do feixe de His, representado pela própria deflexão H, são denominados de hissianos ou tronculares. Finalmente, bloqueios que acometem a regiao referente aos ramos do tronco do feixe de His, representado pelo intervalo HV, são denominados de pós-hissianos ou distais. Sob o ponto de vista estatístico, observou-se que cerca de 90% dos BAVs de 1° grau, quando acontecem de forma isolada, é na regiao nodal. Aproximadamente 75% dos BAVs 2° grau tipo Mobitz 1 são também de origem nodal. Todos (100%) os BAVs tipo Mobitz 2 são infranodais, sendo 93% de localização pós-hissiana e 7% hissianos.5 BAVs tipo 2:1 ocorrem em 50% dos casos no nível do nódulo AV e 50% no tecido periférico. Em 80% dos casos os BAV de 3° grau são de origem distal.

A partir da observação de alguns parâmetros específicos no traçado eletrocardiográfico com BAV, pode-se, com certa precisão, determinar a localização anatômica do mesmo. Deve-se analisar a duração do QRS, frequência de despolarização e morfologia do marca-passo subsidiário, análise estatística em relação ao tipo do BAV e resposta da condução AV ao sulfato de atropina. O sistema de condução cardíaco recebe inervação do sistema nervoso autônomo (SNA) - simpático e parassimpático. O nódulo sinusal e o nódulo AV são supridos por terminações adrenérgicas e colinérgicas, sendo o segundo de forma menos intensa do que o sinusal. Regiao do His e ramos não recebem inervação. Após 1 mg de atropina observou-se aumento da frequência sinusal, aceleração da condução nodal AV e nenhuma modificação no tempo de condução distal. Pode-se deduzir que os BAVs pré-hissianos tendem a melhorar após a atropina e os distais não mostram modificações ou, inclusive, podem agravar-se. O agravamento será consequente ao mais elevado número de estímulos sinusais que alcançam o His e seus ramos, bem como a chegada mais precoce destes a essas regioes pela aceleração da condução nodal AV.6

No caso descrito, o paciente apresentava padrao de BAV tipo 2:1, com QRS estreito e que durante o ato cirúrgico a resposta apresentada após infusão da atropina corrobora localização infranodal do bloqueio. Frequentemente, BAVs dessa localização estao associados à progressão para o BAVT de forma súbita, particularmente quando o QRS é alargado, o que denota comprometimento difuso do sistema de condução, e são considerados de alto risco para complicações no período perioperatório. Pelas diretrizes, nas situações de BAV de 2° grau tipo 2, BAV avançado e BAV total, faz-se necessária adequada avaliação pré-operatória e instituição da terapêutica adequada, incluindo o implante de marca-passo cardíaco.6,7

 

CONCLUSÃO

O BAV de 2° grau Mobitz II intra-hissiano é uma arritmia de alto potencial para degenerar-se em um BAV total, comprometendo o prognóstico dos pacientes com o referido diagnóstico. O anestesiologista deve conhecer a fisiopatologia dessa arritmia, bem como seu tratamento e prognóstico, para que possa antever sérios desfechos em pacientes submetidos ao estresse anestésico-cirúrgico, como no presente relato. E que, diante de procedimentos eletivos, o paciente portador dessa grave condição deve ser encaminhado ao cardiologista para adequada orientação e tratamento.

 

REFERENCIAS

1. Fleisher LA, Beckman JA, Brown KA, et al. ACC/AHA 2007 guidelines on perioperative cardiovascular evaluation and care for noncardiac surgery: executive summary: a report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines (Writing Committee to Revise the 2002 Guidelines on Perioperative Cardiovascular Evaluation for Noncardiac Surgery). Circulation. 2007; 116:1971-96.

2. Maia IG. ECG nas arritmias. Rio de Janeiro: Cultura Médica; 1989.

3. Silverman ME, Upshaw CB Jr, Lange HW. Woldemar Mobitz and His 1924 Classification of Second-Degree Atrioventricular Block. Circulation. 2004;110:1162-7.

4. Podrid PJ, Kowey PR. Cardiac arrhythmia: mechanisms, diagnosis, and management. Baltimore: Williams & Wilkins; 1995.

5. Puech P, Grolleau R, Guimond.C. Incidence of different types of AV block and their localization by His bundle recording. In: Wellens HJJ, Lie KI, Janse M, editors. The conduction system of the heart. Leiden: Steifert Kroese; 1976.

6. Epstein AE, DiMarco JP, Ellenbogen KA, et al. ACC/AHA/HRS 2008 Guidelines for Device-Based Therapy of Cardiac Rhythm Abnormalities. Circulation. 2008;117:e350-e408.

7. Feitosa ACR, Marques AC, Caramelli B, et al. II Diretriz de avaliação perioperatória da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Arq Bras Cardiol. 2011 mar; 96(3 supl.1):1-68.