RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. (2 Suppl.3)

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Artigos de Revisão

Antifibrinolítico em cirurgia cardíaca: como e quando usar?

Antifibrinolytic in cardiac surgery: how and when to use?

Marden Fernando Miranda Ramos1; Alexandre de Castro Morais1; Jonas Alves de Santana2; Renata de Andrade Chaves3; Emerson Seiberlich4

1. Anestesiologista do Hospital SOCOR e do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Anestesiologista do Hospital Nossa Senhora das Graças e Hospital UNIMED de Sete Lagoas. Sete Lagoas, MG - Brasil
3. Anestesiologista do Hospital Municipal Odilon Behrens e Hospital Risoleta Tolentino Neves. Belo Horizonte, MG - Brasil
4. Instrutor do CET/SBA do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais - IPSEMG, Anestesiologista do Hospital SOCOR, Hospital das Clínicas da UFMG e do Hospital Vera Cruz. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Marden Fernando Miranda Ramos
Rua: Marquês do Lavradio, 469/115 Bairro: João Pinheiro
Cep: 30530-110 Belo Horizonte, MG - Brasil
E-mail: mardenramos@terra.com.br

Instituição: Hospital Socor Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

O sangramento pós-operatório continua sendo uma das principais complicações em cirurgia cardíaca. A etiologia desse sangramento é multifatorial, com hiperfibrinólise e disfunção plaquetária desempenhando papel fundamental. Tendo em vista essas causas, as drogas antifibrinolíticas têm sido preconizadas. Desde a retirada da aprotinina do mercado, o ácido epsilon-aminocaproico e o ácido tranexâmico passaram a ser os únicos representantes disponíveis dessa classe de drogas. Essas medicações diminuem a perda de sangue e agem na resposta inflamatória associada ao procedimento cirúrgico. A eficácia variável dessas drogas ocorre devido aos vários esquemas terapêuticos e níveis séricos existentes. Recentemente têm surgido alguns questionamentos na literatura a respeito das complicações, doses, vias de administração e melhor momento para administração desses agentes.

Palavras-chave: Hemorragia; Cirurgia Torácica; Fibrinólise; Fibrinolisina; Aprotinina; Ácido Tranexâmico; Ácido 6-Aminocapróico.

 

INTRODUÇÃO

Cirurgia cardíaca tem como uma das principais complicações o sangramento pós-operatório aumentado, que persiste nos dias atuais, apesar dos avanços na técnica cirúrgica e no manejo anestésico, como importante causa de morbimortalidade. Entre os pacientes submetidos a esse tipo de cirurgia, estima-se que 50 a 60% recebem algum hemoderivado durante o período perioperatório. Tais pacientes são responsáveis, de maneira geral, pelo consumo de cerca de 20% dos produtos de banco de sangue.1 Além disso, esses pacientes frequentemente necessitam de reintervenção cirúrgica, o que contribui para o aumento dos custos econômicos.

A etiologia do sangramento em cirurgia cardíaca é multifatorial, com hiperfibrinólise e disfunção plaquetária desempenhando papel fundamental.2 A utilização do bypass cardiopulmonar promove ativação do sistema de hemostasia com progressivo consumo dos fatores de coagulação e ativação plaquetária.3 A perda sanguínea aumentada expõe os pacientes aos riscos de instabilidade hemodinâmica, hipotermia, coagulopatia dilucional e aos riscos inerentes à transfusão de hemoderivados.

Apesar das modificações nas técnicas de bypass cardiopulmonar, utilização de materiais menos biorreativos nos circuitos de circulação extracorpórea, o emprego de estratégias farmacológicas com o intuito de atenuar esses distúrbios hemostáticos é necessário.3 Neste contexto, o uso de drogas antifibrinolíticas tem sido preconizado.

 

SANGRAMENTO ASSOCIADO AO BYPASS CARDIOPULMONAR: PATOGÊNESE

A superfície endotelial constitui a única conhecida capaz de manter a fluidez do sangue e integridade vascular a partir da indução e produção equilibrada de fatores pró e anticoagulantes. O contato do sangue com superfícies sintéticas inicia o processo de coagulação através da geração de trombina.4 Dessa maneira, a utilização de um agente anticoagulante é necessária durante o período de circulação extracorpórea. Heparina não fracionada, embora não seja totalmente satisfatória, é o agente utilizado universalmente.

Clivagem de protrombina em trombina pode ocorrer através de várias vias e gera um fragmento (F1.2) que pode ser usado como um marcador da produção de trombina.4 Alguns autores têm demonstrado que níveis de F1.2 aumentam discretamente com o início do bypass cardiopulmonar, elevando-se gradualmente até a liberação do clamp aórtico, permanecendo altos por algum período após o final da circulação extracorpórea.5

A meia-vida da trombina no sangue é de apenas 30 segundos.4 Entretanto, durante o período de bypass, trombina é gerada continuamente e quantidades variáveis circulam apesar do uso de heparina. Como resultado, ocorre estímulo às células endoteliais dos pequenos vasos nos sítios de trauma cirúrgico, que passam a produzir ativador tecidual do plasminogênio, cujos níveis podem persistir elevados até duas horas após o final do bypass.4,6

Verifica-se então a transformação de um evento destinado à hemostasia local em evento iatrogênico, sistêmico e que tem como resultado a coagulopatia de consumo.

 

APROTININA E O ESTUDO BART

A aprotinina foi introduzida na cirurgia cardíaca em 1989 por Bidstrup et al.7 Eles mostraram que altas doses dessa droga reduziam dramaticamente o sangramento em pacientes submetidos à cirurgia de revascularização miocárdica.4,8

A aprotinina inibe uma variedade de serinas proteases que estão particularmente envolvidas na cascata hemostática e na resposta inflamatória. A aprotinina inibe a fibrinólise por ligação direta com a plasmina. Outra função dessa medicação que contribui para a redução do sangramento microvascular é minimizar a disfunção plaquetária.8,9

Em novembro de 2007, foi concluído o estudo Blood conservation using Antifibrinolytics: a Randomized Trial in high-risk cardiac surgery patients (BART)10, que mostrou alto índice de mortalidade associado ao uso de aprotinina em comparação com os análogos da lisina em cirurgia cardíaca. Esse resultado foi seguido por outros grandes estudos observacionais associando a aprotinina a aumentado risco de dano renal, infarto do miocárdio, choque e morte. Em fevereiro de 2008, dois outros estudos observacionais também publicaram achados similares. Como consequência, a comercialização da aprotinina foi suspensa e os análogos da lisina passaram a ser os antifibrinolíticos disponíveis na prática clínica atual.6,9

 

FARMACOLOGIA DO ÁCIDO TRANEXÂMICO E ÁCIDO EPSILON-AMINOCAPROICO

Os análogos da lisina inibem a fibrinólise por bloquearem competitivamente e com alta afinidade os locais de ligação da lisina no plasminogênio, impedindo, com isso, a formação do complexo entre plasminogênio, fibrina e ativador tecidual do plasminogênio (Figura 1). Os representantes deste grupo incluem o ácido tranexâmico (TXA) e o ácido epsilon-aminocaproico (EACA). Esses agentes compartilham características comuns: baixo peso molecular, hidrofilia, eliminação renal em grande parte na forma inalterada e baixo custo, além de possuírem tempo de meia-vida plasmático muito próximo, em torno de duas horas. O TXA é seis a 10 vezes mais potente in vitro do que o EACA. Os níveis plasmáticos dessas drogas reduzem-se tanto pelo processo de eliminação renal quanto pela distribuição entre os compartimentos corporais. Aproximadamente 75% de ambas as drogas são excretadas pelos rins e o clereance é quase igual ao da creatinina.3,4,6

 


Figura 1 - Ativação da fibrinólise: a ativação do plasminogênio pelo ativador tecidual do plasminogênio (t-PA) resulta na formação da plasmina, que degrada a fibrina em produtos de degradação da fibrina (PDF). Inibição da fibrinólise: em presença de análogos de lisina (ácido tranexâmico ou ácido epsilon-aminocapróico), estes ocupam o sítio de ligação da lisina, impedindo a ligação da plasmina (ou plasminogênio) à fibrina.
Fonte: Adaptado de Fergusson; Levi11 e Santos et al.12

 

USO CLÍNICO E DOSAGEM DOS ANÁLOGOS DA LISINA

Como descrito anteriormente, a perda de sangue não cirúrgico que se registra na cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea (CEC) é devida a uma combinação de excessiva fibrinólise e disfunção plaquetária adquirida. O uso das drogas antifibrinolíticas pode reduzir essa perda de sangue quando usadas profilaticamente, pois inibem, como o próprio nome diz, a fibrinólise, além de diminuírem a ativação plaquetária induzida pela plasmina, preservando, portanto, a função plaquetária.6

Ácido epsilon-aminocapróico

O EACA tem sido usado em cirurgia cardíaca desde 1962. Diversos estudos têm mostrado variada redução na perda de sangue pós-operatória com essa droga, com diminuição média de 200 mL. O número de produtos sanguíneos requeridos durante ou após cirurgia cardíaca com CEC em uso de EACA é inconsistente. Vários autores mostram limitado ou sem benefício o uso do EACA nesta situação. O EACA tende a reduzir o risco relativo de reoperações por sangramento, embora este achado não seja estatisticamente significativo.4,6

A eficácia variável do EACA em reduzir a perda de sangue em cirurgia cardíaca pode ser justificada pelos vários esquemas de doses e níveis séricos ideais existentes. As doses de bolos variam de 50 a 150 mg/kg, seguidos de uma dose de manutenção de 1 2 g/h ou 12,5-30 mg/kg/h. A quantidade de droga adicionada à solução de priming do circuito de circulação extracorpórea tem acentuada variação. Várias pesquisas mostram que a dose deve ser de 5 g ou 75 mg/kg.4,6,13 A concentração alvo do EACA para inibir efetivamente a fibrinólise durante a CEC varia entre 130-260 µg/mL, mas na maioria dos esquemas terapêuticos a concentração média no sangue está bem acima desses valores.3,4

Tendo em vista que a excreção do EACA é quase totalmente realizada pelo rim, disfunção renal resulta em altos níveis plasmáticos da droga após a CEC.6

Ácido tranexâmico

O TXA diminui significativamente a perda de sangue pós-operatória, com notável variação (50-460 mL). A perda de sangue perioperatória total reduz, em média, 440 mL. A redução de reoperações por sangramento não tem significância estatística. O TXA é eliminado rapidamente em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca com CEC quando dado em uma única dose de bolos. Portanto, infusão contínua ou bolos repetidos são necessários. Da mesma forma que o EACA, disfunção renal resulta em altas concentrações plasmáticas depois da CEC.6

Os esquemas de doses ótimas para o TXA são baseados em estudos dose-resposta empíricos e modelos farmacocinéticos. Horrow et al.14 recomendam dose de bolos de 10 mg/kg por 30 minutos depois da indução anestésica e antes da incisão da pele, seguido por infusão contínua de 1 mg/kg/h por 12 horas. Tais autores concluíram que esse esquema foi suficiente para diminuir sangramento depois da CEC e que altas doses não providenciaram benefícios hemostáticos adicionais. Dowd et al.15 sugeriram uma dose de bolos de 12,5 mg/kg seguidos por uma infusão contínua de 6,5 mg/kg/h associados a 1 mg/kg da droga dissolvida na solução de priming do circuito da CEC.4,6

A concentração alvo do TXA para inibir efetivamente a fibrinólise durante a CEC é de 10-20 µg/L.3

Efeitos colaterais

Os análogos da lisina inibem a fibrinólise sem suprimir a geração de trombina. Portanto, existe uma preocupação com os efeitos pró-trombóticos dessas drogas e o aumento do risco de eventos vasculares. Em cirurgia cardíaca com CEC, a infusão dessas drogas depois da heparinização e através de um cateter venoso periférico tem sido recomendada. Contudo, revisões sistemáticas e metanálises não confirmam essas preocupações. Em contraste com a aprotinina, o uso de EACA e TXA não foi associado a aumento de insuficiência renal, infarto do miocárdio e choque quando comparado com o grupo sem tratamento no estudo observacional de Mangano et al.16

Os mais frequentes efeitos adversos relatados com o uso do TXA são sintomas gastrointestinais menores, como náusea e vômito, especialmente quando administrado em altas doses ou injetado rapidamente. A administração de TXA foi associada à alta incidência de convulsões. Avaliação feita por Martin et al.17 em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca com CEC mostrou aumento de convulsões associado ao uso de TXA quando comparado com altas doses de aprotinina (4,6% versus 1,2%, respectivamente). Ender et al. avaliaram três grupos que usaram: altas doses de aprotinina, altas doses de TXA e baixas doses de TXA. Tal trabalho mostrou taxas de convulsões de 1,6% no grupo da aprotinina, 2,9% no grupo do TXA baixas doses e 13,3% no grupo do TXA altas doses. Fibrilação atrial persistente também foi associado ao uso de TXA segundo Martin et al.17(7,9% grupo TXA versus 2,3% no grupo da aprotinina).3,6

O EACA pode produzir microglobulinúria devido a bloqueio reversível e não prejudicial nos sistemas de reabsorção tubular renal. Necrose tubular aguda, disfunção renal induzida por mioglobina, trombose glomerular e obstrução do trato urinário superior têm sido atribuídos ao EACA. Não obstante, essas complicações podem ser associadas ao uso prolongado de altas doses dessa medicação.4,6

 

TERAPIA COM ANTIFIBRINOLÍTICOS ASSOCIADA À REDUÇÃO DE CITOCINAS PRÓ-INFLAMATÓRIAS

O sangue exposto a superfícies estranhas do circuito da CEC, endotoxemia e lesão por isquemia-reperfusão têm contribuído para a resposta inflamatória associada às cirurgias cardíacas. Os fatores associados a essa resposta são a ativação do complemento, da coagulação e do sistema fibrinolítico. Interleucina 6 e 8 (IL-6 e IL-8) são duas citocinas pró-inflamatórias que estão sabidamente aumentadas durante e após cirurgia cardíaca com CEC. A elevação dos níveis dessas citocinas depois da CEC são associadas a aumento do risco de lesão orgânica e morte.8

Greilich et al.8 acompanharam 60 pacientes comparando os níveis séricos de D-dímero (marcador de fibrinólise), IL-6 e IL-8 antes, durante e depois da cirurgia cardíaca com CEC. Os pacientes receberam EACA, aprotinina ou solução salina em regimes de doses similares. Esse estudo demonstrou que o EACA reduziu com significância estatística os níveis de D-dímero e IL-8 em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca com CEC. Esses resultados foram equivalentes aos obtidos com aprotinina. Já os níveis de IL-6 também foram reduzidos com as duas medicações, mas sem significância estatística. Os resultados encontrados indicam que os efeitos dos antifibrinolíticos sobre as IL-6 e IL-8 (citocinas pró-inflamatórias) são devidos à inibição da ativação excessiva da plasmina ou à formação do D-dímero, ou a ambos.8

A ativação do complemento pela plasmina produz anafilatoxinas (C3a e C5a), que ativam leucócitos e esses irão liberar citocinas pró-inflamatórias. Pesquisa feita por Syrovets et al.18 demonstrou que a plasmina pode também induzir diretamente a liberação de citocinas pró-inflamatórias (IL-1α, IL-1β e TNF-α) por monócitos.8

A supressão da formação de D-dímero pode contribuir para a redução das citocinas pró-inflamatórias. Estudos in vitro sugerem que monócitos expostos a fragmentos de D-dímero iniciam a síntese e liberação de IL-6. Esses resultados reforçam que a fibrinólise contribui para a resposta inflamatória.8

 

ANTIFIBRINOLÍTICOS: USO PRÉ-INCISÃO X PÓS-HEPARINIZAÇÃO

Sabe-se que, entre os antifibrinolíticos disponíveis atualmente, há risco teórico em relação ao aumento na incidência de eventos tromboembólicos quando são administrados a pacientes não heparinizados. Isso ocorre porque tais agentes têm forte efeito inibitório sobre a fibrinólise enquanto a geração de trombina persiste.2

Em cirurgia cardíaca há quatro momentos cruciais em que a fibrinólise é desencadeada: incisão da pele, esternotomia, pericardiotomia e circulação extracorpórea. A maioria das avaliações sobre eficácia dos agentes antifibrinolíticos utiliza infusão de tais drogas iniciada antes da incisão da pele, ou seja, pré-heparinização.

Pensando nisso, Kluger et al.2 compararam a eficácia do EACA pré-incisão da pele e pós-heparinização em pacientes submetidos à cirurgia de revascularização do miocárdio. Trata-se de um estudo randomizado, duplo-cego, placebo controlado com a participação de 90 pacientes com características demográficas homogêneas. Esses pacientes foram alocados em três grupos: um placebo e dois EACA (pré-incisão e pós-heparinização). Os resultados mostraram, como esperado, redução do sangramento pós-operatório nos grupos EACA, não havendo diferença estatisticamente significante entre esses dois grupos. Diante disso, os autores do citado trabalho recomendam a utilização do EACA após a anticoagulação devido à mesma eficácia e aos riscos teóricos de complicações trombóticas com a utilização pré-incisão.

É importante, no entanto, considerar que este estudo tem algumas limitações, principalmente em relação ao tipo de cirurgia (CRVM) e ao antifibrinolítico investigado (EACA). Outra questão a ser lembrada é que ele não foi desenhado para comparar a incidência de eventos trombóticos entre os dois grupos EACA (pré-incisão e pós-heparina). Desse modo, os resultados não devem ser extrapolados para outros cenários.

 

USO TÓPICO DE ANTIFIBRINOLÍTICOS

Em razão dos riscos teóricos relacionados ao uso sistêmico dos antifibrinolíticos e a partir do reconhecimento das propriedades de barreira natural do pericárdio, impedindo a difusão livre de substâncias, têm sido publicados trabalhos avaliando a eficácia desses agentes quando utilizados por via tópica.19

Além da reduzida absorção sistêmica, potencialmente com menos efeitos adversos, outra razão para a administração tópica dos antifibrinolíticos seria a ação direta sobre o foco de aumento da atividade fibrinolítica. Sabe-se que em condições fisiológicas o pericárdio humano contém grandes quantidades de ativador tecidual do plasminogênio, o que garante a fluidez do líquido pericárdico e previne a formação de aderências. Diante disso, alguns autores têm demonstrado que, em pacientes submetidos à cirurgia cardíaca, os níveis de complexo antitrombina/trombina e produtos de degradação da fibrina estão significativamente aumentados no líquido da cavidade pericárdica em relação aos níveis sistêmicos, demonstrando a magnitude da atividade fibrinolítica local.19

Em 2009, Abrishami et al.19 publicaram um trabalho de revisão no qual foram avaliados estudos comparando a administração tópica de agente antifibrinolítico e placebo. Os antifibrinolíticos utilizados foram aprotinina e ácido tranexâmico. Nenhum estudo utilizou EACA. Entre as pesquisas comparando aprotinina e placebo houve diminuição no sangramento pelo dreno nas primeiras 24 horas em favor do grupo aprotinina, embora a necessidade de transfusão de concentrado de hemácias não tenha sido estatisticamente significante entre os dois grupos. Em relação ao uso do ácido tranexâmico versus placebo, os resultados foram semelhantes em favor do grupo TXA quanto ao conteúdo do dreno nas primeiras 24 horas e à não significância estatística persistindo quanto ao uso de concentrados de hemácias.19

O uso tópico do EACA também foi avaliado por Breda et al.20 em cirurgia de revascularização miocárdica, comparando seu uso com placebo (n=53). Os resultados mostraram redução do sangramento pelo dreno nas primeiras 24 horas e menos necessidade de transfusão de hemoderivados no grupo EACA, ambos com significância estatística. Apesar do limitado número de pacientes incluídos no estudo, os autores concluíram que o EACA tem efeito positivo em relação à diminuição do sangramento e necessidade de hemotransfusão quando utilizado por essa via.

Efeitos adversos sobre o pericárdio, como aumento de aderências, assim como a real eficácia desses agentes administrados por via tópica, precisam ser avaliados por pesquisas com número mais alto de pacientes antes que tal prática se torne rotina.

 

CONCLUSÃO

Embora o uso de antifibrinolíticos em cirurgia cardíaca já ocorra há vários anos, algumas questões, especialmente em relação à incidência de complicações trombóticas, ainda necessitam de melhor elucidação. A via de administração tópica recentemente hipotetizada como alternativa para a redução dos efeitos adversos decorrentes da administração sistêmica ainda necessita de melhor evidência científica antes de tornar-se rotina em cirurgia cardíaca. Alguns autores têm recomendado início da infusão de tais drogas após a heparinização plena em cirurgia de revascularização miocárdica, sob o argumento de que tal prática não altera o resultado em termos de sangramento e, potencialmente, diminuiria a incidência de complicações trombóticas. No entanto, investigações com outros tipos de cirurgias e destinados a testar o impacto sobre tais complicações são necessários.

 

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