RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 21. (2 Suppl.3)

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Artigos de Revisão

Uso correto do monitor de consciência

Proper use of the monitor of consciousness

Luciana Freitas Queiroz1; Lorena Jrege Arantes2; Neuber Martins Fonseca3; Beatriz Lemos da Silva Mandim4; Roberto Araújo Ruzzi4; Neise Apoliany Martins5; Paulo Ricardo Rabello de Macedo Costa5

1. Médica em Especialização em Anestesiologia do 3o ano do CET/SBA da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia(UFU). Uberlândia, MG - Brasil
2. Médica em Especialização em Anestesiologia do 2o ano do CET/SBA da Faculdade de Medicina da UFB. Uberlândia, MG - Brasil
3. Professor doutor da disciplina de Anestesiologia e responsável pelo CET/SBA da Faculdade de Medicina da UFU. Membro da Comissão de Normas Técnicas e Segurança da Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Título Superior de Anestesiologia pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia TSA/SBA. Uberlândia, MG - Brasil
4. Corresponsável pelo CET/SBA da UFU. Título Superior de Anestesiologia pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia TSA/SBA. Uberlândia, MG - Brasil
5. Instrutor do CET/SBA da UFU. Título Superior de Anestesiologia pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia TSA/SBA. Uberlândia, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Neuber Martins Fonseca
Rua: Antônio Luiz Bastos, 300 Bairro: Morada da Colina
Uberlândia, MG - Brasil CEP 38.401-116
E-mail: neuber.mf@netsite.com.br

Instituição: Serviço de Anestesiologia (CET/SBA) da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, MG - Brasil.

Resumo

O índice bispectral (BIS) é um parâmetro multifatorial que permite a monitorização da componente hipnótico da anestesia. O BIS provê medidas quantificáveis do efeito de anestésicos no cérebro que correlacionam com a profundidade da anestesia. A monitorização da profundidade anestésica na indução e manutenção da anestesia geral previne consciência e despertar intraoperatório, permite titular a quantidade de anestésicos adequada para promover a rápida recuperação da anestesia e evitar efeitos adversos da superdosagem dos fármacos. Desde sua introdução, a monitorização com BIS vem se tornando comum na prática anestésica. Esta revisão tem o objetivo de elucidar o papel do BIS na monitorização da hipnose na anestesia geral. Foi realizada revisão sobre o conceito de anestesia geral e monitorização da profundidade anestésica com o uso do BIS, bem como atualizações dos benefícios de seu emprego para a qualidade da anestesia, interpretação dos artefatos e drogas que podem interferir na sua utilização.

Palavras-chave: Hipnose Anestésica; Hipnóticos e Sedativos; Anestésicos/administração & dosagem. Análise Espectral; Monitorização Intra-Operatória; Consciência no Peroperatório; Processamento de Sinais Assistido por Computador; Eletroencefalografia/instrumentação.

 

INTRODUÇÃO

A anestesia é caracterizada por um complexo de múltiplos estímulos, respostas diversas e interação com medicamentos que levam à maior probabilidade de não responsividade aos estímulos nociceptivos. Pode ser definida com base em dois componentes farmacológicos fundamentais: o efeito hipnótico e o analgésico. O componente de hipnose pode ser criado pelos anestésicos venosos ou inalatórios, enquanto que a analgesia é alcançada com a utilização de opioides ou anestésicos locais. A combinação dos dois componentes resulta em um estado de inconsciência e reduz a resposta hemodinâmica ao intenso estímulo noceptivo.1 Prys-Roberts2, em editorial em 1987, definiu anestesia como estado de inconsciência induzido por medicamentos em que o paciente não percebe nem se lembra do estímulo doloroso. O estímulo nociceptivo foi definido como agente mecânico, químico, térmico ou radiação como causa de potencial dano à célula. É conduzido pelo sistema nervoso somático ou visceral e a resposta ao estímulo pode ser conduzida pelo sistema somático ou autonômico. Respostas somáticas incluem atividade motora e sensitiva. Prys-Roberts dividiu resposta autonômica em quatro categorias: respiração, hemodinâmica, sudomotor e hormonal. A resposta ventilatória pode ocorrer mesmo se não há resposta motora à estimulação cirúrgica. Elevada concentração de anestésicos venosos ou inalatórios é necessária para a supressão da resposta ventilatória se comparada com a resposta somática ao estímulo noceptivo. A resposta hemodinâmica consiste em resposta autonômica ao estímulo, ou seja, aumento do tônus simpático, com elevação da pressão arterial e frequência cardíaca. A resposta sudomotora consiste na sudorese, enquanto que a resposta hormonal consiste em atividade de catecolaminas e corticosteroides. Assim, observou-se que a profundidade da anestesia é de difícil definição, mas que o estímulo cirúrgico nociceptivo induz a uma variedade de respostas reflexas que podem ser moduladas independentemente.2

Kissin3, em 1993, expandiu, refinou e contribuiu para a definição de anestesia, indicando que variado espectro de ações farmacológicas de diversas drogas pode ser utilizado para induzir ao estado de anestesia e que essas ações incluem analgesia, ansiólise, amnésia, inconsciência, supressão da resposta somática motora, cardiovascular e resposta hormonal ao estímulo cirúrgico.

Uma abordagem moderna do que é anestesia define que condição sine qua non de estado anestésico é a inconsciência ou a falta de processamento do pensamento. A dificuldade em definir a profundidade da anestesia ocorre porque o nível de inconsciência não pode ser medido diretamente, o que pode ser medido é a resposta à estimulação. A profundidade da anestesia é determinada pelo estímulo aplicado, a medida da resposta e a concentração da droga no local de ação que desencadeia a resposta (Tabela 1).1

 

 

A certeza de que as drogas anestésicas alteram o eletroencefalograma (EEG) já existe desde o início de século e estudos com utilização do clorofórmio e éter mostraram que os anestésicos alteram a atividade do EEG de ondas rápidas de baixa voltagem para ondas lentas de alta voltagem e postularam que o EEG poderia ser usado para medir os efeitos da anestesia.4

Assim, pode-se inferir que o estado de consciência por meio do registro do EEG, embora não possa ser diretamente medido, pode ser empiricamente aferido por técnicas espectrais, como o índice bispectral (BIS) ou por potenciais evocados, tais como os potenciais evocados auditivos (AEPs). Apesar da medida do nível de consciência não ser direta, após vários estudos foi possível deduzir que essas medidas são preditivas das respostas do estado anestésico (Tabela 2).1

 

 

A consequência da profundidade anestésica inadequada é a consciência no intraoperatório, que chega à incidência na população geral de 0,1% e na população de risco a incidência é de 1 a 1,5%. Existem evidências de que a monitorização adequada da hipnose durante a anestesia provavelmente reduz significantemente o risco de consciência intraoperatória, entretanto, não diminui totalmente o risco. Um espectro de atividade cognitiva, incluindo consciência, formação de memória inconsciente e sonhos têm sido relatados durante a administração de drogas que são utilizadas para induzir e manter a anestesia geral. Em adição, ocorre uma gama de respostas físicas e fisiológicas que podem indicar percepção da dor à estimulação cirúrgica com ou sem consciência.1,5

A indução da anestesia geralmente consiste em injeção intravenosa de hipnóticos (por exemplo, propofol, tiopental e etomidato). O pico de concentração plasmática ocorre geralmente em menos de 30 segundos e diminui rapidamente à medida que é captada por outros tecidos, criando um gradiente de concentração entre o tecido cerebral e o sangue, de tal modo que a droga difunde-se rapidamente de volta ao sangue, de onde ela é redistribuída para outros tecidos que ainda estão captando a droga.1 As rápidas mudanças de concentrações plasmáticas causam uma flutuação correspondente ao grau de depressão do sistema nervoso central (SNC): a profundidade da anestesia aumenta rapidamente (causando perda de consciência) e depois diminui com o declínio das concentrações plasmáticas.1

A monitorização da profundidade anestésica na indução e manutenção da anestesia geral previne consciência e despertar intraoperatório, permite titular a quantidade de anestésicos adequada para promover rápida recuperação da anestesia e evitar efeitos adversos da superdosagem dos fármacos.6 O BIS prevê medidas quantificáveis do efeito de anestésicos no cérebro que correlacionam com a profundidade da anestesia7 e valores de BIS superiores a 60 podem manter memória preservada.8

Estudos multicêntricos randomizados realçaram que o uso do monitor BIS para guiar a administração de drogas anestésicas leva a melhor e mais eficiente utilização dos medicamentos, despertar mais rápido e melhor recuperação da anestesia geral.7

O índice bispectral (BIS) é um complexo parâmetro composto pela combinação de tempo, frequência e componentes de ordem espectral derivados de informações clínicas que medem o componente hipnótico da anestesia. Desde a década passada, o BIS tem sido modificado com base em informações novas sobre a resposta do EEG a recentes anestésicos e à combinação deles, bem como tem incorporado novas tecnologias. No processo de sinalização para gerar um valor de BIS, sinais originários da região frontal são digitalizados e, a seguir, filtrados para evitar interferência de artefatos. O EEG segue três caminhos de análise: análise de poder espectral, análise bispectral e análise baseada no tempo da supressão para criação de modelos padrões de EEG. Este sinal sofre a transformação rápida de Fourier para atingir o bispectrum. A soma desses parâmetros dá origem ao BIS, que é constituído de escala de zero a 100 (Tabela 3).1,9-13

 

 

Para compreender o funcionamento do BIS como uma variável derivada do ECG, torna-se necessário compreender as alterações fundamentais que ocorrem nele durante a indução de anestesia geral com agentes venosos como propofol ou inalatórios como sevoflurano. Durante a sedação com o paciente de olhos fechados, há a predominância de ondas α (8 a 13 Hz). Níveis superficiais de anestesia são acompanhados por redução das ondas α e aumento de ondas β (13 a 30 Hz). O aprofundamento do plano anestésico induz o surgimento de ondas δ (0 a 4 Hz) e θ (4 a 8 Hz) à medida que há simultâneo decréscimo das α e β em todas as regiões. Todas essas mudanças são revertidas na mesma ordem com o retorno da consciência. O BIS é um número adimensional que varia de zero (isoelétrico) a 100 (totalmente acordado). Ele é a soma ponderada de três descritores: o parâmetro Betaratio reflete sedação leve, o SynchFastSlow detecta níveis cirúrgicos de anestesia, enquanto o Burst-Suppression predomina em níveis profundos de anestesia (Tabela 1).9,10

 

 

Glass et al.11 propuseram um estudo para examinar a relação entre valores de BIS, concentração de drogas e aumentos progressivos dos níveis de sedação quando propofol, midazolam, isoflurano e alfentanil eram administrados em pacientes voluntários de forma controlada. Receberam anestésicos 72 pacientes e, como aumento da concentração plasmática, criou-se estado de inconsciência subjetivo. Foram medidos os valores de BIS, concentração sanguínea da droga, nível de sedação subjetiva e escala de memória. O BIS estava intimamente correlacionado com a concentração da droga e também com a medida clínica de sedação. Nenhum paciente sedado com alfentanil perdeu a consciência e eles tiveram alterações mínimas no BIS, confirmando que o BIS não é sensível a baixas concentrações de opioides. Ficaram inconscientes 50 a 95% dos voluntários, com valores de BIS de 67 a 50, respectivamente.11

Flaishon et al.12 examinaram o comportamento do BIS em pacientes cirúrgicos quando doses de propofol (2 mg/kg) ou tiopental (4 mg/kg) com uso concomitante de relaxante muscular eram administradas. Nenhum paciente com valores de BIS inferiores a 58 estavam conscientes e valor abaixo de 65 significava probabilidade menor que 5% de retorno da consciência em 50 segundos.12

Clinicamente, é usado um adesivo unilateral frontotemporal que fornece a propriedade de sensor do BIS. O monitor mostra o valor do BIS e valores inferiores a 55 são recomendados durante anestesia geral.1

Em estudo para avaliar a função de memória na anestesia com monitorização do nível de consciência, a concentração de drogas para manter valores de BIS entre 50 e 60 não necessariamente está associada à baixa probabilidade de memória quando comparada com anestesia sem monitorização do BIS. Este estudo revelou que valores de BIS superiores a 60 podem manter memória preservada durante a anestesia geral.8

O uso do monitor BIS é útil também durante o despertar da anestesia geral e pode prevenir extubação traqueal precoce e suas consequências, principalmente em pacientes com algum grau de retardo mental.7

Em outubro de 1996, a Food and Drug Administration (FDA) aprovou o BIS como uma medida dos efeitos hipnóticos das drogas anestésicas e sedativas. Desde sua introdução, a monitorização com BIS vem se tornando comum na prática anestésica.1,8 No entanto, uma série de relatos na literatura tem demonstrado situações clínicas e artefatos que podem interferir nos valores observados com o BIS.10

 

ANESTÉSICOS E OUTROS FÁRMACOS QUE PODEM ALTERAR OS VALORES DO BIS

Há diversos registros na literatura em que os valores apurados pelo BIS não coincidem com o efeito esperado do anestésico ou com o estado clínico do paciente. São descritas alterações paradoxais do BIS em pacientes sob o uso de óxido nitroso (N2O). Puri et al.14 descreveram redução do BIS de 90 para 30 em paciente submetida à troca de valva mitral cinco minutos após a interrupção da administração desse inalatório.

De modo semelhante, Rampil et al.15 demonstraram redução paradoxal do BIS seis minutos após a retirada da administração de N2O de um valor médio de 95 a 81 para 30 a 50. Esse fato pode ser atribuído a um fenômeno eletroencefalográfico de retirada e supressão peculiar ao uso de N2O, no qual sete a 10 minutos após a interrupção súbita da administração deste inalatório, uma rajada de ondas θ e δ de baixa frequência ocorre difusamente no registro do EEG, um padrão muito similar ao dos níveis profundos de anestesia.

O óxido nitroso tem ação cortical fraca, uma vez que ele age principalmente pela ativação das vias noradrenérgicas inibitórias descendentes no sistema nervoso central e medula espinhal. Esse efeito é completamente indetectável pelo algoritmo do BIS. É em função disso que o N2O demonstrou, em muitos estudos, perda de consciência sem promover mudanças consideráveis nos valores do BIS.10

A ketamina é frequentemente usada em baixas doses como adjuvante para prover analgesia perioperatória ou prevenir hiperalgesia pós-operatória. Em contraste a outros agentes anestésicos, ela produz uma anestesia dissociativa, com efeitos excitatórios ao EEG. Doses de 0,25 a 0.5 mg/kg são suficientes para produzir inconsciência, sem reduzir, no entanto, os valores do BIS.16 Quando administrada com outros agentes venosos, como propofol, é relatado significativo aumento nos valores do BIS, apesar de níveis profundos de anestesia. Nestas condições, a relação entre a monitorização e o grau de hipnose é modificada, a qual poderia enviesar a administração de agentes hipnóticos guiada pelo BIS.17

Os diversos anestésicos inalatórios determinam alterações peculiares sobre o EEG. Desse modo, os valores de BIS não são os mesmos com concentrações equipotentes de diferentes anestésicos.13 Schwab et al.18 avaliaram 33 pacientes que receberam anestesia inalatória de forma randomizada com sevoflurano ou halotano. Eles avaliaram o BIS antes e durante anestesia com 1 e 1.5 CAM. Os valores de BIS em pacientes acordados não foram diferentes nos dois grupos. Com 1 CAM, com ou sem bloqueadores neuromusculares, e com 1.5 CAM, os valores de BIS para pacientes anestesiados com halotano excederam aqueles dos pacientes anestesiados com sevoflurano. Tal achado indica que o BIS apresenta valores droga-específicos.1 É preciso cautela para utilizar o BIS em pacientes anestesiados com halotano para evitar aprofundamento desnecessário do plano anestésico.13

Detsch et al.19 estudaram os efeitos induzidos nos valores do BIS a partir do aumento da concentração de isoflurano em 70 pacientes submetidos à cirurgia abdominal e anestesiados com isoflurano, óxido nitroso e sufentanil. Os resultados desse estudo indicam que o aumento da concentração desse inalatório pode induzir elevação paradoxal no BIS em alguns pacientes. É possível que essa alteração nos valores do BIS esteja associada aos padrões eletroencefalográficos pré-burst contínuos, que consistem em atividades de alta frequência.19

Em relação aos opioides e seus efeitos nos valores do BIS, os estudos são controversos. Uma série de trabalhos tem relatado a insensibilidade do BIS à administração dos opioides. Guignard et al.20 perceberam que a variação da concentração de remifentanil de 2 a 16 ng/mL não determinou alterações nos valores do BIS durante a infusão alvo-controlada de propofol. No entanto, o opioide foi capaz de prevenir o aumento do BIS associado a laringoscopia e intubação orotraqueal de modo dose-dependente. Em outro estudo, Iselin-Chaves et al.21 sugerem que a relação entre o componente hipnótico da anestesia e o BIS é independente da presença de opioide. Entretanto,o nível de consciência e, portanto, o BIS são afetado por estímulos álgicos e essa resposta é abolida tanto pela administração do opioide como pelo aumento da concentração do hipnótico.

Hans et al.22 evidenciaram que a variação do BIS foi significativamente menor quando as concentrações plasmáticas de sufentanil foram elevadas de 0,5 µg/mL para 1 µg/mL durante infusão de propofol. Esses estudos mostram que os opioides parecem modificar a resposta da consciência aos estímulos dolorosos.

 

CONDIÇÕES CLÍNICAS QUE PODEM AFETAR O BIS

Diversos relatos têm demonstrado que o BIS pode ser um índice da atividade cerebral e não apenas um monitor dos níveis de consciência. Langeron et al.23 relataram um caso de elevação dos valores de BIS em um paciente de 84 anos após a correção de um episódio de hipoglicemia grave (1,15 mmol.L-1). Poucos minutos após a infusão de glicose a 30%, rápido aumento no BIS foi verificado sem que outro evento, como alterações hemodinâmicas ou ventilatórias, estímulos neurológicos ou alterações nas taxas de infusão dos sedativos, tivessem ocorrido.

Em outras situações clínicas que determinem queda do débito cardíaco e, como consequência diminuição, da perfusão cerebral, têm sido descritas reduções nos valores do BIS. England24 descreveu um caso de queda acentuada nos valores do BIS em uma paciente que apresentou choque hipovolêmico durante uma cirurgia para troca de valva tricúspide. Durante a esternotomia, houve laceração do átrio direito, com queda súbita da pressão arterial. Cerca de dois minutos após o evento, os valores do BIS apresentaram redução, enquanto o parâmetro Burstsuppression se elevou. Esse atraso na resposta do BIS pode ser decorrente do tempo de resposta inerente ao algoritmo do aparelho, ao fenômeno de autorregulação e também ao atraso entre queda da pressão arterial, redução do fluxo cerebral e disfunção neuronal.24

A hipotermia é outro fator que pode alterar os valores do BIS. Mathew et al.25, num estudo prospectivo, avaliaram 100 pacientes submetidos à cirurgia cardíaca com bypass cardiopulmonar. Foi observada significativa associação entre temperatura corporal (aferida por meio de um termômetro nasal) e valores do BIS, independentemente da idade dos pacientes. Estimou-se redução de 1.12 pontos no BIS para cada grau centígrado de queda na temperatura.

Além disso, há estudos que sugerem que o posicionamento do paciente altera os valores do BIS, uma vez que pode interferir no fluxo sanguíneo cerebral. Abdullah e Almarakbi26 verificaram que há significativo aumento do BIS nas posições de cefalodeclive quando comparadas as posições neutras (médias de 47 x 40), enquanto as posições de cefaloaclive significativamente reduzem o BIS (39 x 41).

 

INTERFERÊNCIAS DE EQUIPAMENTOS ELÉTRICOS

Há diversos relatos de dispositivos elétricos que podem causar interferências e alterar os valores do BIS. Durante um procedimento endoscópico de seios nasais foram descritos dois casos de elevação do BIS em função do campo eletromagnético criado pelo aparelho endoscópico. Tais sistemas elétricos podem criar vibrações, simulando ondas de ECG encontradas na anestesia superficial. Uma vez captadas pelos eletrodos do BIS, tais vibrações são traduzidas em valores elevados, que não refletem o estado clínico de anestesia.27 De forma semelhante, há evidências de aumento súbito do BIS em pacientes submetidos à artroscopia de ombro a partir do início do uso de shaver, provavelmente decorrente das vibrações por ele produzidas.28 O monitor do BIS apresenta uma barra que indica a qualidade do sinal e que pode revelar a presença de artefato. No entanto, nem sempre isso ocorre. Há registros de elevação falsa do BIS quando uma manta térmica foi colocada sobre a cabeça do paciente. Não havia sinais clínicos que indicassem plano anestésico superficial e a barra de sinal mostrava ótima qualidade, sem sinais de interferência por atividade muscular. Quando o fluxo de ar quente na manta foi desligado, houve redução do BIS de 90-70 para 55-35. Especulou-se que a vibração gerada pela circulação do ar próximo da cabeça dos pacientes tenha sido responsável pelas alterações observadas.29

 

ALTERAÇÕES RELACIONADAS AO MONITOR

Para que o BIS seja um monitor confiável do nível de consciência transoperatória, ele deve sofrer influência previsível dos diferentes fármacos utilizados na prática clínica, bem como apresentar boa reprodutibilidade intra e interpaciente. Com o objetivo de averiguar a reprodutibilidade dos valores do BIS interpaciente, foi conduzido um estudo no qual foram utilizados concomitantemente no mesmo paciente dois monitores de BIS-XP. Salientou-se que durante cerca de 10% do tempo de observação, os resultados dos dois monitores foram diferentes, sendo que em 6% do tempo houve períodos sustentados de 30 segundos ou mais em que as diferenças de leituras foram de 10 ou mais unidades. Esse estudo sugere que BIS-XP não proporciona reprodutibilidade consistente e que os anestesiologistas não devem utilizar exclusivamente os valores do BIS para estimar o grau de profundidade anestésica.30

Outros fatores a serem considerados durante a monitorização com o BIS são as diferentes versões do algoritmo. As versões mais antigas e a mais recente (BIS-XP) podem apresentar valores diferentes, segundo alguns trabalhos. Dahaba31, em um estudo que visava a verificar os efeitos do bloqueio neuromuscular com mivacúrio em pacientes monitorizados com diferentes versões do BIS (convencional A-2000 e BIS-XP), percebeu que o início de ação do bloqueador desencadeou diferentes respostas nos valores do BIS. Aqueles monitorados com a versão antiga apresentaram aumento nos valores, enquanto os do BIS-XP declinaram. Tais diferenças podem ocorrer em função da inclusão nos modelos mais recentes de mecanismos que atenuam as interferências e a atividade eletromiográfica, resultando em valores mais baixos nas versões mais novas.31

Além disso, fatores como impedância e posicionamento dos eletrodos devem ser considerados. Podem ocorrer valores elevados do BIS quando, por mau posicionamento, limpeza inadequada da pele ou má-aderência, a impedância dos eletrodos fica aumentada. Os eletrodos específicos para o BIS garantem baixa impedância na captação do sinal, mas apresentam custo elevado. Hemmerling e Harvey.32 sugeriram o uso de eletrodos de eletrocardiograma (ECG) como uma opção acessível e barata para substituir os eletrodos específicos, tendo encontrado boa concordância de valores entre os sensores originais e os de ECG, após o preparo adequado da pele com álcool e o uso de um adaptador para conectar os sensores ao monitor. Em estudo prévio semelhante, foi apresentada comparação entre os valores do BIS obtidos por eletrodos de ECG e os originais. Nessa pesquisa, a preparação foi realizada com pasta abrasiva e encontrou-se boa correlação entre os valores captados pelos sensores originais e os de ECG.33

Além disso, deve-se considerar a disposição dos eletrodos durante a monitorização. Os sensores do BIS foram desenvolvidos como uma faixa única composta de três a quatro eletrodos que são colocados na fronte dos pacientes. Essa montagem difere do padrão de EEG convencional que utiliza 10 a 20 eletrodos dispersos pela cabeça. Apesar dessa disposição não usual, tem sido descrita a efetividade desse padrão de monitorização. Shiraishi, em estudo envolvendo 25 pacientes submetidos a clipagens de aneurismas cerebrais não rotos, utilizou, em cada paciente, os eletrodos do BIS na posição occipital e frontal e comparou os valores obtidos nas duas posições. Percebeu-se forte correlação entre os valores encontrados nas duas montagens, o que sugere que os eletrodos do BIS podem ser colocados na região occipital nos casos em que o campo operatório dificulte a utilização frontal usual.34

A atividade eletromiográfica (EMG) e os bloqueadores neuromusculares (BNM) podem influenciar significativamente na monitorização do BIS.13 Estudo conduzido em pacientes sedados em unidades de terapia intensiva destacou que os valores do BIS podem ser superestimados em função da alta atividade muscular.35 Recentemente, novos eletrodos foram desenvolvidos (BIS XP Quatro®. model A2000v.3.12; Aspect Medical Systems, Inc., Newton, MA,USA) com o intuito de melhorar a aquisição de sinal pela adição de um filtro.36

 

PADRÕES ANORMAIS DO EEG QUE PODEM AFETAR O BIS

EEG de baixa voltagem

As variantes geneticamente determinadas de EEG de baixa voltagem são definidas como EEG de amplitude < 20 mV por todas as regiões do crânio. Essas variantes são normais e ocorrem em 5 a 10% da população e não estão associadas à disfunção cerebral. O gene responsável por essa alteração localiza-se na porção distal do cromossomo 20.37 Há relato de um voluntário totalmente consciente que exibia valores baixos de BIS (40) em duas ocasiões diferentes. Um EEG de 16 derivações mostrou baixa voltagem geneticamente determinada.38

Como o algoritmo do BIS foi construído a partir de amostras de EEC em pacientes sem a variante, espera-se que esse padrão não seja reconhecido pelo monitor. Em função desses casos, torna-se importante confirmar o valor do BIS em todos os pacientes antes da indução anestésica.13

Desordens neurológicas

Pacientes com doença de Alzheimer, quando acordados, apresentam valores de BIS mais baixos do que indivíduos idosos, na mesma faixa etária, usados como controle. Apesar do resultado desse estudo, são necessárias novas investigações para atestar a validade do BIS no diagnóstico de demência.39

Além disso, tem-se descrito que os valores de BIS tanto durante anestesia com sevoflurano a 1% quanto no despertar anestésico são significativamente mais baixos em crianças com encefalopatia hipóxica quando comparadas com crianças normais.40

De modo interessante, o BIS tem sido utilizado em alguns estudos com o intuito de prever desfecho neurológico em pacientes graves. Myles et al. encontraram forte correlação entre traçados anormais de BIS e desfecho neurológico ruim.41 De modo semelhante, em outro trabalho, 24 horas após a retirada completa dos sedativos o valor médio do BIS foi de 43 em pacientes internados em unidades de terapia intensiva que não acordaram após injúria cerebral grave, enquanto valores médios de 63 foram apurados no grupo de pacientes comatosos que despertaram. Desse modo, o BIS parece ser útil para avaliar prognóstico neurológico em pacientes com injúria cerebral.42

 

CONCLUSÃO

Revelou-se que níveis profundos de hipnose sem analgesia não previnem a resposta hemodinâmica a um estímulo nociceptivo e que níveis profundos de analgesia não garantem inconsciência. O sinergismo entre hipnóticos e analgésicos é utilizado diariamente na prática dos anestesiologistas e garante a supressão da resposta hemodinâmica ao estímulo e à inconsciência. Consciência no intraoperatório é um problema clínico importante que às vezes resulta em sequelas psicológicas prolongadas para o paciente. A avaliação e preparação pré-anestésica e observação cuidadosa no intraoperatório podem ajudar a diminuir a incidência de consciência no intraoperatório e as consequências desastrosas desse fato. Existem monitores eletrofisiológicos que podem ser usados para avaliar a magnitude das mudanças induzidas pelos fármacos no EEG e que ajudam a titular as doses dos anestésicos. O BIS é o mais extensivamente utilizado. O BIS correlaciona o efeito dos hipnóticos na memória, sedação e consciência, mas deve ser usado em conjunto com outros sinais clínicos do paciente, com o estímulo nociceptivo e os fármacos utilizados. Titulação guiada pela monitorização com o BIS diminui a incidência de consciência no intraoperatório e seu uso deve ser incentivado na prática clínica dos anestesiologistas.

 

REFERÊNCIAS

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