ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Toxicologia e profissionais de saúde: uso abusivo e dependência
Toxicology and health professionals: drug abuse and dependence
Júnia Maria Drumond Cajazeiro1; Danielle Marques Bicalho1; Ana Luiza Rodrigues Peixoto Arruda1; Tamyris Jane de Almeida Lopes2; Renato Santiago Gomez3
1. Acadêmica do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. Acadêmica do curso de Psicologia da Faculdade Pitágoras. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. Professor Associado do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da UFMG. Belo Horizonte, MG - Brasil
Danielle Marques Bicalho
Rua Antônio Teixeira Dias, 1.240 Bairro: Teixeira Dias
Belo Horizonte, MG - Brasil CEP: 30642-270
E-mail: daniellebicalho@gmail.com
Recebido em: 16/08/2011
Aprovado em: 11/06/2012
Instituição: Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
Na década de 1990, foi demonstrada alta prevalência no uso abusivo de opioides pelos anestesiologistas. Desde entao, houve aumento nas pesquisas desse tipo de comportamento entre os profissionais da área de saúde. No entanto, observa-se aumento da prevalência da dependência de drogas entre esses profissionais, devido a várias situações como: estresse, extensas jornadas de trabalho e o fácil acesso aos medicamentos. Outros fatores envolvidos estao relacionados a aspectos bioquímicos, genéticos e psiquiátricos.
OBJETIVO: discutir a real prevalência, a etiologia e as estratégias de controle no abuso de propofol, opioides e cetamina entre os profissionais da saúde, especialmente entre as especialidades médicas.
MÉTODOS: revisão de artigos científicos disponíveis nos bancos de dados do Pubmed e Scielo.
RESULTADOS: entre os profissionais de saúde, a prevalência da dependência química de propofol, opioides (principalmente fentanil e sufentanil) e cetamina é mais alta entre os anestesiologistas, médicos socorristas e psiquiatras. Foi encontrada considerável associação entre a dependência química desses profissionais e outras psicopatogenias, como transtornos de personalidade e depressão. Esses transtornos podem até mesmo influenciar a escolha da droga utilizada.
CONCLUSÃO: apesar do aumento do número de dependentes químicos em propofol, opioides e cetamina entre os profissionais da saúde, existem poucas estratégias de controle para impedir o acesso a esses medicamentos para uso próprio. Além disso, há poucas informações sobre a segurança do profissional em relação ao retorno ao ambiente de trabalho após o período de reabilitação.
Palavras-chave: Toxicologia; Pessoal de Saúde; Detecção do Abuso de Substâncias; Anestésicos; Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias; Transtornos Relacionados ao Uso de Opióides; Reabilitação.
INTRODUÇÃO
A investigação do abuso de substâncias nos profissionais de saúde é antiga. Estudo publicado em 1883 demonstrou que a população médica tinha elevado risco de morrer por complicações da cirrose ou por envenenamento, sugerindo provável aumento da prevalência do uso abusivo de drogas por essa população.1 Após um século, em 1993, foi publicado estudo demonstrando alta prevalência no uso de opioides pelos anestesiologistas.2 Posteriormente, outros trabalhos descreveram o uso abusivo de substâncias por profissionais das mais diversas especialidades médicas.3,4
Apesar das pesquisas demonstrarem prevalência do uso abusivo semelhante ao da população em geral, tem-se percebido o aumento da prevalência da dependência de drogas entre os profissionais de saúde, explicável por fatores como o grande estresse no exercício profissional e as extensas jornadas de trabalho. Outra hipótese etiológica relaciona-se aa aspectos da bioquímica e ao tempo de exposição, sugerindo que o encontro de grande prevalência de abuso em determinadas especialidades, como anestesiologia5, poderia ser relacionado à inalação de nanopartículas de sedativos halogenados diariamente6, durante o ato anestésico, gerando um fenômeno de tolerância ao medicamento e, após algum tempo, abstinência e, consequentemente, a dependência e/ou o abuso. Entretanto, essa teoria não leva em conta o fato de que a maioria dos diagnósticos de abuso e dependência é feita nos primeiros anos de carreira profissional ou até mesmo na residência, e não tardiamente. Outras hipóteses seriam relacionadas à genética, uma vez que normalmente os profissionais que apresentam uso abusivo ou dependência têm história familiar positiva para distúrbios relacionados ao uso de substâncias e à psiquiatria, sendo alta a prevalência de distúrbios do humor e de personalidade encontrado nessa população.6 O consumo de opioides normalmente é feito concomitante com o uso abusivo de álcool.2,4,5
Nas últimas décadas, a Psicologia presenciou grandes mudanças e descobertas psíquicas que podem explicar transtornos de personalidade e comportamento.
MÉTODOS
Revisão bibliográfica utilizando os descritores "abuse" ou "addiction" e "healthcare professionals", nos bancos de dados do Scielo e Pubmed on-line. Foram identificados 258 artigos até 2011 e selecionados 20, aqueles com maior abrangência do assunto e mais importância em relação ao número de citações e ao julgamento dos autores.
RESULTADOS
Os termos dependência e abuso são, muitas vezes, inadequadamente usados como sinônimos. Neste trabalho considera-se como uso abusivo quando há utilização de drogas de abuso sem consequências sociais. Alguns sinais de uso abusivo são não cumprimento, repetidas vezes, de obrigações em emprego, escola e em casa; o uso da substância em situações perigosas como dirigir e na operação de máquinas; envolvimento com problemas legais relacionados à substância; e continuar o seu uso a despeito das consequências adversas.7 É comum também dificuldades ou conflitos em relações profissionais e sociais. Já na dependência, há manifestações psicológicas e alterações comportamentais associadas. Entre os sintomas, encontra-se a necessidade cada vez maior da substância para se obter o mesmo efeito e a síndrome de abstinência com a interrupção do uso. É importante salientar que o uso abusivo precede a dependência.
Vários estudos mostram que de 10 a 15% dos profissionais de saúde farao uso indevido de drogas durante sua carreira e, na especialidade médica, 6 a 8% dos médicos têm transtorno por uso de substâncias, e quando se trata de álcool, atinge aproximadamente 14%.5
Entre os profissionais de saúde, a prevalência da dependência física de opioides - principalmente fentanil e sufentanil8 - é mais alta entre os anestesiologistas, os médicos socorristas e os psiquiatras. Foi encontrada também considerável associação entre a dependência física desses profissionais e outras psicopatogenias, como transtornos de personalidade - personalidade obsessivo-compulsiva - e transtornos do humor - como a depressão ou a ansiedade - que podem até mesmo influenciar a escolha da droga utilizada, na tentativa de controle dos sintomas, por exemplo: estresse, cansaço, ansiedade ou depressão.
Outro fator encontrado na tentativa de controle de sintomas é uma das características mais marcantes do uso abusivo ou da dependência de medicamentos entre os profissionais da saúde: a tentativa de automedicação, como motivação inicial do uso dessas substâncias.
Encontra-se também, entre as características específicas dessa população, a demora na procura por ajuda após o diagnóstico do problema, o que talvez possa ser explicado pelo medo da quebra do mito do médico sem problemas e autossuficiente. Além disso, a falta do diagnóstico precoce, que piora o prognóstico - e que poderia ser feito pelos colegas de trabalho e familiares -, é muito marcante nesse grupo específico da população.3,5,7,8
Conhecer os principais sinais e sintomas do abuso de substâncias no trabalho é importante para o diagnóstico precoce e a intervenção efetiva. Dessa forma, colegas de trabalho podem estar atentos a mudanças de comportamento do dependente químico e contribuir para o tratamento adequado. Na Tabela 1 estao descritos, de forma sistematizada, os principais sinais e sintomas do uso abusivo no ambiente profissional.
Após a aceitação do distúrbio relacionado ao uso de substâncias, aparece um novo paradigma: o tratamento e a reabilitação do profissional de saúde. Alguns países possuem programas específicos para profissionais da saúde com distúrbios relacionados ao abuso e dependência de substâncias, como os Estados Unidos.9 Já no Brasil foi encontrada a Rede Estadual de Apoio a Médicos Dependentes químicos, criada em 2002 a partir da parceria entre o CREMESP e a UNIFESP. Essa rede possui atendimento ininterrupto e, após contato por telefone, o médico é encaminhado para avaliação e posterior tratamento. A família do dependente também recebe apoio psicoterápico.
O tratamento farmacológico, geralmente, é reservado para casos agudos de intoxicação, em crises por abstinências ou quando estao envolvidas complicações médicas. Para facilitar a abordagem à abstinência dessas substâncias, intervenções psicossociais são essenciais no plano de tratamento. Os enfoques psicoterapêuticos para a dependência variam da psicanálise tradicional às técnicas cognitivo-comportamentais. No enfoque psicoeducacional, os pacientes e seus familiares recebem a informação necessária para o entendimento do conceito da doença, de seus sinais e sintomas, do processo de recuperação e da ocorrência de recaídas. A prevenção de recaídas é um tratamento cognitivo-comportamental que combina o treinamento de habilidades comportamentais e as técnicas de intervenção cognitiva, com o objetivo de auxiliar os pacientes na manutenção do comportamento abstinente.10
A presença de grupo especializado no tratamento específico para profissionais da área de saúde é muito importante devido às suas particularidades em relação ao conhecimento dos efeitos colaterais, dose letal, efeitos da abstinência, entre outras características.4,5,8,9
Terminado esse tratamento inicial, constituído pela desintoxicação, pela internação e manutenção de grupos de autoajuda, fica o questionamento se o profissional poderia voltar a atuar na mesma especialidade ou se seria necessária a troca da especialidade. Entretanto, poucos estudos foram feitos sobre esse assunto, sendo ainda bastante controverso quando é necessário ou benéfico para o profissional a mudança de local de trabalho, o tempo necessário de afastamento ou mesmo as novas condições de trabalho após o tratamento, sendo que esse questionamento ainda não possui respostas abrangentes e completas.2,9
A volta do profissional de saúde ao trabalho é questao difícil, porque voltará ao ambiente onde tem acesso à droga viciada. Geralmente o retorno ao posto de trabalho é gradual e supervisionado. Isto é, no início a jornada de trabalho é reduzida e alguns horários são restritos, como os de final de semana e os noturnos. Algum colega de cargo ou um superior é encarregado de estar sempre por perto e vigiar o recém-tratado. Vale ressaltar que a maneira de reintrodução do paciente depende do protocolo do serviço.
Para que o tratamento possa ter sucesso, é fundamental a manutenção do tratamento psiquiátrico; o apoio à recuperação por colegas e supervisores; a monitorizarao comportamental e laboratorial constante. Para se evitar o abuso de substâncias, é essencial educar no sentido de reduzir a automedicação; treinar os colegas para identificação do transtorno; e conscientizar da importância de relatar o provável abuso. Afinal, é sabido que o tratamento precoce melhora o prognóstico.9
DISCUSSÃO
O estresse não é doença, mas estado emocional produzido por esforço à tensão. Esse termo foi criado pelo médico Hans Selye9,10, que o definiu como a soma de respostas físicas e mentais causadas pelos estímulos externos e que o indivíduo, na tentativa de superar determinadas exigências do meio ambiente, sente o desgaste físico e mental.11
O estresse é dos fatores que incitam as primeiras experiências do uso de drogas no ambiente de trabalho. De acordo com a teoria cognitiva comportamental, a dependência química provém da interação entre cognições, que interagem com sistemas emocionais, ambientais e fisiológicos, determinando a probabilidade da pessoa ser dependente. Uma das bases da teoria cognitiva é o fato de que a cognição tem relação direta sobre emoções e comportamentos.
O homem possui um mecanismo instintivo. A teoria do aprendizado social estuda como aprendem a agir, pensar e sentir submetidos a determinadas situações.7 Uma das técnicas desenvolvidas para identificar, testar e corrigir as distorções cognitivas é instruir o paciente sobre seu atual problema e o processo terapêutico.11
O monitoramento dos pensamentos automáticos negativos, a crença do indivíduo sobre si mesmo, sobre o outro e sobre suas relações com o mundo externo é fundamental. Os pensamentos automáticos derivam de um "erro cognitivo". A expressão "eu não consigo" é um exemplo clássico do pensamento inconsciente, automático e negativo.
O individuo diante de situação de alto risco de recaída pode responder com enfrentamento ou não. Nessa situação, há aumento de autoeficácia, na intenção de atingir uma meta, com isso diminui a probabilidade de recaída.11
O paciente viciado tem visão dividida, ora com efeitos positivos, ora negativos. Nas primeiras experiências de uso da droga, ele tem cognição distorcida. A violação inicial da abstinência, lapso, é uma área de transição para a recaída, definida como retorno ao uso continuado que nem sempre é como o padrao anterior à abstinência.
A abordagem do profissional dependente químico deve ser multidisciplinar e multifacetada. As principais formas de tratamento para transtornos de uso de substâncias são: psicoterapias, grupos de autoajuda mútua (Narcóticos Anônimos), tratamento hospitalar, tratamento ambulatorial e tratamento psicofarmacológico.11
Por se tratar de indivíduos que trabalham diretamente com a saúde de outros, é de fundamental importância a adoção de medidas que visem à prevenção de recaídas, podendo ser utilizadas ferramentas e artifícios psicológicos isolados ou combinados ao tratamento farmacológico. Essas medidas podem ser tomadas dentro da instituição de trabalho do próprio paciente/médico, como, por exemplo, pela instituição de programas em que os profissionais de saúde vigiam uns aos outros, como é proposto por Bentham, na teoria de "vigilância social".9-11 Nessa teoria, o indivíduo sabe que pode estar sendo observado, mas não sabe por quem, o chamado "pan-opticon" Uma analogia seria uma penitenciária em que as celas se localizam na periferia do pátio e no centro há uma guarita. O preso sabe que está sendo vigiado, pois da guarita há visão privilegiada de todos os ângulos da cela, mas por possuir vidro escuro, não sabe se há alguém naquele momento vigiando-o, nem ao menos sabe quem é o encarregado por essa função. Dessa forma, há inibição dos impulsos devido ao receio de ser exposto a uma situação constrangedora e estressante, que acarretaria prejuízos à sua carreira profissional. Vale ressaltar que se enquadram nessa situação apenas profissionais que já estao sob tratamento, uma vez que esse profissional já está em processo de mudança comportamental e deseja melhora em seu quadro.
Outro problema que não deve ser esquecido é a dificuldade em aceitação de um profissional em tratamento por sua antiga equipe de trabalho, além da dificuldade do próprio profissional em voltar ao seu antigo posto. O questionamento feito é a respeito da tolerância e da convivência com o antigo objeto de vício, além da manutenção da capacidade de cuidar de outro paciente novamente. Seria o profissional capaz de lidar com esse estresse? Poderá a raposa cuidar das galinhas? Essa ideia socioprofissional pode passar pela mente de colegas de trabalho, de superiores e até mesmo dos pacientes que buscam a ajuda de um médico assistente. Além disso, ainda há o questionamento do próprio paciente sobre a capacidade do médico assistente em reabilitação. Diante disso é que o tratamento e acompanhamento de longo prazo devem ser instituídos e realmente aplicados.
CONCLUSÃO
Apesar da constatação do aumento da dependência física e do abuso de opioides e outras drogas entre os profissionais da saúde, pouco ainda se faz para garantir melhor controle das quantidades de medicamentos utilizados pelos profissionais e, com isso, tentar impedir o acesso a esses medicamentos para uso próprio. Isso porque, uma vez que o fácil acesso a algumas substâncias no local de trabalho e a pouca, ou nenhuma, fiscalização da quantidade de medicamentos utilizadas durante a jornada de trabalho facilitam a drogadição por medicamentos hipnóticos e analgésicos opioides.2,3 Menos ainda se sabe sobre a segurança do profissional no retorno ao ambiente de trabalho após reabilitação e sobre alternativas que poderiam ser viáveis a esses profissionais.10,11 Por se tratar de profissional que lida diretamente com a vida de seus pacientes, sua capacidade crítica de julgar deve estar preservada, por isso a importância de programas de vigilância social e terapias de longo prazo, a fim de manter o profissional em período de abstinência e preservar, assim, seu adequado discernimento profissional.
REFERENCIAS
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11. Silva CJ, Serra AM. Terapia cognitiva comportamental em dependência química. Rev Bras Psiquiatr. 2004;2(Supl I):S33-9.
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