RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 15. 3

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Relatos de Casos

Botulismo: relato de caso

Food borne botulism: case report

Juliana Cristina Silva Fraga1; Adebal Andrade Filho2

1. Médica residente de Clínica Médica do Hospital João XXIII
2. Adebal Andrade Filho - Médico Especialista em Clínica Médica, plantonista do Serviço de Toxicologia do Hospital João XXIII

Endereço para correspondência

Juliana Cristina Silva Fraga
Rua Araguari, 1413, ap. 400 - Santo Agostinho
30190111 Belo Horizonte - MG
e-mail: julifraga@ig.com.br

Data de submissão: 11/08/03
Data de aprovação: 10/02/04

Resumo

É relatado o caso de um paciente de 39 anos, com quadro agudo de sintomas gastrointestinais e neuroparalíticos, após ingestão de alimentos contaminados. O quadro evoluiu com parada cardiorrespiratória e necessidade de ventilação mecânica. O diagnóstico de botulismo foi confirmado pelo achado da toxina tipo A em amostras de sangue do paciente, que recebeu suporte clínico e tratamento específico com antitoxina botulínica, recuperando-se sem apresentar seqüelas.

Palavras-chave: Botulismo/diagnóstico; Botulismo/quimioterapia; Antitoxina Botulínica/uso terapêutico.

 

INTRODUÇÃO

O botulismo é uma doença neuroparalítica grave, de ocorrência súbita, causada pela ação de uma potente neurotoxina. Apresenta elevada letalidade e deve ser considerada como emergência médica e um problema de saúde pública.

No Brasil, é doença rara e de notificação compulsória. De janeiro a maio de 2003 foram notificados 12 casos, sendo apenas um caso confirmado1. Nos Estados Unidos existe uma média de 15 surtos dessa doença por ano2.

O agente etiológico é o Clostridium botulinum, um bacilo gram-positivo, anaeróbico e esporulado, que está amplamente distribuído na natureza. Pode ser identificado em vegetais, no mel, em intestinos de mamíferos, peixes e vísceras de crustáceos. Sua forma vegetativa produz oito tipos de toxina (de A a G), porém apenas os tipos A, B, E e F são patogênicas ao homem - principalmente as toxinas A e B.3 Para o desenvolvimento da toxina botulínica, são necessários pH básico ou próximo do neutro, anaerobiose e temperaturas acima de 15ºC. Ela pode ser letal por ingestão de doses pequenas como 70 mg, comportando-se como um verdadeiro veneno biológico4.

São descritas quatro formas principais de transmissão:

  • botulismo alimentar: quando os alimentos ingeridos contêm a toxina;
  • botulismo infantil: por ingestão de esporos, seguida da produção e absorção da toxina botulínica na luz intestinal;
  • botulismo por contaminação de ferimentos: pela produção de toxinas nos ferimentos contaminados;
  • botulismo inadvertido: como conseqüência indesejada do uso terapêutico da toxina botulínica.
  • O período de incubação varia de acordo com o tipo de transmissão envolvida. Pode manifestar-se rapidamente entre duas e 36 horas, ou demorar até 10 dias no botulismo alimentar. Geralmente, quanto mais curto o período de incubação, maior a gravidade e a letalidade dos casos.5,6

    As manifestações clínicas estão relacionadas à ação da toxina nas junções neuro musculares. A toxina atinge a corrente sangüínea e desta passa às membranas pré-sinápticas, onde atua impedindo a liberação de acetilcolina, o que ocasiona paralisia5,6. A lesão sináptica é irreversível e a recuperação só ocorre após a formação de novos terminais nervosos, que pode demorar de quatro semanas a 12 meses.

    Os sintomas gastrointestinais, como náuseas, vômitos e diarréia, geralmente precedem as manifestações neurológicas - cefaléia, vertigem, tonteira e sonolência. Posteriormente, o quadro pode evoluir com comprometimento de nervos cranianos (paralisia facial, disartria, disfagia, diplopia, ptose palpebral, turvação visual e redução dos movimentos do globo ocular, da língua, do palato e da musculatura cervical), paralisia flácida e disfunção autonômica.

    Na maioria dos casos, a fraqueza muscular progride de modo descendente e simétrico. Pode acometer a musculatura torácica, produzindo dispnéia. Normalmente, os reflexos profundos estão reduzidos ou abolidos, mas a sensibilidade está preservada. A disfunção autonômica caracteriza-se por midríase, diminuição do reflexo pupilar à luz, xerostomia e constipação intestinal.

    Os sinais e sintomas do botulismo são reversíveis, embora a fraqueza possa persistir por meses3,5. Uma característica importante é a preservação do nível de consciência5,6. As complicações surgem devido à insuficiência respiratória e à longa permanência sob assistência ventilatória6.

    O diagnóstico laboratorial é feito através de bioensaio em camundongos ou através do cultivo do C. botulinum7,8. A cepa do C. botulinum cultivada tem de ser produtora da toxina danosa ao homem, para confirmação diagnóstica5. No bioensaio, a amostra é inoculada nos camundongos e observa-se a ocorrência de sintomas compatíveis com a doença. A caracterização do tipo de toxina é feita pela inativação com antitoxinas polivalentes e tipo específicos. Embora existam métodos mais rápidos de triagem, como o Elisa e o radioimunoensaio, eles não são considerados satisfatórios quanto à sensibilidade e especificidade7,8.

    A coleta de amostras de sangue, alimentos ingeridos e fezes deve ser realizada o mais precocemente possível, pois a toxina pode não ser mais encontrada após oito dias do início dos sintomas. No Brasil, o laboratório de referência é o Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo, para onde as amostras devem ser enviadas sob refrigeração, pois se trata de toxina termolábil5.

    A eletroneuromiografia, apesar de apresentar alterações inespecíficas para o diagnóstico de botulismo, pode auxiliar no diagnóstico diferencial de outras afecções neuromusculares como síndrome de Guillain-Barré e miastenia gravis. A anormalidade eletrofisiológica mais importante do botulismo é a pequena amplitude dos potenciais de ação, em resposta a uma estimulação nervosa supramáxima nos músculos afetados. Geralmente, há aumento do recrutamento muscular após estimulação repetitiva, com freqüências de 20 a 50 Hz9.

    O diagnóstico diferencial é feito com doenças/intoxicações que cursam com fraqueza muscular súbita.

    O tratamento é composto de suporte clínico e uso de antitoxina específica, realizado em unidade de terapia intensiva. A ventilação artificial é necessária em 30% a 50% dos casos5.

    O soro antibotulínico (heterólogo) administrado pode ser específico para o tipo imunológico ou polivalente (anti- A, B, E e F). Ele é fornecido pelo Instituto Butantan e deve ser solicitado à Central de Vigilância Epidemiológica/Centro de Referência do Botulismo (0800-55-5466) - serviço com atendimento médico 24 horas5.

     

    RELATO DO CASO

    E. L. M. O., 39 anos, masculino, leucodérmico, natural e procedente de Belo Horizonte (MG), iniciou quadro de vômitos, diarréia e turvação visual.

    Dois dias depois, foi admitido no Hospital João XXIII com aparecimento abrupto de ptose bipalpebral, disartria, xerostomia, disfagia, desconforto respiratório, miastenia e dor cervical que irradiava para o tórax. Ao exame, apresentava pupilas midriáticas, fotorreativas, nível de consciência, tônus e força muscular preservados, sem outras alterações.

    Na véspera do início dos sintomas, havia feito viagem, durante a qual havia ingerido palmito, salsicha e mussarela, servidos pela empresa transportadora. Os sintomas iniciaram-se, aproximadamente, 12 horas após a ingestão desses alimentos.

    O paciente negava uso de drogas, etilismo, tabagismo, contato com inseticidas ou comorbidades. Relatava que seu companheiro de viagem não apresentara nenhum sintoma. Negava doenças familiares.

    A avaliação laboratorial inicial revelou: Hm: 5.060.000/mm3; Hb: 15,4 g/dL; Ht: 45,6%; VCM: 90,1 fL. Global de leucócitos: 5.900; (segmentados: 66%; bastonetes: 4%; linfócitos: 26 %, monócitos: 4 % e eosinófilos: zero); plaquetas: 171.000. Uréia: 19 mg/dL; creatinina: 1,0 mg/dL; Na: 145 meq/L; K: 3,9 meq/L; Cl: 111 meq/L; Ca: 8,5 meq/L; Mg: 2,1 meq/L; PCR: 12.

    Foi realizada tomografia computadorizada (TC) de crânio e punção liquórica (líquido límpido, glicose 73mg/dL, proteína 30mg/dL, hemácias 31/mm, leucócitos 02/mm: polimorfonucleares zero e linfócitos 100%/ausência de germes coráveis pelo Gram/ culturas para bactérias e fungos negativas), que estavam dentro dos parâmetros da normalidade.

    Aventada a hipótese de intoxicação alimentar, o paciente foi encaminhado ao serviço de toxicologia. Ele queixava de piora progressiva dos sintomas. Mediante a impossibilidade de se afastar um quadro de miastenia gravis foi realizada prova terapêutica com 1mg de neostigmine, sem melhora dos sintomas. Simultaneamente, foi feito contato com a vigilância epidemiológica, para notificação de provável caso de botulismo e solicitação do soro antibotulínico.

    Durante o exame neurológico, o paciente apresentou vômitos, apnéia e parada cardiorrespiratória. As manobras de ressuscitação foram imediatamente iniciadas com reversão rápida do quadro. O paciente foi intubado e colocado em ventilaçâo mecânica (VM). Logo após, foi transferido para a UTI, onde recebeu a antitoxina botulínica polivalente. O paciente permaneceu em VM por três semanas e, durante esse período, evoluiu com melhora progressiva das alterações neuromusculares. Apresentou como complicação pneumonia nosocomial com boa resposta à antibioticoterapia. Recebeu alta hospitalar após dois meses da sua admissão, sem déficits.

    O resultado final dos exames só foi divulgado no 15º dia de internação: toxina botulínica tipo A e toxina termolábil haviam sido encontradas em amostras do soro e fezes, respectivamente. Os testes foram realizados por bioensaio em camundongos, técnica preconizada pelo CDC de Atlanta (EUA) e pelo Ministério da Saúde do Brasil para diagnóstico de botulismo.

     

    DISCUSSÃO

    O caso clínico aqui descrito revela a intoxicação alimentar pelo Clostridium botulinum em paciente do sexo masculino, adulto e jovem, previamente hígido, que evoluiu como uma emergência médica.

    Botulismo é derivado da palavra latina botulus, que significa salsicha.9 Os primeiros casos foram relatados por Justinus Kerner (1786-1862), médico alemão, que reconheceu a ligação entre a salsicha e a doença paralítica. Apenas em 1897, Emille Pierre Van Emergen publicou a primeira descrição do organismo após um surto por ingestão de presunto na Bélgica9,10.

    O botulismo alimentar é uma doença rara no Brasil. De acordo com os dados do CENEPI11, programa de vigilância de botulismo, entre 1999 e 2002, apenas 15 casos foram confirmados. Sua principal etiologia está no consumo de alimentos em conserva que não obedecem às normas ditadas pela vigilância sanitária. A maioria desses alimentos é oriunda de empresas clandestinas.

    O quadro inicial do paciente foi composto por sintomas gastrointestinais seguidos pelo acometimento do sistema nervoso. As queixas de náuseas, vômitos, disartria, xerostomia, turvação da visão e ptose bipalpebral são alterações comumente descritas no botulismo alimentar. O nível de consciência preservado e a história epidemiológica do consumo de alimentos suspeitos, cerca de 12 horas antes dos sintomas, foram fundamentais para o diagnóstico.

    Os principais diagnósticos diferenciais envolvidos são doenças capazes de se manifestarem com acometimento gastrointestinal e/ou neurológico. Devem ser lembradas as doenças bacterianas, virais, intoxicações diversas e doenças com acometimento neurológico.

    As doenças bacterianas causadas por salmonelas, enterotoxina estafilocócica e enterococus fecais cursam com manifestações gastroentéricas muito agudas, porém sem sintomatologia neurológica. Atenção especial deve ser dada à bactéria Campylobacter, que pode ser responsabilizada por quadros de paralisia flácida, simulando a síndrome de Guillain-Barré.

    As doenças virais, causadas por enterovírus e vírus da poliomielite, são síndromes infecciosas que geralmente se manifestam com paralisias periféricas; entretanto, cursam com alterações liquóricas e sinais meníngeos.

    Finalmente, as intoxicações por pesticidas clorados, organofosforados, atropina, beladona, álcool, curare e outras doenças que acometem o sistema nervoso, como síndrome de Guillain-Barré, síndrome de Miller-Fisher, meningoencefalites, hipocalemia, polineurites, acidentes vasculares cerebrais, miastenia gravis, neurastenia, neuropatia diftérica, não devem ser esquecidas, pois podem se apresentar com sintomas clínicos semelhantes aos manifestados pelo paciente. Porém, a maioria dessas doenças apresenta alterações nos exames complementares.

    No caso relatado, a progressão da paralisia foi tipicamente descendente, acometendo inicialmente a face, região cervical e, posteriormente, o terço superior do tórax, o que provavelmente foi causa, repentina, da sua parada cardiorrespiratória - paralisia da orofaringe resultando em aspiração. Os exames laboratoriais (hemograma, íons, líquor e TC) estavam normais, não havia sinais de meningismo e não houve melhora após o teste com neostigmine. O conjunto destes dados apontava para a hipótese de botulismo, em detrimento dos outros diagnósticos. Dessa forma, mesmo sem a comprovação laboratorial, a antitoxina botulínica foi administrada 72 horas após o início dos sintomas. Segundo a literatura, a administração do soro antibotulínico deve ser o mais precoce possível, porque elimina a toxina circulante que ainda não se fixou no sistema nervoso central5,6 e está associada ao desenvolvimento de quadros mais brandos da doença. 12,13 Não se justifica o atraso no emprego da antitoxina, enquanto se aguarda a confirmação laboratorial, que demora, em média, sete a 15 dias.4

    A recuperação do quadro é variável, depende da formação de novas sinapses e restauração da função da placa motora. No caso do paciente, sua evolução clínica foi extremamente favorável, e ele foi retirado precocemente da ventilação mecânica, na 3ª semana. Geralmente os pacientes necessitam de VM por períodos médios de oito semanas.5 O paciente deste relato recebeu alta dois meses após sua admissão hospitalar, sem seqüelas.

    Mediante um quadro de doença neuro paralítica aguda, é fundamental que se suspeite de botulismo e se faça anamnese dirigida, procurando associação entre alimentos incriminados e sintomas. É importante lembrar que, embora as manifestações clínicas possam parecer simples, há um imenso potencial para complicações e que a precocidade no diagnóstico e no tratamento são cruciais para a melhora do prognóstico.

     

    REFERÊNCIAS

    1. São Paulo. Secretaria de Estado da Saúde. CVE. Dados estatísticos de doenças transmissíveis por água e alimentos: botulismo. Estados de São Paulo e Brasil, 1999-2003. [Citado em: 06 ago. 2003] Disponível em: http://www.cve.saude.sp.gov.br/htm/hidrica/dta_estat.htm

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    3. Moura JA, Santos Júnior, EA. Botulismo In: Andrade AF, Campolina D, Dias MB. Toxicologia na Prática Clínica. Belo Horizonte: Folium; 2001. p.109-12.

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    5. Estado de São Paulo. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. CVE. Manual de Vigilância Epidemiológica do Botulismo. 2002: 1-41. [Citado em: 06 ago. 2003]. http://www.cve.saude.sp.gov.br/htm/hidrica/dta_doctec.htm

    6. Gantz NM. Botulism In: Rippe JM, Irwin RS. Intensive Care Medicine 4th ed. USA: Lippincott-Raven, 1999. p.1184-1186

    7. Gelli DS, Jakabi M, Souza A. Botulism: a laboratory investigation on biological and food samples from cases and outbreaks in Brazil (1982-2001). Rev Inst Med Trop (São Paulo) 2002;44(6):321-4.

    8. FDA/CFSAN. Bacteriological Analytical Manual Online - Botulism. Jan. 2001. [Citado em: 06 ago. 2003]. Disponível em: www.cfsan.fda.gov/~ebam/bam-17.html

    9. Cherington M. Clinical spectrum of botulism. Muscle & Nerve 1998;21(6):701-10.

    10. Pires GS. Botulismo e toxina botulínica. J Bras Med 2002;83(5/6):13-6.

    11. Fundação Nacional de Saúde-FUNASA. Guia de Vigilância Epidemiológica: Botulismo. 5ª ed. Brasilia: FUNASA; 2002. p.137-59.

    12. Chang GV, Ganguly G. Early antitoxin treatment in wound botulism results in better outcome. Eur Neurol 2003;49(3):151-3.

    13. Robinson RF, Nahata MC. Management of Botulism. Ann Pharmacother 2003;37(1):127-31