RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 18. (4 Suppl.1)

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Artigo de Revisão

A epilepsia e os transtornos mentais: a interface neuropsiquiátrica

Epilepsy and mental disorders the neuropsychiatric interface

Eliana Maria de Castro1; Roberto Assis Ferreira2; Eugênio Marcos Andrade de Goulart3

1. Professora Assistente do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, na especialidade de Neurologia - Mestre em Ciências da Saúde da Criança e do Adolescente pela Faculdade de Medicina, UFMG
2. Professor Associado do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Doutor em Medicina - Area de Concentraçao: Pediatria pela Faculdade de Medicina, UFMG
3. Professor Associado do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Pós-Doutorado em Epidemiologia Clínica pela Universidade MacMaster, Canadá

Endereço para correspondência

Eliana Maria de Castro
R: Samuel Pereira, 260 - Aptº 1002 B: Anchieta
Belo Horizonte - MG Brasil CEP: 30.310-550
Email: elianamdcastro@ig.com.br

Resumo

Os pacientes portadores de epilepsia têm, potencialmente, condições de desenvolver alterações de ordem cognitiva e/ou psíquicas, seja pela multiplicidade de possibilidades de desenvolvimento do foco irritativo cerebral ou proporcional à diversificação de funcionalidade dos grupamentos neuronais. O propósito do presente estudo é mostrar a importância da abordagem desses pacientes e seus transtornos fora do ictus epiléptico. Sabe-se que os transtornos mentais são mais comuns em epilépticos do que na população em geral, entretanto, esta correlação ainda é motivo de controvérsias. A diversidade de linhas de pesquisas tenta desvendar esta instigante relação de causa-efeito. Estudos revelam que essa vinculação se deve à inadequada avaliação de grupos-controle, isto é, falhas metodológicas ou, ainda, conseqüência dos mecanismos envolvidos com a própria doença: neuropatologia comum, predisposição genética, transtornos de desenvolvimento, efeitos epilépticos ictal e subictal, hipometabolismo, alterações de receptores sensitivos, alterações secundárias endocrinológicas, doenças psiquiátricas primárias, efeitos colaterais de drogas antiepilépticas e transtornos psicossociais. Outras linhas de pesquisas, contudo, ressaltam a importância de se focalizarem esses transtornos como depressão, ansiedade e psicoses e sua relação com a epilepsia nas fases pré-ictal, interictal e pós-ictal. Destacam também que a maior incidência desses transtornos ocorre em pacientes que têm focos de suas crises no lobo frontal, lobo temporal - sistema límbico. Estima-se que 30% a 70% dos pacientes epilépticos tenham algum déficit cognitivo ou alterações de humor e, em menor incidência, psicoses.

Palavras-chave: Epilepsia; Transtornos Mentais; Educação Médica.

 

JUSTIFICATIVA

A associação da epilepsia - transtornos mentais vem sendo abordada desde Hipócrates (460-375 a.C), sempre envolvida em polêmica. Por muitos séculos, foi percebida como um

fenômeno que girava em torno da deficiência mental ou poderes místicos, permanecendo à margem da ciência.1

Na atualidade, cientistas polemizam entre afirmações de causa-efeito dessa correlação. Há aproximadamente três a quatro décadas, fez-se o primeiro registro na literatura dos sinais e sintomas de transtornos mentais interictais associados a um tipo de epilepsia.2 De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) a epilepsia é a mais comum das condições neurológicas crônicas, a mais grave e a de maior prevalência, ocorrendo em cerca de 1% da população geral comprometida e considerada um capítulo das doenças mentais.3

Quanto à população, de modo geral há estudos mostrando taxa anual de incidência das epilepsias oscilando entre 40 e 70/100 mil habitantes, elevando-se para 122 a 190/100 mil habitantes em paises em desenvolvimento.4

Estima-se que a presença de transtornos mentais em pacientes portadores de epilepsia esteja entre as taxas de 30% a 70% dos casos.5

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)6, a população do Brasil, em 2007, era de 177.450.609 pessoas, podendo-se inferir, portanto, levando-se em consideração a prevalência mundial das epilepsias, a existência de aproximadamente 1,7 a 1,8 milhao de portadores dessa doença no país.

Mas, pela diversidade de metodologia científica empregada nos estudos epidemiológicos no Brasil, há grande variabilidade estatística nos levantamentos regionais. Considerando as questoes deficitárias de saúde pública e as peculiaridades do país com suas enfermidades próprias, como: a alta incidência e prevalência de parasitoses e neuroinfestação, a cisticercose;as doenças cérebro-vasculares; a hipertensão arterial sistêmica; os tocotraumatismos, entre outras, é significativa a possibilidade da subestimação das taxas reais de epilepsia, concomitantemente com as taxas dos transtornos mentais associados, em nosso meio.7 Não há, até o momento, estudos epidemiológicos com critérios metodológicos comuns de abrangência nacional que evidenciem estas taxas.4

As crianças são mais vulneráveis à manifestação da epilepsia que os adultos, período em que ocorre declínio da incidência, havendo, entretanto, incremento da vulnerabilidade a partir da terceira idade. A epilepsia atinge as crianças em mais de 50% dos casos antes de deixarem a escola, apresentando cronicidade e refratariedade ao tratamento em torno de 25% a 28,6% das ocorrências. Esta prevalência sobe para 53% quando há associação da epilepsia com outros problemas neurológicos.4,7

As alterações comportamentais estao associadas na proporção de 40% a 50%. Algumas comorbidades são semelhantes às dos adultos, como a ansiedade e a depressão, mas outras são específicas da infância, como autismo, transtorno do déficit da atenção e hiperatividade (TDAH), distúrbios do pensamento e problemas sociais e de aprendizado. Mesmo as crises epilépticas consideradas benignas mostram, em estudo de follow-up, taxa significativa de disfunção mental.8-10

Estes processos, de forma geral, convertem-se na queda da qualidade de vida e deterioração da relação interfamiliar dessas crianças e adolescentes.11,12

Não se deve deixar de considerar que os aspectos psicopatológicos e o comprometimento da qualidade de vida e da cognição desses pacientes são parte integrante da clínica em epilepsia.13

Em boletim editado em 2001 e de autoria de Scott, Latho e Sander, a OMS14 mostra que 90% das pessoas portadoras da doença não recebem qualquer tipo de cuidado médico em paises em desenvolvimento. Apesar dos clínicos generalistas e dos pediatras, de modo geral, considerarem a epilepsia um capítulo específico da neurologia, sabe-se que 70% a 80% desses pacientes podem e devem ser tratados em cuidados primários.15,16

O desconhecimento ou a não consideração da interface da epilepsia com as alterações psíquicas, que se manifestam geralmente distantes da própria crise, constituem mais um obstáculo para os profissionais que têm contacto com esses pacientes. Pode-se concluir, a partir desses dados, a importância de se colocarem em pauta a identificação e possíveis causas da associação da epilepsia com os transtornos mentais, visando à abordagem clínica adequada desses pacientes.

 

A EPILEPSIA E OS TRANSTORNOS MENTAIS: DESORDENS AFETIVAS/DEPRESSÃO

Os pacientes com epilepsia têm fortes traços neuróticos, como a ansiedade, a culpa, a ruminação, a baixa auto-estima, o comportamento anti-social e as somatizações. Percebendo-os sob a ótica da fenomenologia e entre os diversos transtornos psíquicos, a depressão é a mais comum das co-morbidades ligadas aos eventos epilépticos e, desses, o mais comum é em relação à epilepsia do lobo temporal (ELT).17,18 O quadro depressivo é responsável por cerca de 20 a 60% dos casos internados de epilepsia em hospitais psiquiátricos.7 A depressão é freqüentemente reconhecida no ictus epiléptico, na fase prodrômica ou na fase pós-ictal, mas a sua manifestação é muito pouco estudada na fase interictal.4,19,20

Depressão ictal

A depressão ictal ocorre como parte da aura, horas antes da crise ou mesmo precedendo-a em dias, predominando o sintoma de medo e irritabilidade. É um fenômeno inesperado e não relacionado aos estímulos externos. Os sintomas são típicos das depressões em geral, como sentimentos de profunda tristeza, desamparo, desespero, falta de esperança, chegando a levar ao suicídio, cuja incidência fica em torno de 0,2% a 0,5% dos casos de portadores de epilepsia.19-21 As alucinações associadas à depressão formam um complexo que pode se prolongar pós-crise (pós ictal) e ser indicativo de uma atividade epiléptica subclínica.

Depressão pós-ictal

A depressão somente na fase pós ictal é rara e geralmente é um resquício da fase anterior.22

Entretanto, há relato de pacientes com formas intratáveis de epilepsia do tipo ELT, com origem no lobo temporal direito ou ambos os lobos, que apresentam sintomas depressivos. A melhor abordagem clínica nesses casos é diminuir ou eliminar as crises epilépticas.23

Depressão interictal

A depressão tende a ocorrer cerca de 10 anos após o início do quadro de epilepsia.24

Entretanto Nowack5 não relaciona o tempo de início da epilepsia com o tempo de aparecimento da depressão. A fisiopatologia da depressão é desconhecida, mas observa-se ao eletroencefalograma (EEG), uma contínua e subclínica alteração eletrofisiológica afetando a área límbica e, na tomografia por emissão de pósitron (PET), uma área de hipometabolismo perifocal epiléptico.

Pesquisas realizadas na década de 90 demonstraram aumento do fluxo sanguíneo na regiao da amígdala, cujo volume estava aumentado nos pacientes epilépticos com depressão, assim como a diminuição do metabolismo da glicose no pólo inferior anterior do lobo frontal.25, 26

Atualmente, essas alterações são detectáveis através tomografia cerebral por emissão de pósitrons (PET).

 

FATORES RELEVANTES NA RELAÇÃO EPILEPSIA E DEPRESSÃO

Gênero

Devem ser considerados certos fatores relevantes associados com epilepsia e depressão, tal como o gênero. Alguns estudos mostram que os homens portadores de epilepsia têm risco mais alto de apresentarem depressão, o que demonstra significância ao se compararem os quadros de depressão, na ausência de epilepsia, que é mais comum em mulheres.

Genética

As hipóteses de uma relação epilepsia-depressão-genética-meio ambiente não está bem esclarecida e necessita de mais investigações. Existem controvérsias e somente pequenos estudos foram realizados. Parece que a epilepsia mioclônica juvenil carrega traços genéticos no que se refere à depressão associada à epilepsia, apresentando evidências clínicas familiares.27

Alterações da estrutura cerebral

A depressão pode estar associada a qualquer condição neurológica com lesão cerebral estrutural e quadro de epilepsia, como traumatismo crânio-encefálico (TCE), acidente vascular cerebral (AVC), esclerose múltipla (EM) e demências. Entretanto, estudos têm revelado que necessariamente não tem de haver lesão estrutural para que haja a ligação epilepsia-depressão.

Idade/duração da epilepsia

Alguns autores mostram associação entre o início precoce ou tardio da epilepsia e a incidência da depressão.28,29 Nowack5 sustenta, todavia, que a maioria dos casos não demonstra qualquer relação entre a idade de início da epilepsia e a instalação da depressão.

Tipo de crise

Vários estudos enfatizam que a depressão é mais comum em epilepsia do lobo temporal (ELT) e que este está estreitamente ligado a riscos mais altos de outros transtornos psiquiátricos.30-32 Esta hipótese, porém, é rebatida por Edeh e Toone33 quando afirmam que o ELT é o foco de maior investigação científica, por ser o tipo de crise mais comum em adultos e a de mais difícil controle, motivo de possível negligência no enfoque de outros tipos de epilepsia, não despertando o interesse dos pesquisadores.33

Lateralização do foco epiléptico

Existem controvérsias quanto à lateralidade do foco epiléptico e o desenvolvimento de depressão. Alguns pesquisadores sinalizam o foco à direita da ELT como o responsável pelo desenvolvimento da depressão, outros à esquerda e terceiros não registraram qualquer evidência científica para o fato. Schmitz et al.34 referiram que pacientes com ELT focal esquerdo apresentaram alto padrao de depressão clínica quando submetidos ao Beck Depression Inventory (BDI) e a exames neurorradiológicos e neuropsicológicos. Os exames neurorradiológicos mostravam grande área de hipoperfusão da regiao límbica do lobo frontal, a que Schmitz et al.34 relacionaram à deaferentação da atividade inibitória interictal ou à depleção pós-ictal desse substrato.

Iatrogenia

A politerapia tem sido apontada como um fator também associado à depressão-epilepsia, assim como algumas drogas: a lamotrigina, depletora de ácido fólico, fenobarbital, primidona, fenitoina, vigabatrinâ.35,9

Psicossocial

Os fatores psicossociais têm conceitualmente papel da maior relevância na determinação da

depressão em pacientes epiléptico. A exposição do paciente à imprevisibilidade, ao incontrolável e à aversão pelas crises é fator marcante no desenvolvimento da depressão.

Outros fatores demonstraram que eventos estressantes da vida, como a baixa aceitação social e o baixo poder aquisitivo, são significativamente relevantes.36 Entretanto, outros trabalhos destacaram que não há relação entre depressão-epilepsia e fatores psicossociais, status econômico, educação e qualidade de trabalho.24,30,37

 

DESORDENS AFETIVAS/HIPOMANIA/DEPRESSÃO BIPOLAR

Dongier 38 descreveu episódios de mania em 4,8% de uma série de 516 pacientes portadores de epilepsia. Até entao, somente um baixo número de pacientes tinha sido registrado na literatura, associado à epilepsia do lobo temporal com foco irritativo à direita. Após o advento e uso de drogas antiepilépticas para o tratamento da ELT - que também têm ação em quadros de mania como a carbamazepina (cbz) no final da década de 50 e o ácido valpróico (vpa), no final da década de 60 - acredita-se que esses medicamentos possam atuar mascarando o número real de casos de hipomania.

 

DESORDENS DO HUMOR/ANSIEDADE

As alterações de humor estao geralmente ligadas ao próprio fato do sujeito ser portador de epilepsia, pelos seus estigmas.

Os quadros do tipo conversivos, associados ou isolados podem dificultar o diagnóstico preciso. Não se pode esquecer que uma crise conversiva acompanhada de hiperventilação pode desencadear uma crise real epiléptica. As crises de ansiedade são de curta duração e de caráter reacional, ocorrendo sempre na presença de terceiros.5,10

 

DESORDENS OBSSESSIVA/COMPULSIVA (OCD)

Os estudos são modestos, pequenos, para confirmar a relação de OCD com epilepsia, tanto em adultos quanto em crianças e adolescentes. Observam-se alterações ao EEG, com atividade predominantemente temporal de pacientes com OCD, sem história de crises epilépticas.39

Há estudos com pacientes epilépticos submetidos ao questionário LOI (Leyton Obsessionality Inventotry) e SPECT (tomografia computatorizada por emissão de fóton único), mostrando a hiperperfusão de um sítio do lobo temporal direito, gânglios de base e tálamo. Outros autores, por sua vez não fazem associação entre epilepsia e OCD.40

Interessante ressaltar que as características do OCD - pedantismo, crises de tenacidade, viscosidade, fala repetitiva - estao também relacionadas à chamada "personalidade epiléptica".

 

PSICOSES

Entre os anos de 1950 a 1960, os aspectos psiquiátricos da epilepsia foram redescobertos, principalmente nos portadores de epilepsia do lobo temporal.41,42

Slater2 já na década de 60, desafiando teorias antagônicas, postulou uma relação ou interligação entre a esquizofrenia e a epilepsia. Publicou em detalhes a análise de 69 pacientes, em dois hospitais de Londres, que sofriam de epilepsia e apresentavam episódios de psicose interictal crônicos e/ou recorrentes, que denominou de "esquizofrenialike", com as seguintes características: paranóia, alucinações persecutórias e auditivas, delírios, comportamento desorganizado com ausência de sintomas catatônicos, oscilações do humor, embotamento afetivo menos intenso que o observado na esquizofrenia clássica.

É possível observar alguns fatores associados às psicoses interictais e crises de origem do lobo temporal e regiao límbica, como tempo de duração da epilepsia de 10 a 22 anos, período de menor freqüência das crises, lesões estruturais, tipo esclerose mesial, e disgenesias corticais.7,11

Os mecanismos fisiopatológicos para essa inter-relação indicam supersensibilidade de receptores dopaminérgicos pós-sinápticos com abrasamento e inibição ou hipofunção do foco epiléptico. Também os mecanismos psicológicos são considerados, como as vivências ictais e sua percepção mal-elaborada, assim como inter-relações do paciente com seu meio.7

Epidemiologia

Até o momento, não há estudo epidemiológico abrangente em grandes centros que indique prevalência de psicose em pacientes epilépticos, mas há indicação de maior prevalência dessa população quando a pesquisa é realizada em centros de neurologia e psiquiatria e centros de epileptologia, com registros em torno de 2% a 7,1% dos episódios. Em clínicas gerais, os casos variam de 0% a 4,5%.7

Classificação

Não há classificação internacionalmente aceita de síndrome psicose-epilepsia.

O uso operacional do DSM-IV43 é limitado, pois ele é voltado estruturalmente para diagnóstico funcional da psicose e não a considera no contexto da epilepsia, assim como o CID 1044 por vezes ambíguo, segundo Sachdev45.Uma proposta para a sistematização da classificação das psicoses em epilepsia foi baseada na combinação da psicopatologia, etiologia, estudos longitudinais e o EEG como parâmetro, que, entretanto, não atendeu às expectativas, visto ser, em muitos casos, impossível delinear o tipo de epilepsia e o tipo de psicose ou vice-versa.46 Síndromes atípicas não são incomuns, até porque, na psicose pós-ictal e ictal, a consciência do paciente é clara e o senso crítico se faz presente. Variações fenomenológicas e precipitações podem ser individuais, assim como a experiência pessoal nos episódios psicóticos recorrentes. É o sujeito que está em questao e não e tao somente um indivíduo portador de epilepsia.

Importante observar que algumas manifestações epilépticas podem gerar fator de confusão com diagnóstico de psicose vinculada à epilepsia como:4,46-49

a) crises epilépticas recorrentes, com breve intervalo da superficialização da consciência, cíclicas, com origem nos lobos temporais, mesial ou extratemporais;
b) crises epilépticas contínuas - confusionais, não cíclicas, fragmentos de sítios extratemporais afetando lobo frontal;12
c) status epilepticus focal, aura contínua, que pode ser causa de alucinações simples, sintomas afetivos, desordens de personalidade.

Mecanismos, teorias/fisiopatologia das psicoses e epilepsias: Psicoses ictais

Há potencialização da dopamina na neurotransmissão no lobo temporal. Lee46 postulou que as crises generalizadas em série teriam ação sobre neurotransmissores dopaminérgicos em lobo temporal, com desencadeamento dos sintomas psicóticos, mimetizando quadros esquizofreniformes:

a) efeitos positivos: descargas estimulando os mecanismos comportamentais do sistema límbico;
b) efeitos negativos: descargas inibindo o sistema límbico.

A ILAE47, a partir de uma comissão especial para o estudo da epilepsia e alterações psiquiátricas, não apresentou, até a presente data, um resultado final, mas reconhece que a psicose relacionada à epilepsia é um subtítulo e diferente da esquizofrenia, do ponto de vista prático. Por esta razao, as psicoses e as epilepsias são agrupadas numa relação temporal por afinidades com as crises.

Psicoses perictais

Sintomas psicóticos podem ocorrer como parte de uma crise convulsiva ou em um prolongamento dos casos não convulsivos das crises epilépticas, nas quais o EEG pode vir auxiliar no diagnóstico. Podem ocorrer fenômenos experienciais, afetivos e comportamentos perceptuais com o comprometimento da consciência durante o fato.48 O insight tende a permanecer, mas freqüentemente segue amnésia.

O status epilépticus nas LTEs é o mesmo que status psicomotor ou estado crepuscular.49

Psicoses pós-ictal - PIP /Interictal

Pesquisas mostram que as manifestações psicóticas pós-ictal podem ocorrer entre o primeiro mês até os 15 anos ou mais, após a primeira crise epiléptica do paciente. Várias investigações demonstram lucidez desses pacientes nas primeiras 72 horas pós-crise com aparente restauração da atividade mental normal.5,13

Freqüentemente ocorre antes do PIP, quadro confusional seguido por alterações do tipo delírio, transtorno do pensamento, alterações do humor, delírios paranóicos, persecutória, alucinação cenestésica, visuais, principalmente auditivas, misticismo, religiosidade, comportamentos agressivos, transtornos da conduta sexual. Quadro que pode durar de um dia a 90 dias.4,5

Alguns fatores de risco podem ser enumerados para desencadeamento do PIP, tais como:

disfunção cerebral bilateral, apreensão, medos e terror na fase ictal, história de crises febris e crises de ausências, transtornos de personalidade preexistente e história familiar de doenças psiquiátricas.50

Recomenda-se, para investigação clínica, o EEG simples, no qual se pode observar exarcerbação da atividade epiléptica ou lentificação. Se possível solicitar o vídeoEEG, a RMf - ressonância nuclear magnética funcional do cérebro e SPECT - tomografia computatorizada por emissão de fóton simples. Dentre as manifestações psicóticas na epilepsia a fase pós-ictal é das mais estudas e de maior prevalência.38

Teorias

Até o início do século passado, havia antagonismo entre as epilepsias e psicoses, mas, por influência de Meduna,51 introduziu-se drogas antiepilépticas para tratamento das esquizofrenias, obtendo-se boa resposta terapêutica. Ressurgiu, entao, o que no passado havia sido abandonado, à possibilidade de correlação entre essas doenças.

Landolt52 demonstrou que, em alguns casos onde a normalização do EEG de portadores de epilepsia, chamada de "normalização paradoxal" ou "normalização forçada", surtos episódicos de psicose eram desencadeados. Por outro lado, durante a evolução e descoberta de drogas antiepilépticas, como etosuximida, vigabatrina, gabapentina e topiramato, constatou-se que elas também poderiam desencadear psicoses. Pelo o que se pode verificar, parece realmente existir correlação entre epilepsia e psicose como um processo de origem orgânico-cerebral, considerando-se:4

a) as psicoses têm, ao que parece, relação direta com alterações neuropsicológicas e neuroquímicas via fenômeno de kindling e descargas eplépticas;14
b) as epilepsias e psicose compartilham da mesma etiologia, mas com patogenias heterogênicas, como a genética, sem relação direta, isto é, correlação familiar, com raras exceções. Tem maior incidência em mulheres. O tempo entre o início da epilepsia e o da psicose varia de 11 a 15 anos ou mais; elas estao claramente interligadas pelo comprometimento do lobo temporal, sistema límbico. Há consenso de que a psicose é muito rara em pacientes com epilepsia neocortical extratemporal.

Estudos mostraram que as psicoses em epilepsias generalizadas têm forma diferente das psicoses da ETL, sendo estas, provavelmente, mais duradouras.

Crises psicóticas - sintomas de alucinações paranóides - alternadas são mais comuns em epilepsias generalizadas quando essas entram em remissão.4

A gravidade da crise é muito importante como fator de risco, isto é, atividade epiléptica de longa duração, tipos múltiplos de crise, histórias de má-resposta aos tratamentos, lateralização do foco epiléptico no lobo temporal esquerdo, lesão estrutural - como já assinalado, esclerose mesial, malformação artério-venosa do encéfalo (MAV), tumores harmartomas e gangliomas.4

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A avaliação dos pacientes portadores de epilepsia não deve se restringir apenas à sua queixa primária, mas a todo contexto psíquico, funções cognitivas, relacionamento interfamiliar e social. Apesar das controvérsias ainda existentes da interface epilepsias - transtornos mentais estes aspectos e conseqüente queda da qualidade de vida desses pacientes devem ser considerados como parte integrante da clínica em epilepsia.

 

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Curso de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Faculdade de Medicina, Universidade Federal de Minas Gerais