ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Abscessos esplênicos por Mycobacterium tuberculosis em paciente com AIDS
Splenic abscesses due to Mycobacterium tuberculosis in patient with AIDS
Antônio Aurélio de Paiva Fagundes Júnior1; Ciro José Buldrini Filogônio2
1. Médico Residente de Clínica Médica do Hospital das Clínicas da UFMG
2. Professor Adjunto do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG
Departamento de Clínica Médica UFMG
Av. Alfredo Balena, 190 Santa Efigênia
Belo Horizonte - MG 30130-100
Data de Submissão: 20/01/03
Data de Aprovação: 16/06/03
Departamento de Clínica Médica UFMG
Resumo
Trata-se do caso de paciente com AIDS há 11 anos, que desenvolveu púrpura trombocitopênica trombótica (PTT) e febre prolongada. A ultra-sonografia e a tomografia computadorizada de abdômen sugeriam múltiplos abscessos esplênicos, diagnosticando-se tuberculose abdominal por meio de biópsias esplênica, hepática e peritoneal, por videolaparoscopia. Houve evolução favorável com o tratamento da tuberculose.
Palavras-chave: Síndrome de imunodeficiência adquirida / complicações; Infecções oportunistas / diagnóstico; Mycobacterium turberculosis; Tuberculose esplênica / diagnóstico
INTRODUÇÃO
M.S, 39 anos, parda, prostituta, nascida em Belo Horizonte (MG) - onde reside -, portadora do vírus HIV há 11 anos, em uso irregular de estavudina, lamivudina e nelfinavir, além de sulfametoxazol-trimetoprim, internou-se no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG), em novembro de 2001, com quadro de febre (até 38,5ºC), apatia, confusão mental, anemia hemolítica microangiopática, plaquetopenia e elevação dos níveis de uréia e creatinina. Diagnosticou-se PTT, sendo tratada com três sessões de plasmaferese, com melhora progressiva do quadro. Durante esta internação, foi diagnosticada infecção do trato urinário por Escherichia coli, recebendo alta hospitalar em uso de norfloxacino.
Iniciou acompanhamento nos serviços de Hematologia e de Doenças Infecciosas e Parasitárias, tendo recebido três transfusões de plasma fresco.
No sétimo dia após a alta, surgiram febre (39ºC), calafrios, vômitos e adinamia. Procurou o HC- UFMG, sendo novamente internada. À admissão, apresentava-se febril (39,8ºC), hipocorada (3+/4+), taquicárdica (120 bpm). O fígado era palpável a 4cm do rebordo costal direito (RCD). Foram realizados os seguintes exames:
hemograma: Hb: 6,7g%, Ht: 19%, Plaquetas: 169.000/mm3; leucócitos: 5.300/mm3 (neutrófilos bastonetes: 11%, segmentados: 71%, linfócitos: 17%); tempo de tromboplastina parcial ativado: paciente 26 s/ controle 29 s. RNI: 1,23; creatinina: 1,0mg%, uréia: 29mg%, sódio: 136mEq/l, potássio: 4,4mEq/l; glicose: 114 mg%, desidrogenase lática: 862mg%, albumina: 3,4 g/dl; bilirrubina total (Bt): 0,4 mg%, bilirrubina direta (Bd): 0,3 mg%; transaminase oxalacética (TGO): 38 UI, transaminase pirúvica (TGP): 29 UI; fosfatase alcalina (FA): 304 U/l, gamaglutamiltranspeptidase (GGT): 564 UI; urina-rotina: sem alterações, urocultura: negativa; líquor: coloração com tinta nanquim: ausência de microorganismos coráveis. Citometria sem alterações; pesquisa de BAAR e coloração pela auramina negativas no líquor; radiografia de tórax: pequeno derrame pleural bilateral; exame de fundo de olho: sem alterações; ultra-sonografia abdominal: baço com dimensão normal, contendo diversas lesões hipoecogênicas e difusas, medindo 6 mm em média. Presença de alguns linfonodos ovóides e hipoecogênicos em situação periportal (Figuras 1 e 2 ).
Um mês antes de se internar, a paciente havia realizado contagem de linfócitos CD4, inferior a 100/mm3, e carga viral superior a 100.000 cópias.
Evoluiu com febre vespertina (38ºC a 39ºC), que ocorria diariamente. Com o aparecimento de dispnéia atribuída a aumento do derrame pleural, foi submetida à toracocentese esquerda, com drenagem de 400ml de líquido serosanguinolento, com BAAR e cultura negativas.
Em duas das três amostras de hemocultura solicitadas à admissão, houve crescimento de Staphylococcus epidermidis. Na cultura da ponta do cateter da veia subclávia, retirado no dia da primeira alta hospitalar, também identificou-se Staphylococcus epidermidis.
Apesar do tratamento instituído (gentamicina por sete dias e oxacilina por 21 dias), persistiram picos febris quase diários (38ºC) e taquicardia sinusal. O ecocardiograma não revelou alterações. Houve aumento do fígado, que passou a ser palpado a 8cm do RCD. Surgiu candidíase oral, tratada com fluconazol. Após a suspensão dos antibióticos, foram realizadas novas hemoculturas, negativas para Mycobacterium tuberculosis, micobactérias atípicas, fungos e demais bactérias. Novo exame ultra-sonográfico abdominal revelou:
hepatoesplenomegalia; presença de vários linfonodos arredondados hipoecogênicos, de dimensões aumentadas, medindo entre 16mm e 23mm ao longo das cadeias peri-portais, peri-pancreáticas e retroperitoneais; baço com volume aumentado, forma e contornos normais. Parênquima difusamente heterogêneo pela presença de nódulos hipoecogênicos, de limites bem definidos, diâmetro médio de 7mm, distribuídos pelo parênquima esplênico (Figura 2).
Tomografia computadorizada de abdômen confirmou os achados da ultra-sonografia (Figura 3 ).
Submetida à operação videolaparoscópica, observouse que o peritônio apresentava múltiplas granulações, em toda a sua extensão, e pequena quantidade de líquido ascítico. Foi realizada esplenectomia parcial, biópsias hepática e peritoneal. Ao corte, o baço apresentava múltiplos nódulos de coloração brancacenta.
A paciente apresentou boa evolução no pós-operatório. O estudo anátomo-patológico das biópsias realizadas mostrou processo inflamatório crônico, granulomatoso, no peritônio e no fígado, com necrose caseosa no baço. A coloração pela fucsina de WADE mostrou BAAR.
Foi iniciado tratamento para tuberculose com isoniazida, rifampicina e pirazinamida. A partir do quinto dia de uso dos tuberculostáticos, surgiram vômitos persistentes e icterícia. Em nova avaliação laboratorial, constatou-se:
Bt: 2,7mg%, Bd: 2,4mg%, TGO: 814 UI, TGP: 201 UI, FA: 960 U/L, GGT: 1207 UI
Foram suspensos os tuberculostáticos até a normalização das provas de função hepática. As drogas foram então reiniciadas de forma escalonada (isoniazida, rifampicina e pirazinamida, nesta ordem), repetindo-se as provas de função hepática no terceiro dia, após a reintrodução de cada uma. Não houve alteração dos exames e a paciente, desta vez, apresentou boa tolerância às medicações. A cultura do líqüido ascítico foi positiva para Mycobacterium tuberculosis, com crescimento de colônias de cor creme, confluentes, rugosas.
A paciente evoluiu com melhora clínica progressiva, recebendo alta hospitalar em uso dos tuberculostáticos, optando-se por reiniciar a medicação anti-retroviral no ambulatório.
DISCUSSÃO
A tuberculose esplênica ainda é rara, principalmente em imunocompetentes, mas com a pandemia da AIDS e o conseqüente recrudescimento da tuberculose, a literatura médica tem registrado casos com maior freqüência. A maioria dos casos ocorre em países onde a tuberculose é altamente prevalente, como a Índia, vários países africanos e sul-americanos, ou em imigrantes do Terceiro Mundo que vivem em países desenvolvidos1. Pacientes com infecção pelo HIV são mais freqüentemente acometidos pelas formas extrapulmonares da tuberculose, especialmente aqueles com contagem de linfócitos CD4 inferiores a 100/mm3, apesar de a tuberculose esplênica já ter sido descrita em casos com linfócitos CD4 superiores a 200/mm3. Na tuberculose disseminada, a infecção do baço não é um achado de necrópsia incomum, mas raramente é suspeitada clinicamente2,3. Os sinais e sintomas são inespecíficos e os casos não diagnosticados ou diagnosticados tardiamente elevam ainda mais as taxas de morbimortalidade. Quando há suspeita de tuberculose abdominal, os métodos de imagem são indispensáveis para uma precisa avaliação da esplenomegalia, hepatomegalia, linfadenopatias e outras massas intraabdominais4. No acometimento do baço, o US e a TC geralmente revelam imagens focais hipoecóicas e hipodensas. O diagnóstico diferencial destas lesões incluem infecção por micobactérias (tuberculose e micobactérias atípicas), abscesso bacteriano e linfoma.
A confirmação do diagnóstico pode ser realizada por meio de biópsia por agulha fina guiada por US. Por videolaparoscopia, podem ser realizadas biópsias ou esplenectomia total. No presente caso, foi realizada esplenectomia parcial, não havendo na literatura relato de outros casos com conduta semelhante5. O tratamento também pode ser realizado com base nos achados radiológicos e no encontro de infecção por tuberculose em outro órgão. Em pacientes que não respondem ao tratamento com tuberculostáticos, a esplenectomia total pode ser necessária6.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1- Aston NO, MA, Chir M. Abdominal tuberculosis. World J Surg 1997;21:492-9.
2- Khalil T, Uzoaru I, Nadimpalli V, Wurtz R. Splenic tuberculous abscess in patients positive for human immunodeficiency virus: report of two cases and review. Clin Infect Dis 1992;14:1266-7.
3- Gonzalez-Lopez A, Dronda F, Alonso-Sanz M, Chaves F, Fernandez-Martin I, Lopez-Cubero L. Clinical significance of splenic tuberculosis in patients infected with human immunodeficiency vírus. Clin Infect Dis 1997;24:1248-51.
4- Pedro-Botet J, Maristany MT, Miralles R, Colomes-Lopez JL, Rubies-Prat J. Splenic tuberculosis in patients with AIDS. Clin Infect Dis 1991;13:1069-71.
5- Pramesh CS, Tamhankar AP, Rege SA, Shah SR. Splenic Tuberculosis and HIV-1 Infection. Lancet 2002;359:353.
6- Giladi M, Ransohoff KN, Lovett MA. Splenic abscesses due to mycobacterium tuberculosis in patients with AIDS: Is splenectomy necessary? Rev Infect Dis 1991;13:373-5.
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