ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Notas históricas sobre o "Programa de Saúde da Família" em Minas Gerais
Historical notes on the Family Health Program in Minas Gerais
Cid Veloso
Professor adjunto e Livre-docente, aposentado da Faculdade de Medicina da UFMG; Coordenador do Programa de Saúde da Família da Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais em 1995/1996
Endereço para correspondênciaCid Veloso
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Data de Submissão: 29/05/2002
Data de Aprovação: 15/07/2002
Resumo
O Programa de Saúde da Família (PSF) vem sendo implantado em todo o País, com o objetivo de mudar o modelo assistencial ainda em prática e que tem se revelado ineficiente, por implicar elevado custo e por não abordar o ser humano com integralidade e afetividade. Contudo, as informações que têm circulado sobre o Programa são, freqüentemente, equivocadas e distorcidas, objetivando, no mais das vezes, um mero exercício de manipulação política ou de manutenção de estruturas de poder. Faz-se necessário, portanto, relatar com fidelidade a história da criação e implantação do Programa, desde suas origens, para não se permitir o afastamento dos fatos ocorridos. Com esse objetivo, arrolam-se os movimentos que deram início às mudanças no sistema de saúde em todo o mundo e que tiveram com marco fundamental a Conferência da Organização Mundial de Saúde em Alma-Ata, em 1978. Descreve-se, em seguida, minuciosamente, a implantação do PSF em Minas Gerais, enfatizando-se o trabalho multiprofissional e intersetorial desenvolvido, os marcos conceituais do programa, a questão do financiamento e os problemas que vêm sendo enfrentados ao longo de todo o processo. Ressalta-se, finalmente, a importância da educação permanente como suporte fundamental do programa.
Palavras-chave: Saúde pública, saúde da família, programa saúde da família, Minas Gerais.
INTRODUÇÃO
O denominado "Programa de Saúde da Família" constitui uma das políticas públicas mais importantes do Sistema Único de Saúde-SUS, no Brasil, tendo produzido inúmeros desdobramentos, bem como suscitado polêmicas e debates, e sido inclusive utilizado como plataforma eleitoral por muitos candidatos a cargos eletivos. Quando esse programa caminha para sua fase de consolidação, torna-se necessário recuperar suas origens no País e, em particular, em Minas Gerais, para se evitarem equívocos e manipulações indevidas.
A necessidade de mudar o modelo de atenção à saúde é um tema antigo entre profissionais, dirigentes e pensadores ligados à área, que o têm desenvolvido em debates em conclaves, nas universidades, em publicações, na imprensa e em outras manifestações. O esgotamento e a falência - não só financeira mas também em termos de resultados, no mais das vezes decepcionantes - do modelo curativo, equipamento-dependente, centrado na ação médica e no hospital, privilegiando excessiva especialização, que descaracteriza o ser humano em sua integralidade, têm sido uma constatação freqüente entre aqueles que pensam e vivem a saúde de maneira autêntica, crítica e não-corporativa. Essa constatação tem levado muitos países a procurar novos modelos, que redirecionem a atenção à saúde para um sistema mais eficiente, equânime, universal e racional.
FATOS PRELIMINARES
A Conferência da Organização Mundial de Saúde-OMS, realizada em Alma-Ata, União Soviética, em 1978, cujo lema era "Saúde para todos no ano 2000", constituiu-se no marco fundamental que deu início às iniciativas concretas de mudança em todo o mundo.1 Embora, na visão atual, decorridos dois anos da data prevista pela Conferência, a meta então proposta ainda esteja longe de ser atingida, esse evento marcou uma inflexão do debate e o início das ações de mudanças na área da saúde em inúmeros países. Posteriormente, foram realizadas outras conferências, de que resultaram a Carta de Ottawa, Canadá (1986), a Declaração de Adelaide, Austrália (1988), a Declaração de Sundsvall, Suécia (1991) e a Declaração de Bogotá, Colômbia (1992), documentos que reafirmam os mesmos princípios e buscam desenvolver processos operacionais para a consecução dos objetivos nele definidos.2 Em 1972, na 5ª Conferência Mundial da OMS, em Melbourne, Austrália, foi formalmente criada a Organização Mundial de Médicos de Família-Wonca, que realizou uma Conferência Mundial em 1994, no Canadá.3 Em Edinburgh, Escócia, em 1988, ocorreu a Conferência Mundial de Educação Médica, organizada pela Federação Mundial de Educação Médica e pela OMS, em que se estabeleceram as diretrizes básicas para a reforma da educação médica, tendo como base a mesma ênfase da promoção da saúde e na prevenção das doenças.4 No Brasil, um importante movimento de mudança foi a Reforma Sanitária, cujo ideário, amplamente debatido na VIII Conferência Nacional de Saúde5 em março de 1986, teve seus princípios consubstanciados na Constituição Federal de 1988, no capítulo da Saúde, e nas Leis 8080/90 e 8142/90.
Ainda que com características diferentes, experiências implantadas em alguns países deram origem e serviram de exemplo para as mudanças que passaram a ser implementadas. Na Inglaterra, a partir de 1945, o sistema de saúde, baseado no General Practicioner-GP, procurou recuperar a ação do médico geral em uma abordagem de integralidade e universalização da atenção, dentro de um sistema hierarquizado das ações de saúde. Na China, desde o início da Revolução liderada por Mao Tsé-Tung, em 1949, foram criados os "médicos de pés descalços" - cuja formação técnica favorecia a utilização das práticas tradicionais chinesas - que constituíam um elo entre a população e os sistemas secundário e terciário de saúde. Em Cuba implantou-se, em 1984, o "Programa Médico de Família" que, apesar do nome, colocou uma equipe multiprofissional, não-especializada, para cuidar de populações de áreas geográficas bem delimitadas e marcadas por uma articulação hierarquizada com os outros níveis de atenção. Outras experiências foram desenvolvidas em outros países, como Austrália, Holanda, Portugal, Dinamarca, Canadá, Argentina, Uruguai, Colômbia, Peru, Venezuela, Equador, Guianas, Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica, Bangladesh, Estônia, Malásia, Filipinias, Serra Leoa3 e até mesmo nos Estados Unidos - neste país, com uma concepção bastante peculiar.
EXPERIÊNCIA BRASILEIRA
No Brasil, após estudos e debates preliminares iniciados em 1991, foi implantado o "Programa Médico de Família" em Niterói, no Rio de Janeiro, em setembro de 1992, com forte influência de Cuba e a colaboração de consultores cubanos. O nome do programa, cópia do usado em Cuba, provocou inúmeros questionamentos, pois mantinha a hegemonia médica e descaracterizava a proposta preventiva, que se contrapunha à prática vigente - curativa e centrada no hospital e no médico. Curiosamente, a coordenadora do programa não era médica. Sua maior dificuldade consistiu na limitação da abrangência de sua atuação, pois ficou restrito a apenas alguns bairros do grande município de Niterói. Apesar de toda a polêmica que o cercou, esse programa teve um resultado muito positivo e serviu de exemplo para vários outros que, a partir de então, foram criados no País.6 No início de 1994, implantouse o "Programa de Saúde da Família" em vários municípios do Ceará, sendo que, em Quixadá, foi implantado em março de 1994.7 Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, desenvolveu-se uma importante experiência acadêmica: o Professor Carlos Grossman, juntamente com uma equipe interprofissional, sediada no Grupo Hospitalar Conceição, pôs em prática um trabalho comunitário que pode ser considerado similar à proposta que vinha sendo discutida mundialmente. Essa experiência, entretanto, ficou restrita a um grupo acadêmico, ligado a um hospital, e abrangeu pequeno grupo populacional, sem contar com qualquer envolvimento governamental.
O Ministério da Saúde criou, em 1991, o "Programa de Agentes Comunitários de Saúde - PACS". Tendo como base inúmeras experiências comunitárias, religiosas e de organizações não-governamentais, esse programa centrava-se em moradores de bairros, com maior capacidade de liderança, de relacionamento e de ação política, que funcionavam como intermediários entre a população e o sistema de saúde, facilitando, conseqüentemente, a implementação de providências relacionadas à promoção da saúde, à prevenção de agravos e, mesmo, ao encaminhamento de doentes para o recebimento de cuidados secundários e terciários.8 Os agentes comunitários de saúde desenvolveram - e ainda desenvolvem - um extraordinário trabalho auxiliar nos cuidados básicos de saúde, constituindo-se elementos fundamentais ao processo de municipalização da saúde no País. Ocorreu, nessa época, uma oposição corporativa dos profissionais de enfermagem, que resultou na realização, em setembro de 1995, de um seminário sobre o PACS na Escola de Enfermagem da UFMG, com a participação do Conselho Federal de Enfermagem/MG, para se discutirem os questionamentos relacionados à atividade desses agentes comunitários.
Além disso, em 27 e 28 de dezembro de 1993, foi realizado um seminário, no Ministério da Saúde, sobre o tema "Saúde da Família". O evento contou com a participação de técnicos e profissionais do Ministério ligados ao PACS e de outros setores - inclusive de servidores da Fundação Nacional de Saúde -, do Dr. David Tejada, de membros da OPS/OMS, além de técnicos da Unicef, profissionais de Porto Alegre, em especial do Grupo Hospitalar Conceição, profissionais e dirigentes da área da saúde do Ceará, Santa Catarina, Espírito Santo, Paraíba, municípios de São Paulo, Santos, Cotia e Niterói.9
No princípio de 1994, Henrique Santillo, ministro da saúde do governo Itamar Franco, implantou oficialmente no Brasil o "Programa de Saúde da Família-PSF", com a publicação do documento "Saúde Dentro de Casa", assinado pelo Ministério da Saúde e pela Fundação Nacional de Saúde.9
O PSF EM MINAS GERAIS
Em Minas Gerais, em março de 1994, foi assinado um protocolo de intenções entre o ministro Henrique Santillo e o então secretário de estado da saúde de Minas Gerais, José Saraiva Felipe.
O programa foi, inicialmente, divulgado pela representação da Fundação Nacional de Saúde em Minas Gerais, diretamente nos municípios, sem a participação da SES. Esse fato causou alguns problemas, uma vez que os municípios interessados passaram a se relacionar diretamente com a coordenação do PSF no Ministério da Saúde, em Brasília. Tal questão foi levada à Comissão Tripartite, que redirecionou a condução do programa para a Secretaria de Estado da Saúde.
A Comissão Intergestores Bipartite Estadual-CIBE, em junho de 1994, aprovou a implantação do PSF no Estado de Minas Gerais, definindo coordenação, fluxos e rotinas para sua implantação. A Superintendência Operacional de Saúde da SES promoveu, então, treinamento para as Diretorias Regionais de Saúde-DRS, orientando-as sobre a implantação e o funcionamento do programa.
Com a divulgação das diretrizes do PSF pelo Ministério e pela SES - em especial do financiamento inicial para sua implantação - 71 municípios mineiros encaminharam a essa secretaria, ainda em 1994, pedidos de inclusão no programa. Dos pedidos encaminhados, 21 foram aprovados pela CIBE e, destes, o Ministério aprovou 12, que tiveram os convênios publicados no Diário Oficial da União, tendo recebido recursos financeiros para a sua implantação. Cada município recebeu R$31.000,00, sendo R$15.000,00 para investimento e R$16.000,00 para custeio. Os municípios pioneiros foram: Abre-Campo, Além Paraíba, Barbacena, Brumadinho, Caeté, Itacarambi, Itanhandu, Juiz de Fora, Pedra do Indaiá, Santa Cruz do Escalvado, São Gonçalo do Pará e Três Pontas. Esses municípios, ainda em 1994, implantaram suas equipes, com maior ou menor adequação aos princípios do programa, revelando inúmeros problemas e contradições na efetivação do trabalho, dentro dos contextos complexos das realidades políticas, orçamentárias, estruturais, profissionais e da cultura local em relação ao processo saúde/doença.10
Com a mudança do governo de Minas Gerais, em janeiro de 1995, o novo secretário de estado da saúde, José Rafael Guerra Pinto Coelho, priorizou a implementação do PSF, já iniciada no governo anterior, reforçando-a com a proposta de articulá-lo com os Consórcios Intermunicipais de Saúde. Como uma das críticas que se fazia ao PSF era a de que ele abordava somente os cuidados básicos de saúde, desenvolveu-se a concepção de consórcios de saúde, para viabilizar e racionalizar a atenção secundária e terciária. Esses consórcios previam a reunião de vários municípios vizinhos, que somariam seus recursos de atenção à saúde, evitando duplicação deles, a fim de possibilitar aos habitantes de todos o acesso aos recursos mais diversos assim disponibilizados. Para tanto, cada município participaria com determinado equipamento que os outros não precisariam possuir - um município colocaria à disposição, por exemplo, um centro oftalmológico completo; outro, os mais modernos recursos para atendimento cardiológico; um outro, uma clínica psiquiátrica bem estruturada; e assim por diante. Desse modo, todos os municípios de uma região poderiam contar com o melhor atendimento na região, com concentração de recursos humanos e tecnológicos e sem desperdício.11
Para coordenar a implantação do PSF, criou-se uma comissão multiprofissional na Secretaria de Estado da Saúde, composta por três assistentes sociais, uma dentista, duas enfermeiras, uma funcionária administrativa, um médico e um profissional de relações públicas. O autor deste artigo foi nomeado coordenador do PSF no estado, à época. Posteriormente, com o início dos processos de treinamento das equipes, foram incorporados ao trabalho professores da Escola de Enfermagem e da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Escola de Saúde Pública de Minas Gerais (ESMIG) e da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. O Departamento de Enfermagem da Pontifícia Universidade Católica (PUC/MG), embora convidado a participar do projeto, não se integrou a ele. Realizou-se, então, trabalho intensivo de envolvimento das Diretorias Regionais de Saúde-DRS ao PSF, acreditando-se que seu papel na articulação e no trabalho de motivação regional dos municípios era fundamental - por seu conhecimento da área e pela proximidade entre eles - sendo realizadas reuniões, seminários, oficinas e encontros com funcionários dessas DRS. Foram, ainda, promovidas inúmeras viagens dos membros da Comissão Coordenadora do PSF às sedes das DRS, para conscientizar, treinar e mobilizar seus funcionários. Esses mostravam-se, então, desmotivados, descrentes do programa, mal preparados para atuar neles, embora se destacassem, entre eles, algumas pessoas possuidoras de extraordinário entusiasmo pela nova proposta.
A comissão coordenadora aprofundou um estudo das experiências já existentes e semelhantes à proposta que estava sendo implantada, mediante revisão bibliográfica, análise de documentos, entrevistas com profissionais e gestores da área da saúde e viagens para conhecer, in loco, os diversos trabalhos em realização.
Motivada pela amplitude e importância do programa e pela proposta do trabalho em equipe e intersetorial, essa comissão iniciou, também, uma série de contatos com outras instituições, outros setores do governo e com parlamentares. Foram feitas, então, reuniões com todas as Superintendências da SES, com as Secretarias de Estado da Educação, da Cultura, da Agricultura e de Planejamento e mantido intenso relacionamento com a Coordenação Nacional do PSF no Ministério da Saúde, o Conselho Estadual de Saúde, a CIBE, a Organização Pan-americana de Saúde-OPS, o Conselho de Secretários Municipais de Saúde, a Comissão de Saúde da Assembléia Legislativa de Minas, o Programa Comunidade Solidária, o Programa de Redução da Mortalidade na Infância, a Fundação Nacional de Saúde, o Servas/MG, a Pastoral da Criança da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB e várias organizações não-governamentais, como o Lions Club, entre outras.
A comissão coordenadora do PSF no estado desenvolveu, nessa época, um intenso trabalho de informação, conscientização e sensibilização, levando sua proposta para todo o estado. Para tanto, foram realizados seminários, reuniões, palestras, entrevistas em jornais e emissoras de televisão, divulgação de textos em inúmeros municípios e nas DRS, bem como entre secretários municipais de saúde e prefeitos, deputados estaduais e federais, profissionais de saúde e entidades de classe. Além disso, a Comissão participou de grande número de Conferências Municipais de Saúde e da III Conferência Estadual de Saúde e promoveu palestras para estudantes de Enfermagem e Medicina. Em novembro de 1996, em Araçuaí, a Secretaria de Estado da Cultura realizou-se o Seminário Arte e Educação, que contou com a participação de membros da Comissão Coordenadora do PSF estadual, no esforço de integrar essas áreas de atividade. Foram feitas, ainda, numerosas reuniões e seminários com a Coordenação Nacional do PSF do Ministério da Saúde, em Brasília, e contatos freqüentes com outros programas em outros Estados. Todas essas atividades constituíram um prolongado e extenso trabalho de divulgação do Programa e de doutrinação sobre sua concepção.
No final de 1994, o PSF havia sido implantado em 12 municípios do estado. Dois anos depois, em 103 municípios estavam atuando 220 equipes e, em outros 31 municípios, estava em fase de preparação a implantação de suas equipes, já com recursos assegurados.12 Em março de 2002, o PSF estava em atividade em 632 municípios mineiros, com 1.678 equipes proporcionando atenção à saúde a cerca de 5,8 milhões de habitantes. Além disso, 72 municípios beneficiavam-se do Programa de Agentes Comunitários de Saúde, de que participavam 238 equipes.13
Apesar da disponibilidade da comissão coordenadora da SES/MG para discutir a implantação do PSF em Belo Horizonte, durante todo esse período, ou seja, de 1995 a 1996, verificou-se certa resistência por parte dos dirigentes municipais da saúde, motivada por divergência político-partidária entre a Prefeitura de Belo Horizonte e a SES, a que se acrescentaram questionamentos conceituais importantes. Todos esses fatores inviabilizaram a parceria desejada para a implantação do programa, ainda que a prefeitura mantivesse o Programa Vida, com características muito próximas às do PSF, desde 1994. Os questionamentos relacionavam-se principalmente à limitação do PSF, a que competiria apenas o cuidado básico, deixando de lado os problemas dos outros níveis de saúde; seria um programa para pequenos municípios, sendo inviável implantar em capitais dos estados; ele seria um programa muito ambicioso, portanto utópico. Outra crítica então freqüente referia-se à verticalidade do PSF, cuja fórmula rígida, implantada de cima para baixo, não considerava as peculiaridades locais. Também se alegava que não se poderia destruir o sistema vigente para implantar o PSF. Alguns desses argumentos eram parcialmente válidos, mas, na verdade, não é possível ignorar que o resultado potencial do programa poderia compensar os problemas apontados, que poderiam ser equacionados, mesmo que gradualmente, por meio de um trabalho efetivo e pela procura de alternativas e novos caminhos. É importante ressaltar que, afinal, em abril de 2002, a Prefeitura de Belo Horizonte implantou o PSF no município, onde começou com 278 equipes, estando com previsão de um total de 500 até o final deste mandato da prefeitura, em 2004.14
EDUCAÇÃO PERMANENTE NO PSF
Desde os primeiros meses de 1995, a comissão coordenadora do PSF em Minas Gerais deu início a um processo de integração com as escolas da área da saúde: foram feitas várias reuniões com representantes das oito escolas de Enfermagem e das dez faculdades de Medicina do estado, e realizados seminários, em março de 1996, para discutir a parceria das escolas e faculdades com o PSF; foi realizada, ainda, uma ampla reunião na SES/MG, em junho do mesmo ano, para a qual foram convidadas todas as 76 faculdades da área da saúde de Minas Gerais, públicas e privadas, com a participação de representantes de cerca de 40 instituições.
Ainda em agosto de 1995, foi iniciado o treinamento das equipes dos 12 municípios que haviam implantado o programa no ano anterior. Em outubro do ano seguinte, o secretário de estado da saúde de Minas Gerais assinou convênio com nove escolas, para desenvolvimento da educação permanente do PSF em quatro pólos de capacitação, assim constituídos: 1- pólo de Alfenas: curso de Enfermagem da Escola Federal de Odontologia de Alfenas (Efoa) e Faculdade de Medicina da Universidade de Alfenas; 2- pólo de Belo Horizonte: Faculdade de Ciências Médicas de MG, Escola de Enfermagem e Faculdade de Medicina da UFMG; 3- pólo de Juiz de Fora: Escola de Enfermagem e Faculdade de Medicina da UFJF; e 4- pólo de Montes Claros: Escola de Enfermagem e Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). A partir de então, essas escolas, associadas à Esmig e às DRS, responsabilizaram-se pela tarefa de treinar as equipes do PSF, iniciada em 1995, dividindo o estado em regiões, cada uma associada a um determinado pólo. Posteriormente, o Ministério da Saúde estabeleceu nova configuração desses pólos de capacitação, passando a financiar suas atividades de treinamento dos profissionais das equipes do estado.
FINANCIAMENTO DO PSF
A partir de 1996, o financiamento do PSF passou a ser de responsabilidade dos três níveis de governo: ao Ministério da Saúde cabia prover as equipes de acordo com a Norma Operacional Básica/Sistema Único de Saúde-NOB/SUS/96, regulamentada pela Portaria 157/98 do Ministério da Saúde, estabelecendo o pagamento pelo número de pessoas cobertas pelo programa no município e não por procedimentos realizados pela equipe,15 além de já ter custeado a implantação das primeiras equipes, com uma quantia fixa, conforme relatado anteriormente; a SES/MG, após reprogramar a distribuição do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços-ICMS para os municípios, começou a atribuir parcelas maiores àqueles que desenvolviam programas considerados prioritários - ou seja, entre outros, os relacionados à preservação do meio ambiente e do patrimônio histórico e o Programa de Saúde da Família - por meio da lei apelidada de "Robin Hood"16; as prefeituras municipais, com seu orçamento próprio, deviam completar o orçamento necessário ao funcionamento do programa com seu orçamento próprio.
Em meados de 1995, a pedido do Governo do Estado de Minas Gerais, um grupo de trabalho do Banco Mundial-Bird, constituído por um consultor canadense, um consultor colombiano e um consultor brasileiro, iniciou estudo dos programas em andamento na SES - entre os quais o PSF - tendo em vista viabilizar empréstimo financeiro para a implementação deles. Esses consultores, depois de realizarem repetidas reuniões, que se prolongaram até o início de 1996, e de estudarem, discutirem e contestarem o PSF, exaustivamente, em certo momento começaram a questionar sua validade e viabilidade. A comissão coordenadora do programa elaborou, então, um projeto consistente, o qual foi aprovado pelos consultores do Bird.17 O empréstimo, entretanto, não se efetivou, pois o Estado tinha uma dívida não-quitada com esse Banco. No mesmo ano, porém, o Ministério da Saúde firmou um contrato com o mesmo Banco Mundial para implantação do Reforsus, um projeto que visava, primordialmente, a captar recursos para reformar e reequipar unidades de saúde no País. Aproveitando a oportunidade, o Ministério incluiu o PSF nesse projeto, que foi posteriormente efetivado.
MARCOS CONCEITUAIS DO PSF
Na realidade, o Programa de Saúde da Família não é apenas um programa, mas uma estratégia para reestruturar o modelo brasileiro de atenção à saúde. O nome sempre foi questionado, mas decidiu-se mantêlo, porque já se tornara conhecido em diversos pontos do País e nas esferas governamentais.
O PSF foi desenvolvido com vistas a melhorar a atenção à saúde, buscando-se abordar a promoção da saúde, a prevenção de agravos e a recuperação da saúde de toda a população de uma determinada região, com eqüidade, além de ampliar o sistema de informação sobre a saúde e os fatores que nela intervêm. Constituiria, assim, a porta de entrada do SUS, juntamente com os serviços de urgência, tendo como meta resolver 85% dos problemas de saúde de determinada população, pela atuação de equipes multiprofissionais, com estímulo a ações intersetoriais e com planejamento e controle social das ações em nível local. Deve-se ressaltar o forte componente educacional e mobilizador do trabalho das equipes, para permitir a participação ativa da população no autocuidado e no envolvimento com as políticas de saúde de cada município envolvido.
As características básicas do programa são: a) a abordagem deve visar a toda a população de um município e não apenas às pessoas doentes; b) a atenção à saúde deve ser ativa - ou seja, as equipes de saúde devem ir às comunidades, percorrendo domicílios, escolas, locais de trabalho e locais públicos da área respectiva, e não esperar que as pessoas procurem o sistema; c) a atenção deve ser global - isto é, deve abordar mulheres, homens, crianças, idosos e trabalhadores em todos os aspectos, independentemente de especialidades; d) a atenção deve ser contínua - cada equipe de saúde, adscrita a uma área da localidade, deve acompanhar permanentemente a mesma população, o que lhe permitirá um conhecimento aprofundado tanto das pessoas quanto da região e seus problemas específicos.
As características do modelo assistencial até então vigente e a proposta de mudança pretendida podem ser esquematizadas da forma mostrada no Quadro 1.18
Para o êxito da implantação do PSF são fundamentais treinamento e a educação permanente dos profissionais das equipes, a implantação de um adequado sistema de informação em saúde e de um sistema de referência e contra-referência com os outros níveis de atenção do SUS. O mais importante, no entanto, para viabilização do programa é o envolvimento absoluto do município - a vontade política do prefeito, da câmara de vereadores, do conselho municipal de saúde, dos profissionais de saúde e da população em geral.
A principal preocupação dos responsáveis pela implantação do PSF tem consistido em ressaltar sempre as características do programa, a fim de contrapô-las devidamente aos argumentos de pessoas ou grupos que repudiam sua implantação, por interesses corporativos e/ou individualistas. Nas palestras e reuniões de implantação do PSF, a comissão coordenadora estadual sempre se empenha em destacar que não se trata de apenas "mais um programa de saúde", mas, sim, de estratégia para reformular um modelo falido. Não se trata, também, de programa específico para a área rural ou "programa para os pobres", pois muitas experiências bem-sucedidas envolvem populações de maior poder aquisitivo e ocorreram em cidades de grande porte. Não se trata, ainda, de "equipes volantes", experiência do passado que malogrou por não fixar uma relação da equipe com a comunidade, além de se ter constituído uma atenção esporádica. Do mesmo modo, o PSF não é uma "extensão de cobertura", já que sua pretensão é de substituir o modelo de atenção vigente por uma atuação cujo enfoque, voltado para a saúde, não se descuida da atenção indispensável ao exame clínico e ao tratamento das doenças. Não é, finalmente, um programa meramente assistencialista, porque, embora incorpore muitas ações assistenciais, visa, sobretudo, a orientar a população quanto aos cuidados de saúde, assim como conscientizá-la e mobilizá-la politicamente para resolver seus maiores problemas na área.
No entanto, a crítica de que se trata de um programa vertical, induzido pelo governo federal, de cima para baixo, com estrutura rígida, sempre foi considerada pertinente. Reconhece-se que, no Brasil, devido a suas características políticas, os grandes projetos governamentais, especialmente os dependentes de financiamentos volumosos, só se viabilizam se implantados pelo governo federal e/ou estadual, o que explica a necessidade de se estimular o maior controle social possível. Além disso, é fundamental certa uniformização de processos, ainda que se respeitem as peculiaridades locais, para se evitar perda de tempo, considerando-se as muitas experiências já realizadas com êxito no Brasil e em outros países. Se o PSF ficasse totalmente dependente da vontade política dos prefeitos e da forma como os dirigentes locais preconizassem, poderiam ocorrer distorções que o inviabilizariam e seria impossível obter-se qualquer impacto positivo sobre a saúde da população.
PROBLEMAS DO PSF
O PSF tem enfrentado, sem dúvida, ao longo de sua existência, problemas de difícil solução. Apesar das muitas dificuldades criadas, tais problemas não inviabilizaram o funcionamento do programa, mesmo que tenham sido eqüacionados, muitas vezes, de maneira diferente em cada município. Ainda assim, muitos deles permanecem sem solução satisfatória até os dias atuais. Entre estes, destacam-se o processo de seleção e o sistema de contratação dos profissionais de saúde; as atribuições, a capacitação e a profissionalização dos agentes comunitários de saúde; a reação cultural dos profissionais e da população, acostumados tradicionalmente com as atividades curativas, em relação a uma nova abordagem da saúde; a diferença de salários entre os profissionais do PSF e os que trabalham em outros níveis de ação; as trocas de governos municipais; a dificuldade de manter os profissionais - especialmente os médicos - no trabalho de campo, em face de uma tendência constante à volta ao atendimento em postos de saúde; as dificuldades resultantes dos sistemas de referência e contra-referência com outros níveis de atenção do SUS; a tímida e marcadamente reprimida participação das comunidades locais; as dificuldades de manterse a educação permanente das equipes, mediante utilização de metodologias adequadas; a resistência dos médicos - que, temerosos da concorrência do programa com sua clientela particular, se recusam, em sua maioria, a atuar como médicos generalistas - e, também, dos hospitais - que temem a diminuição das internações pelo impacto do programa; o questionamento, pelo Tribunal de Contas, do pagamento do salário dos trabalhadores das equipes com recursos do SUS, além de outros problemas.
CONCLUSÃO
Atualmente, pode-se constatar que o PSF, embora não tenha produzido, ainda, impacto significativo na saúde da população, vem-se constituindo em uma estratégia de mudança de modelo assistencial no Brasil, como determina seu propósito básico. Assim, tem sido o tema principal de debates na área da saúde e da educação superior vinculada à saúde, além de se caracterizar como uma preocupação dos dirigentes municipais de todo o País e um programa bem conhecido por grande parte da população.
Falta muito, porém, para que o PSF seja amplamente implementado, com as características fundamentais que permitem o cumprimento do seu objetivo, mas a semente está plantada e os frutos prometem surgir, de maneira significativa. No estágio atual, pode-se afirmar que a experiência tem possibilitado encontrar caminhos para a consecução das mudanças pretendidas que permitirão melhorar as condições de saúde da população brasileira.
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