RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 25. 2 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.20150051

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Relatos de Casos

Manifestações clínicas e diagnóstico da doença de Whipple: relato de caso

Clinical manifestations and diagnosis of Whipple's disease: case report

Henrique Carvalho Rocha1; Wóquiton Rodrigues Marques Martins2; Marcos Roberto de Carvalho3; Lígia Menezes do Amaral4

1. Médico-Residente do Programa de Clínica Médica do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Juiz de Fora, MG - Brasil
2. Médico-Residente do Programa de Neurologia do Hospital Universitário da UFJF. Juiz de Fora, MG - Brasil
3. Médico. Nefrologista. Coordenador do Programa de Residência de Clínica Médica do Hospital Universitário da UFJF. Juiz de Fora,MG - Brasil
4. Médica. Mestre em Saúde Coletiva. Preceptora da Residência de Clínica Médica do Hospital Universitário da UFJF. Juiz de Fora, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Henrique Carvalho Rocha
E-mail: henriquemed130@gmail.com

Recebido em: 19/12/2013
Aprovado em: 05/04/2014

Instituição: Hospital Universitário da UFJF Departamento de Clínica Médica Juiz de Fora, MG - Brasil

Resumo

INTRODUÇÃO: a doença de Whipple é uma infecção multissistêmica rara, cujo agente causal é um bacilo Gram-positivo, Tropheryma whippelii. Caracteriza-se por fase prolongada de sintomatologia inespecífica, o que faz postergar o seu diagnóstico. A doença evolui com boa resposta à antibioticoterapia, com boa evolução clínica e laboratorial, mas se não tratada adequadamente pode ser grave e fatal. Este relato descreve um caso de doença de Whipple, com manifestações sistêmicas.
RELATO DE CASO: paciente masculino, 60 anos de idade, há um ano com perda de 15 kg, diarreia, anorexia, poliartralgia e palidez cutaneomucosa. Seu peso era de 45 kg e o índice de massa corpóreo de 18,7. A propedêutica completa revelou: hemoglobina de 8,12 g/dL, sorologias virais e marcadores de doença celíaca negativos; tomografia de abdome: linfonodomegalia em cadeias mesentéricas e paraórticas; endoscopia digestiva alta revelou áreas de pangastrite enantematosa e biópsia com histopatológico compatível com doença de Whipple, colonoscopia sem alterações. Iniciado tratamento com ceftriaxone seguido por sulfametoxazol-trimetoprim. Evoluiu com melhora, mantendo acompanhamento em ambulatório.
CONCLUSÃO: a doença de Whipple pode ser fatal se não diagnosticada e tratada de maneira correta. A resposta terapêutica é boa e ocorre nas duas primeiras semanas de tratamento com antibiótico.

Palavras-chave: Doença de Whipple; Tropheryma; Desnutrição; Diarreia.

 

INTRODUÇÃO

A doença de Whipple é multissistêmica, rara, causada por um bacilo Gram-positivo Tropheryma whippelii, da família das Actinobacterias e grupo Actinomycetes.1 Não há estimativa correta da sua atual prevalência ou incidência. Foram descritos cerca de 1.000-1.500 casos até os dias atuais. A doença pode ocorrer em todas as faixas etárias, mas acomete principalmente homens com idade média de 50 anos.2-5

Pode cursar com dois estágios:

sinais/sintomas inespecíficos como febre e poliartralgia;

sinais/sintomas gastrintestinais, como: dor abdominal, emagrecimento, diarreia crônica; e generalizados, como caquexia, linfonodomegalia e alterações cardiovasculares, pulmonares ou neurológicas.2,5

O tempo médio de evolução da fase inicial para sintomatologia específica é de seis anos.3

Os achados laboratoriais podem ser inespecíficos, evidenciando anemia, leucocitose, aumento de reagentes de fase aguda e alterações relacionadas à má-absorção.2

O diagnóstico pode ser com base em alterações histopatológicas específicas na biópsia duodenal ou por métodos de biologia molecular.4,5 O tratamento deve ser feito com antibioticoterapia e acompanhamento ambulatorial por causa do risco de recidiva, com avaliação de exames laboratoriais e endoscopia digestiva alta para seu controle.3-9

 

RELATO DO CASO

RBM, masculino, 60 anos de idade, admitido no serviço de clínica médica do Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora, em julho de 2012, devido ao emagrecimento de 15 kg há cerca de um ano. Relatava diarreia aquosa, volumosa, sem muco, pus ou sangue e com restos alimentares, sem associação com episódios álgicos em abdome, com duração aproximada de quatro dias e frequência de oito episódios evacuatórios/dia, autolimitada, intercalada com períodos de normalidade do trânsito intestinal. Apresentava ainda anorexia, adinamia e episódio febril (39ºC) vespertino. Sem história de esteatorreia ou tenesmo. Em março de 2012, durante exames de avaliação periódica, identificou-se anemia, com contagem de hemácias: 3,14 x 106/uL, hemoglobina 8,12 g/ dL, hematócrito: 24,7%, VCM 78,8 fl, HCM 25,8 pg, RDW 18%; sendo iniciada, por isso, avaliação propedêutica.

Referia ainda episódios de poliartralgia migratória, intermitente, acometendo principalmente joelhos e cotovelos, sem sinais de artrite. História de miocardiopatia isquêmica. Encontrava-se emagrecido (peso 45 kg, índice de massa corpóreo: 18,7) e hipocorado (2+/4+).

Apresentava anemia microcítica hipocrômica, com ferro sérico e índice de saturação de transferrina baixos e ferritina normal. O leucograma encontrava-se nos níveis da normalidade. Os marcadores para doença celíaca (antiendomísio IgA e IgG, antigliadina IgA e IgG, antitransglutaminase) eram negativos. A Tabela 1 resume os exames realizados durante a avaliação inicial do paciente.

 

 

Durante a internação, manifestou quatro episódios de diarreia aquosa, volumosa, sem muco, pus ou sangue, com restos alimentares. Foi tratado com medicações sintomáticas. Recebeu também hidróxido de ferro III para correção do déficit do depósito de ferro.

A ultrassonografia e tomografia computadorizada (TC) de abdome foram normais e com linfonodomegalias em cadeias mesentéricas e paraórticas, respectivamente.

Considerada a possibilidade de doença com acometimento do intestino delgado, foram realizados a seguir trânsito intestinal, endoscopia digestiva alta (EDA) e colonoscopia com biópsias.

O trânsito intestinal estava normal e EDA evidenciou pangastrite enantematosa leve, sendo realizada biópsia de cinco fragmentos do duodeno. A colonoscopia não demonstrou alterações macroscópicas, sendo realizadas biópsias do reto, cólon e íleo terminal.

O exame histopatológico, realizado nos fragmentos de biópsias, revelou na mucosa ileal e duodenal aglomerados de histiócitos com citoplasma rico em grânulos ácidos-periódico-Schiff (PAS) positivo, achados esses consistentes com doença de Whipple. Não foram observados restos de bactérias fagocitadas pelos macrófagos (Figuras 1 e 2).

 


Figura 1 - Biópsia de mucosa duodenal - Mucosa duodenal exibindo, em lâmina própria, numerosos macrófagos de citoplasma granular com inclusões PAS positivas. HE 100x.

 

 


Figura 2 - Biópsia de mucosa duodenal - Histoquímica para ácido periódico-Shiff (PAS) revela macrófagos com citoplasmas ricos em grânulos PAS positivos. PAS 200x.

 

Frente à confirmação diagnóstica de doença de Whipple, foi realizada punção lombar para coleta de líquido cefalorraquidiano, que não apresentava alterações (citometria - uma hemácia e uma célula nucleada; cloreto 115 umol/L; glicose 60 mg/dL; proteínas totais 64,6 mg/dL; liquor límpido e incolor). Solicitou-se o exame reação em cadeia da polimerase (PCR) para Tropheryma whippelii, mas por problemas técnicos do laboratório não foi realizado. Iniciou-se, então, tratamento com ceftriaxone intravenoso (2 g duas vezes ao dia) durante 14 dias, seguido por sulfametoxazol/trimetoprim (800+160 mg) duas vezes ao dia por no mínimo 12 meses e encaminhamento ao ambulatório de clínica médica para controle clínico.

O paciente teve adesão e resposta adequada ao tratamento instituído. Após um ano, apresentou ganho de peso (20 kg) e remissão dos sintomas prévios. Na EDA de controle (um ano após o início do tratamento) foram visibilizados, na mucosa duodenal, aglomerados de histiócitos com citoplasma contendo grânulos PAS positivos.

 

DISCUSSÃO

O primeiro caso de doença de Whipple (DW) foi descrito por George Hoyte Whipple, em 1907.2,3 Apesar de haver alguns avanços sobre a doença, ainda há muito a esclarecer em relação à sua epidemiologia e seu habitat.2-6

Alguns estudos sugerem alta prevalência em moradores de zona rural. O bacilo pode ser encontrado no solo, na água do esgoto, na cavidade oral e nas fezes de indivíduos saudáveis.2,5,6 Por outro lado, há evidência de que esse microrganismo possa ser ubiquitário no ser humano, já que há estudos utilizando PCR permitiram identificar o T. whippelii em amostras de saliva, suco gástrico e biópsias duodenais em indivíduos sem doença de Whipple.2,6

A DW é doença rara, mas sua verdadeira incidência ainda não é conhecida.3 Alguns estudos sugerem a ocorrência, em todo o mundo, de aproximadamente 12 novos casos/ano, porém esse número representa seguramente uma subestimativa do total de casos.4 Aproximadamente 80% dos indivíduos afetados são do sexo masculino, na sua maioria de raça caucasiana. A idade média do diagnóstico é de 49 anos, mas a doença pode surgir em qualquer faixa etária.1-6

A doença é caracterizada por dois estágios: um estágio prodrômico, marcado por sintomas múltiplos, associado a achados crônicos inespecíficos, como artralgia e artrite. O outro estágio é marcado por emagrecimento, diarreia e outras manifestações sistêmicas, dependendo do sítio de acometimento da doença.1,3

As manifestações clínicas são variadas. Na maior parte das vezes há comprometimento do intestino delgado, sendo a diarreia a principal manifestação clínica da doença, seguida da perda de peso, com a caracterização de síndrome de má-absorção. Outras manifestações frequentes são a dor abdominal, febre e linfonodopatias.2,3,6

O envolvimento das articulações causa artralgia e/ou artrite, sendo esses os sintomas extraintestinais mais frequentes na DW, ocorrendo em 65 a 90% dos pacientes. Podem preceder o diagnóstico por alguns anos, sendo normalmente simétricas, migratórias e de curta duração.1,2

O acometimento do sistema nervoso central (SNC) associado à doença de Whipple pode ocorrer na ausência de manifestações gastrintestinais.3,8 As alterações neurológicas mais frequentes da DW são as alterações cognitivas, distúrbios dos movimentos oculares, oftalmoplegia, alterações do movimento (particularmente mioclonias) e alterações hipotalâmicas.1,3,5,8 O paciente relatado no caso não apresentava alterações neurológicas.

Além desses sintomas, a doença pode afetar o sistema cardiovascular, com alterações valvares. Na pele pode ocorrer hiperpigmentação e podem estar presentes manifestações oculares tais como uveíte e coriorretinite.2,3 Alterações laboratoriais são comuns: anemia, trombocitose, hipoalbuminemia e elevação de reagentes de fase aguda, como proteína C reativa.3

A doença de Whipple deve fazer parte do diagnóstico diferencial de várias situações clínicas: doenças disabsortivas que acometem o duodeno e o íleo proximal (espru tropical, doença celíaca, sarcoidose e linfoma) e doenças reumatológicas (artrite soronegativa).3

A EDA pode evidenciar alterações na mucosa intestinal, principalmente na região pós-bulbar do duodeno, com extensão para outros segmentos do intestino delgado. As alterações mais frequentes são o espessamento das pregas da mucosa, com exsudados esbranquiçados confluentes alternando com erosões e áreas de friabilidade da mucosa.4

O diagnóstico da doença baseia-se na biópsia duodenal ou jejuno proximal, visto que essas regiões são as mais acometidas nos pacientes sintomáticos.1 A infiltração da lâmina própria do intestino delgado por macrófagos contendo no seu interior estruturas baciliformes, PAS positivas e resistentes à diástase, acompanhada por dilatação linfática, são aspectos específicos da doença de Whipple.2,3,10,11 Células com material PAS positivo podem ser causadas por outros agentes infecciosos, tais como Mycobacterium avium complex, Rhodococcus, Bacillus cereus, Corynebacterium e certos fungos como o histoplasma.5,11,12

A microscopia eletrônica é utilizada, desde 1961, para identificar a bactéria T. whippley.2 No entanto, trata-se de meio complementar de diagnóstico que não está presente em todos os hospitais e que exige métodos laboratoriais complexos e demorados para a preparação das amostras, de modo que atualmente reserva-se aos casos em que os resultados da PCR e/ou histologia são duvidosos. A PCR é, nessa doença, instrumento diagnóstico importante, pois apresenta grande sensibilidade e especificidade, sendo especialmente útil nos casos com manifestações atípicas e/ou quando o diagnóstico não pode ser confirmado histologicamente.1,3 Uma vez feito o diagnóstico, o líquido cefalorraquidiano deve ser testado com PCR, mesmo na ausência de sintomas neurológicos, devido à importância no tratamento e no prognóstico da doença.2

A antibioticoterapia deve ser iniciada o mais precocemente possível, dando preferência aos medicamentos capazes de atravessarem a barreia hematoencefálica.1,3,9 O tratamento inicial deve ser feito por 14 dias com antibiótico inicialmente endovenoso e desescalonado para a via oral por 1-2 anos.1,3 Alguns esquemas de antibióticos têm sido experimentados, como: penicilina isoladamente, penicilina e estreptomicina, ampicilina, eritromicina, cefalosporinas de terceira geração.8 Outra possibilidade é o tratamento inicial com penicilina e estreptomicina endovenosa durante duas semanas. Há ainda o esquema com o ceftriaxone (2 g ev./dia) nas primeiras duas semanas, seguido da administração oral de sulfametoxazol/trimetoprim durante um ano.2,8 A resposta terapêutica é rápida e frequentemente ocorre nas duas primeiras semanas de tratamento.5,9

Mesmo com o tratamento adequado, a doença pode recidivar em 2-33% dos pacientes em até cinco anos.2 A recidiva é caracterizada principalmente por acometimento neurológico.1 Em casos de falha terapêutica, outro esquema de antibiótico deve ser considerado.3 Os pacientes devem ser acompanhados com frequência para avaliar a resposta terapêutica. As manifestações clínicas geralmente melhoram e a PCR torna-se negativa em poucas semanas. Já as alterações histopatológicas podem permanecer por alguns anos.11-13

 

CONCLUSÃO

A doença de Whipple é rara, sistêmica e pode ser fatal se não tratada adequadamente. Por ter apresentação clínica variada, nem sempre é diagnosticada, acarretando prejuízo para os doentes. Apresenta boa resposta quando tratada de forma adequada. A evolução clínica tem que ser acompanhada durante toda a terapêutica, para confirmar a resposta ao tratamento, e por vários anos após o termino do tratamento, de modo a identificar recidivas tardias.

 

REFERÊNCIAS

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