ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
O silêncio da violência institucional no Brasil
The silence of institutional violence in Brazil
Priscilla Soares dos Santos Ladeia; Tatiana Tscherbakowski Mourao; Elza Machado de Melo
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina - FM, Programa de Pós-Graduaçao em Promoçao de Saúde e Prevençao da Violência. Belo Horizonte, MG - Brasil
Endereço para correspondênciaPriscilla Soares dos Santos Ladeia
E-mail: priscilla_branca@yahoo.com.br
Instituiçao: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil
Resumo
Atualmente, a violência, em suas múltiplas faces, constitui um problema mundial, pelas suas graves consequências em agravos à saúde e impacto socioeconômico. O setor saúde, que deveria responder pelo cuidado aos indivíduos envolvidos em situações de violência e promover ações de enfretamento desse problema, paradoxalmente atua como agente de violência institucional. A despeito da sua gravidade e potenciais consequências, a violência institucional persiste naturalizada e silenciada, por profissionais e usuários, em instituições de saúde. Este artigo tem por objetivo fazer uma revisão da literatura acerca do tema "violência institucional", especificamente no setor saúde no Brasil, exemplificada em experiências de profissionais e usuários.
Palavras-chave: Violência; Assistência à Saúde; Fatores de Risco, Fatores Socioeconômicos.
INTRODUÇÃO
A violência, em suas múltiplas faces, constitui preocupação mundial, pela alta prevalência e graves consequências quanto à morbimortalidade, além de impactos sociais e econômicos. Segundo o Relatório Mundial Sobre Violência e Saúde, publicado em 2002 pela Organização Mundial de Saúde (OMS)1, a cada ano mais de um milhao de pessoas perdem a vida e muitas mais sofrem lesões não fatais, como resultado de violência autoinfligida, interpessoal ou coletiva. Somam-se a isso a dor e sofrimento associados, entre outras múltiplas consequências sociais e psicológicas para os indivíduos e suas famílias.
A interlocução do setor saúde com a violência acontece na medida em que ele deve responder pelo cuidado físico e mental dos indivíduos envolvidos em situações de violência. Além disso, deve, juntamente com outros setores, traçar estratégias de prevenção e enfrentamento desse problema, com o objetivo de assegurar saúde plena em todos os seus aspectos biopsicossociais. No entanto, paradoxalmente, os serviços de saúde e seu corpo profissional constituem-se também em cenários e perpetradores de atos de uma violência silenciosa, que, nesse contexto, recebe o nome de "violência institucional". Este artigo tem por objetivo fazer uma revisão da literatura acerca do tema "violência institucional", especificamente no setor saúde no Brasil, exemplificada em experiências de profissionais e usuários.
MÉTODO
Realizou-se pesquisa no Portal Capes utilizando-se a busca por assunto com os termos "violência institucional" OR "institutional violence"; com o filtro de "idioma", incluindo português, inglês e espanhol. Foram encontrados 192 trabalhos, cujos resumos foram lidos. Descartaram-se os trabalhos em duplicidade, aqueles cuja definição do tema pesquisado era diferente do foco deste artigo e também aqueles que tratavam da violência institucional em outros cenários que não o da saúde. Do total, foram selecionados 12 trabalhos para produção deste artigo.
REVISÃO
A violência institucional é definida como a violência praticada por órgaos e agentes públicos que deveriam responder pelo cuidado, proteção e defesa dos cidadaos. Manifesta-se, no setor saúde, segundo D'Oliveira et al.2, por meio da negligência; violência verbal como tratamento grosseiro, repreensão, ameaças; violência física, incluindo o não alívio da dor; e o abuso sexual.
Segundo Fleury et al.3,existe uma assimetria entre o profissional de saúde e o enfermo. Essa assimetria é pautada, para além do conhecimento técnico e científico, na autoridade cultural e moral atribuída aos profissionais de saúde, em especial ao médico, conforme Aguiar e D'Oliveira4. A violência aconteceria quando se converte essa diferença e assimetria numa relação hierárquica com fins de dominação, de exploração e opressão, colocando o sujeito em situação de objeto, com negação ou prejuízo de sua atividade e fala.5 Assim, no momento em que o profissional de saúde extrapola os limites de poder e autoridade a ele atribuídos bem como impede ou limita a autonomia do usuário, oprimindo-o, institui-se a violência.
Há que se destacar que a privação dessa autonomia representa também a negação de um princípio fundamental da atenção à saúde prevista na Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990: "preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral". O usuário deixa de participar e ter voz ativa na decisão sobre seu cuidado, tornando-se simples objeto de intervenção.
Aguiar e D'Oliveira4 ressaltam a "crise de confiança" na área da saúde como outro determinante da violência institucional. Essa crise seria resultado da fragilidade do vínculo estabelecido entre profissionais e pacientes, com o uso excessivo de tecnologia em prejuízo da escuta, do acolhimento e do cuidado integral e individualizado.
No entanto, não é somente na relação entre profissional e usuário que a violência institucional acontece, mas, também, na negação desse "encontro", pela dificuldade de acesso aos serviços de saúde e peregrinações em busca de atendimento. Estudo realizado por Diniz et al.6 em maternidades localizadas em capitais nordestinas evidenciou que 58% das participantes não conseguiram vaga nas instituições, tendo que passar por dois ou mais serviços de saúde antes de serem atendidas. O mesmo problema foi encontrado em outro estudo no Rio de Janeiro:
Eu fui para o Rochinha e a mulher olhou pra mim e disse: "Ah! Você tem que ir pro Rocha Faria". Quando eu fui pro Rocha Faria eles me disseram: "Não, você tem que ir pro Rochinha" (Militante do Movimento Negro).3:17
A expressão da violência institucional na saúde é ainda mais importante em alguns grupos como mulheres, idosos, negros e aqueles de classe econômica mais baixa, refletindo situações históricas de preconceito e discriminação em função do sexo, classe social e raça, além de valores culturais e julgamento moral. Tal fato é apresentado em discursos de usuários e profissionais em diversos estudos:
A cor da pele conta muito, o lugar onde a pessoa vive, se a pessoa está com os pés cheios de lama porque vive em um lugar que não tem asfalto, tudo isso conta na hora de uma consulta médica. Há situações em que o médico não quer nem colocar a mão sobre a pessoa [...] não coloca (Militante do Movimento Negro).3:17
Um médico afirmou que não se deveria confiar totalmente nas histórias de violência sexual contadas pelas mulheres, já que muitas "querem fazer aborto e arranjam esta desculpa".7:119
É porque é pobre, né? Porque no [hospital privado X] ele não vai fazer isso, você entendeu? [...] Entao eu acho que existe essa forma de ver as coisas. A paciente é pobre? Ah, tudo bem, né? Você percebe algumas situações, assim, que o profissional, seja médico ou enfermagem, né, ele não faria isso se tivesse num hospital "top" de linha (Obstetra 10).8:2293
As instituições que deveriam ofertar atenção em saúde de modo igualitário não somente negam esse direito constitucional como também são cenários perpetuadores de outras violências.
As práticas de violência institucional manifestam-se tao corriqueiramente e de forma tao natural e silenciosa que muitas vezes não são reconhecidas como tais. A violência também é legitimada como "necessária" para o exercício do trabalho ou "para o bem" do usuário:
Ah, isso eu já falei também [Não grita se não eu não venho te atender! Se continuar eu paro agora o que eu estou fazendo!]. (...) Porque eu queria tentar chamar atenção pra ela colaborar no trabalho de parto.8
Além disso, em especial quando a violência não gera lesão física, os profissionais tendem a não entendê-la em sua definição e gravidade: "[...] atos violentos nunca presenciei, mas constrangedores, inúmeros" (P1).9:61
Os usuários dos serviços de saúde, por sua vez, por medo de represália ou desconhecimento de seus direitos, mesmo reconhecendo atos de violência institucional, muitas vezes abdicam de contestá-los. Vieira e Favoreto10:92 destacam que, "apesar das situações de sofrimento e violência, as famílias tendem a manter o tratamento, por meio do silêncio e evitando o embate com profissionais".
Lá na maternidade tinha uma mulher, já era o quarto filho dela. E a mulher lá, dando as contração, a mulher fazendo um escândalo. E eu lá, era o meu primeiro filho, porque diz que se você não gritar, não fazer escândalo, eles não maltrata. [...] eles deixaram ela de canto lá, reclamando sozinha. [...] Aí o médico falou assim: "só por isso você vai ficar aqui aguentando" [...] E eu lá com as contrações, eu não dava um pio, eu me mordia, [...] mas eu não gritava, não fazia nada.4
Souza et al.11:62 destacam como a violência muitas vezes não é reconhecida também pelos usuários: "exatamente por ser exercitada nas ações diárias de instituições consagradas por sua tradição e poder, essa forma de violência costuma ser considerada como algo natural que, na maioria das vezes, não é contestada". Isso se confirma na observação de Fleury et al.3 de que muitos usuários afirmam não terem presenciado alguma situação de violência, embora seus discursos estivessem marcados por preconceitos e desrespeitos.
Dessa forma, o não reconhecimento e o silenciamento diante de atos de violência institucional favorecem a sua manutenção, perpetuação e terminam por legitimá-la como intrínseca às práticas de saúde. As iniciativas de resistência e/ou de enfrentamento a essa forma de violência, por usuários e profissionais, são, em geral, individualizadas e nem sempre resolutivas. Manifestam-se por meio de denúncias, de boicote às regras, de transformar a situação em um "espetáculo" ou "escândalo", de tentativas de resolução do conflito ou judicialização da questao.3
A menina quase agarrou a médica lá agora [...] quando ela saiu, ela ia segurando a médica. [...] Mas é assim que funciona, eu consigo porque chego lá e armo um escândalo. Porque eu estou no meu direito, sabe? (Militante do Movimento Negro).3:20
[...] Já vi e intervi..., de tomar a assistência dele [referindo-se ao colega]. Pode deixar que eu faço, não precisa você cuidar, pode deixar que eu cuido (P10).11:69
São reconhecidas algumas formas de resistência coletiva representadas, por exemplo, por grupos de pacientes de doenças específicas que partilham vivências de dificuldades comuns. Em geral, nesses grupos, "encontramos consciência reivindicativa tanto com relação aos direitos negados como referente a práticas discriminatórias na atenção à saúde".3:20 Estudo realizado por Amaro et al.12 investigou e comparou a percepção da violência em duas comunidades da periferia de Londrina, PR. Em sua conclusão, este estudo reforça que grupos ou comunidades com mais mobilização popular têm percepção mais aprofundada e condizente com a complexidade do problema da violência, referindo-a como reflexo da estrutura social, da cultura e agressões por agentes dos serviços públicos, o que pode favorecer o seu enfrentamento.13-17
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência institucional constitui grave problema no setor saúde no Brasil e tem potencial de causar consequências físicas e psicológicas para os usuários em instituições de saúde que, pressupostamente, deveriam promover o cuidado e respeitar direitos constitucionais. Diversos estudos evidenciam como outras violências, como a de sexo, classe socioeconômica e cor/raça, se entrelaçam e acentuam as manifestações da violência institucional.
A despeito da gravidade dessas ações e/ou omissões, a violência institucional persiste ainda pouco reconhecida e naturalizada por profissionais e usuários, com movimentos discretos para seu enfrentamento. As múltiplas vozes envolvidas se calam. A invisibilidade da violência institucional por profissionais de saúde e usuários, bem como o silêncio perpetuado, mesmo diante de sua identificação, alerta para a urgência de mais mobilização popular e estudos que possam subsidiar políticas públicas para melhor reconhecimento e enfrentamento desse problema.
REFERENCIAS
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4. Aguiar JM, D'oliveira AFPL. Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica das usuárias. Interface Comunic Saúde Educ. 2011;15(36):79-91.
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14. Ministério da Saúde (BR). Lei n°8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispoe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, e dá outras providências. Diário Oficial da Uniao, Brasília, DF, 20 set. 1990. p.18055.
15. Cuevas MC.Voces sobre la violencia en la atención del aborto. Rev Venezolana Estudos Mujer. 2006;3(1):20-6.
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17. Jacques PB, Olinda QB. A health's view on violence. Rev Bras Prom Saúde. 2012;25(2):129-30.
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