ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Considerações acerca da atuação da psicologia frente a situações de violência em um hospital de urgência e emergência
Considerations about the performance of psychologists with situations of violence in a emergency hospital
Izabella Freitas Nicolau1; Júlia Araújo Prado2; Louise de Paula Pinheiro Gonçalves3; Raquel Ferreira Pacheco4; Sandra das Dores Souza5
1. Psicóloga. Residente em Atençao em Urgência e Emergência no Hospital de Pronto Socorro Joao XXIII. Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil
2. Psicóloga. Residente em Atençao em Urgência e Emergência no Hospital de Pronto Socorro Joao XXIII. Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil
3. Psicóloga. Residente em Atençao em Urgência e Emergência no Hospital de Pronto Socorro Joao XXIII. Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil
4. Psicóloga. Pós-graduada em Saúde Mental e Residente em Atençao em Urgência e Emergência no Hospital de Pronto Socorro Joao XXIII. Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil
5. Psicóloga. Mestre em Promoçao de Saúde e Prevençao de Violência e Tutora de Psicologia no programa de Atençao em Urgência e Emergência da Residência Multiprofissional do Hospital de Pronto Socorro Joao XXIII. Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil
Raquel Ferreira Pacheco
Hospital de Pronto Socorro Joao XXIII, Departamento de Psicologia. Fundaçao Hospitalar do Estado de Minas Gerais - FHEMIG
Belo Horizonte, Minas Gerais - Brasil
E-mail: residenciapsi.joao23@gmail.com
Resumo
A violência, especialmente no Brasil, tem sido tema de grande relevância e preocupação, sendo tratada em numerosos estudos acadêmicos e estando em pauta no campo das políticas públicas com vistas à sua mitigação e prevenção. Este estudo teve como objetivo compreender a violência como um fenômeno multifatorial, que se apresenta como um problema de saúde pública na contemporaneidade. A partir das inquietações suscitadas pela experiência no cotidiano do serviço de Psicologia do Hospital Joao XXIII, buscou-se discorrer sobre os impactos psíquicos experienciados pelos sujeitos expostos a situações de violência, bem como a atuação da Psicologia frente ao sujeito que, após se deparar com o real da violência, chega ao hospital de urgência e emergência. Para tanto, utilizou-se como método a revisão de literatura. As discussões realizadas apontam para a necessidade de desenvolvimento de políticas públicas e ações capazes de abordar a questao da violência como fenômeno multifatorial, cuja responsabilidade compete a todos os atores sociais. Reflete-se ainda sobre a necessidade de constante atualização e capacitação dos profissionais de saúde, em especial a(o) psicóloga(o), de modo a contribuir no atendimento, auxiliando a promoção da autonomia dos sujeitos, na articulação em rede e na notificação dos casos de violência que chegam às instituições de saúde.
Palavras-chave: Violência; Urgência e Emergência; Psicologia; Saúde Pública; Hospital.
INTRODUÇÃO
A violência, especialmente no Brasil, tem sido tema de grande relevância e preocupação, sendo tratada em numerosos estudos acadêmicos e estando em pauta no campo das políticas públicas com vistas à sua mitigação e prevenção. Segundo historiadores e demais estudiosos do tema, não há registro na história da humanidade de uma civilização em que o fenômeno da violência não esteja presente.1,2
Conforme Minayo1:
É bem verdade que em sua origem e suas manifestações, a violência é um fenômeno sócio histórico e acompanha toda a experiência da humanidade. Portanto, ela não é, em si, uma questao de saúde pública. Transforma-se em problema para a área porque afeta a saúde individual e coletiva e exige, para sua prevenção e enfrentamento, formulação de políticas específicas e organização de práticas e de serviços peculiares ao setor.
Em seu Relatório Mundial sobre Violência e Saúde3, a Organização Mundial da Saúde (OMS) nos apresenta que: "todo ano, mais de um milhao de pessoas perdem a vida e muitas outras sofrem lesões não fatais", por causas violentas. Nesse mesmo Relatório, encontra-se a seguinte definição para violência: "o uso intencional de força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade que resulte ou tenha possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação".3
Assim, a OMS3 traz uma noção de violência que implica necessariamente uma associação entre intencionalidade e prática, o que pode gerar danos de diversas ordens a indivíduos, grupos ou comunidades. Ainda, segundo Queiroz4, obrigar alguém a fazer algo que não deseja, impedindo-o de manifestar sua vontade também configura como violência.
Como fenômeno, a violência pode ser analisada considerando-se o ponto de vista de sua constituição sócio histórica, diversidade de manifestações nas sociedades humanas e formas de ser interpretada em cada grupo social.5 Como problema de saúde pública, a violência configura-se a partir de sua compreensão como fator de risco à saúde individual e coletiva, decorrendo dos fenômenos violentos consequências que oneram toda a sociedade, desde a perda diária de vidas e produção de sequelas físicas, sociais e psicológicas, perdas econômicas, até a expressividade dos gastos financeiros e humanos com assistência à saúde nos diversos níveis de complexidade.2,5
Desse modo, faz-se necessário pensar como a violência repercute na sociedade contemporânea e qual seu impacto na saúde dos brasileiros. No âmbito da saúde, a violência é vista a partir de duas vertentes, em nosso país:
uma explicativa partindo de uma reflexão filosófica e teórica; outra operacional que se fundamenta na constatação dos transtornos biológicos, emocionais e físicos que sua dinâmica provoca no bem-estar e na qualidade de vida das pessoas.2
No Brasil, em 2001, foi instituída a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências6, a partir da Portaria MS/GM nº 737. Essa Política foi formulada com vistas à conquista de melhorias nos planos, programas, projetos e atividades de órgaos e entidades da saúde pública, orientando sua atuação a partir das diretrizes e responsabilidades nela especificadas. Além disso, esse documento prioriza medidas que auxiliem na promoção à saúde e na prevenção da violência, buscando-se orientar a articulação do setor saúde a outros setores sociais, tais como a assistência social e a segurança pública. Também apresenta instrumentos para que se possa conhecer melhor o perfil dos indivíduos e grupos atingidos pela violência, ainda que esta atinja e traga prejuízos econômicos, sociais e emocionais a toda a sociedade. Em seu texto introdutório aponta-se, por exemplo, que:
Os homens sofrem mais violência que levam a óbito e tornam-se visíveis nos índices de mortalidade. Em outros segmentos, porém, sobretudo o de criança, adolescente, mulher e idoso, as violências não resultam necessariamente em óbito, mas repercutem, em sua maioria, no perfil de morbidade, devido ao seu impacto sobre a saúde.6
Segundo o Atlas da Violência7, publicado pelo Instituto Brasileiro de Pesquisa Aplicada e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 56,5% dos óbitos entre homens de 15 a 19 anos estao relacionados a homicídios. Outro dado preocupante revela que as mortes por causas externas, são a terceira causa de morte no Brasil e a primeira causa de morte na faixa etária de 1 a 39 anos entre a população.8 Ainda, conforme dados apresentados pelo Ministério da Saúde, no ano de 2012, as causas externas representaram cerca de 12,9% de todas as causas de morte no Brasil, sendo que dessas, 44,3% são constituídas por agressões, lesões autoprovocadas e intervenções legais.9
Em reconhecimento à necessidade de monitoramento e produção de dados estatísticos acerca da violência no Brasil, o Ministério da Saúde, em 2014, instituiu a Portaria GM/MS nº 1.271/2014, que apresenta a "Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências"10, colocando assim as violências como agravos de notificação compulsória, em atendimento ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Estatuto do Idoso e à Lei nº 10.778/2003, que versa sobre a notificação compulsória da violência contra a mulher.
Em documento da Secretaria de Vigilância em Saúde sobre a Notificação de Violências, ressalta-se sua relevância nesse contexto, pois:
A notificação de violência surgiu com o objetivo de dar visibilidade a esse fenômeno, que se constitui enquanto problema social, de saúde e de segurança públicas. A vigilância de violências instrumentalizada através da ficha de notificação é parte da estratégia do SUS frente à violência, assim como os Núcleos de Prevenção de Violência e Promoção da Saúde. A notificação permite conhecer melhor os casos de violência, quais as características dos autores e das vítimas - tais como sexo, raça/cor e escolaridade - que podem configurar grupos de diferentes vulnerabilidades.11
Ante o exposto, este estudo teve como objetivo compreender a violência como um fenômeno multifatorial, que se apresenta como um problema de saúde pública na contemporaneidade. Para tanto, utilizou-se como método a revisão de literatura. Buscou-se discorrer sobre os impactos psíquicos experienciados pelos sujeitos expostos a situações de violência, bem como a atuação da Psicologia frente ao sujeito que, após se deparar com o real da violência, chega ao hospital de urgência e emergência. A escolha desta temática foi instigada pelas experiências vivenciadas nas práticas do serviço de Psicologia no Hospital Joao XXIII, uma vez que este hospital recebe todos os dias pessoas atingidas pela violência, muitas vezes de forma abrupta e inesperada, com variados perfis socioculturais e econômicos.
Caracterização da violência
A Organização Mundial de Saúde desenvolveu um estudo aprofundado que caracteriza os diferentes tipos de violência e a relação existente entre eles, a partir do qual publicou, em 2002, o Relatório Mundial sobre Violência e Saúde3, em que divide a violência em três grandes categorias, baseando-se nas características e contextos dos atos violentos. Posteriormente, cada uma dessas três grandes categorias foi subdividida, objetivando retratar tipos mais específicos de violência.
As três grandes categorias propostas nesta tipologia da violência são: violência dirigida a si mesmo (auto infligida); violência interpessoal; violência coletiva.3 Esta categorização avalia o tipo de violência a partir da perspectiva de qual é o tipo de autor da mesma, buscando fazer distinção entre:
a violência que uma pessoa inflige a si mesma, a violência infligida por outra pessoa ou por um pequeno grupo, e a violência infligida por grupos maiores como, Estados, grupos políticos organizados, grupos de milícia e organizações terroristas.3
Na categoria violência dirigida a si mesmo há a subdivisão entre comportamento suicida e agressão auto infligida. O comportamento suicida engloba pensamentos suicidas, tentativas de suicídio e o suicídio propriamente dito, já a autoagressão inclui atos como a automutilação.3
A violência interpessoal divide-se ainda em dois grupos: violência de família e de parceiros íntimos e violência na comunidade. No primeiro, a violência ocorre principalmente entre membros da família e parceiros íntimos, na maioria das vezes dentro dos próprios lares. Pode-se citar violências como abuso infantil, violência entre parceiros íntimos e maus-tratos de idosos. No segundo, a violência ocorre entre indivíduos sem relação pessoal, sem laços de parentesco, que podem ou não se conhecer. O segundo grupo inclui "violência da juventude, atos variados de violência, estupro ou ataque sexual por desconhecidos e violência em instituições como escolas, locais de trabalho, prisões e asilos".12
Segundo o Relatório Mundial Sobre Prevenção da Violência, a terceira grande categoria, violência coletiva, é subdividida em violência social, política e econômica. Ainda conforme esse documento, esse tipo de violência consiste em:
uso instrumental de violência por pessoas que se identificam como membros de um grupo, seja ele temporário ou permanente, contra outro grupo ou conjunto de indivíduos, visando alcançar objetivos políticos, econômicos ou sociais.3
Dentre as violências interpessoais cabe ressaltar a violência psicológica, que se manifesta em ações que causam dano emocional, acarretam risco à autoestima, à identidade ou desenvolvimento pessoal. Caracteriza-se por atitudes que visam controlar ação e comportamentos, mediante:
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.13
Autores como Souza et al.14 alertam que a violência psicológica é muito difícil de ser dimensionada. Além disso, ressaltam o quanto algumas formas de violência, como as tentativas de suicídio e os suicídios são subnotificadas, devido aos tabus e preconceitos sociais.
Alterações psíquicas frequentes em sujeitos vítimas de violência
A violência, em suas tantas nuances, raramente ocorre sem sérias consequências ao sujeito que a sofre. Algumas podem ser observadas ainda no ambiente hospitalar, outras surgirao mais tarde, como resquícios inevitáveis do trauma sofrido. Dentre estas, é importante ressaltar o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), quadro psicopatológico comumente experienciado por indivíduos vítimas de violência.
A Classificação Internacional de Doenças - CID 10 define o Transtorno de Estresse Pós-Traumático da seguinte maneira:
Este transtorno constitui uma resposta retardada ou protraída a uma situação ou evento estressante (de curta ou longa duração), de natureza excepcionalmente ameaçadora ou catastrófica, e que provocaria sintomas evidentes de perturbação na maioria dos indivíduos. Fatores predisponentes, tais como certos traços de personalidade (por exemplo compulsiva ou astênica) ou antecedentes do tipo neurótico, podem diminuir o limiar para a ocorrência da síndrome ou agravar sua evolução; tais fatores, contudo, não são necessários ou suficientes para explicar a ocorrência da síndrome.15
Freud, nas Conferências Introdutórias à Psicanálise16, fala sobre o trauma enquanto consequência de um evento perturbador da economia psíquica. Evento que, em curto espaço de tempo, provoca tamanho acúmulo de energia psíquica, que torna impossível ao sujeito a elaboração desejada, assim o psiquismo terá que buscar meios para absorver ou canalizar o excesso de estimulação.
Considerando, portanto, que o caráter traumático de um acontecimento é resultado de um desequilíbrio da economia psíquica, e não apenas do fato em si, Neto17 aponta como determinante a relação entre três conceitos: evento factual, vivência e experiência. Estes representam, respectivamente, o fato em si; o que de mundo interno é conhecido pelo sujeito; e a relação entre estes. Assim, uma situação de violência se configura como traumática quando o perigo é maior do que as condições de enfrentamento e resiliência do indivíduo.
Os sintomas do Transtorno de Estresse Pós-Traumático incluem, segundo a CID-1015, embotamento emocional, distanciamento de outras pessoas, anedonia, falta de responsividade ao ambiente e evitação de situações ou lugares que recordem o trauma. Além disso, é comum estarem associados sintomas de depressão e ansiedade, e com frequência estao presentes pensamentos de morte e ideação suicida.
Os esforços no sentido de evitar situações que passam a ser consideradas perigosas, fazem com que o sujeito traumatizado modifique diversos aspectos de sua vida. Tais esforços, além de desgastantes, são inúteis, visto que apenas resultarao em isolamento social e, possivelmente, condutas de auto e heteroagressão.17
No contexto do hospital de urgência e emergência raramente é possível estabelecer o diagnóstico de Transtorno de Estresse Pós-Traumático, uma vez que para tanto é requerido que os sintomas sejam observados por um longo período.17 Porém com frequência são percebidas no ambiente hospitalar outras alterações psíquicas, tais como a reação aguda ao estresse, transtornos dissociativos, depressão maior, ansiedade generalizada.
Outro sintoma significativo dessa resposta do psiquismo frente à situação de violência são as lembranças, ou flashbacks, da situação traumática. Tais lembranças frequentemente são descritas como espontâneas, intrusivas e inevitáveis, e podem aparecer, também, na forma de sonhos ou pesadelos.17
Ao analisar essas revivescências, Freud16 aponta que nas neuroses traumáticas há uma fixação no momento do acontecimento traumático, como se este não tivesse, ainda, seu fim, como se fosse uma tarefa inacabada, uma experiência contemporânea. Assim, o sujeito que sofre algum tipo de violência pode apresentar grande dificuldade de localização temporal, sentindo no presente o momento passado, o que o torna incapaz de planejar ou pensar o futuro.
O sofrimento vivenciado pelo sujeito violentado se dá, não apenas pelo intenso sentimento de medo, mas também por sentimentos de vergonha, raiva e culpa, dentre outros. Estes desempenham papel fundamental para a manutenção do adoecimento psíquico, uma vez que se configuram como uma nova barreira ao processo de elaboração. Os sentimentos de vergonha e raiva, por exemplo, podem surgir como resposta à impotência perante a situação de perigo.17 E esse sofrimento em muitos casos pode ser um fator desencadeante para auto agressões e tentativas de suicídio.
Já o sentimento de culpa advém de pensamentos, muitas vezes intrusivos, de que algo poderia ter sido feito para evitar a situação da qual foi vítima, de que é culpado pela violência sofrida e até mesmo pelos sintomas pós-traumáticos desenvolvidos. Esse sujeito, em seu convívio social, pode ter o sentimento de culpa intensificado pela própria relação com o meio que, em uma reação defensiva à insuportável experiência traumatizante, tende a culpabilizar a vítima, acentuando seu sofrimento.17
Compreender as alterações psíquicas experienciadas pelas pessoas vítimas de violência é de fundamental importância para o trabalho de psicólogas(os) e demais profissionais de saúde, para que seja possível questionar a respeito do que se pode fazer pelas tantas vítimas da violência na contemporaneidade.
Atuação da psicologia no hospital de urgência e emergência frente a situações de violência
Segundo Simonnetti18, o Pronto Socorro é um ambiente hospitalar direcionado ao tratamento das emergências médicas, que busca ao mesmo tempo cuidar das funções vitais do paciente e do alívio de sua dor. No entanto, além da dor física, esse paciente é marcado pela dor psíquica e precisa ser assistido nesse sentido. O sujeito que chega em um serviço de urgência e emergência teve sua rotina de vida interrompida e é marcado pelo adoecimento inesperado, pela perda de autonomia, submetido a procedimentos invasivos, se vê fora de seu ciclo social e da sua rotina de vida, marcado por alterações corporais.
Frente a perda de sua identidade, o sujeito pode vivenciar uma experiência de desamparo, desespero e angústia. Isso ocorre quando o paciente deixa sua posição de sujeito passando a objeto de intervenção.18 Assim, o sujeito vive um momento de perda de referencial, que é acompanhado por vivências de isolamento, abandono e rompimento de laços afetivos, profissionais e sociais.19
Rossi et al20 afirmam que a(o) psicóloga(o) dentro do hospital de emergência realizará seu trabalho por meio da urgência subjetiva, buscando minimizar conflitos, angústias, sentimentos de abandono, ansiedades e sintomas depressivos, buscando trabalhar o sofrimento que se tornou insuportável e inominável para esse sujeito e as consequências deste ao psiquismo. Para Simoes21, essa urgência subjetiva, além de envolver uma situação de angústia, caracteriza-se como uma intervenção analítica que busca extrair a subjetividade da vivência inesperada desse adoecimento.
A(o) psicóloga(o) no hospital de urgência e emergência deve observar fatores inerentes ao quadro clínico do paciente e os fatores associados a história de vida deste e seu contexto psicossocial. Conforme Barbosa et al.22 pacientes com vínculos emocionais escassos, têm grandes dificuldades de adaptação à situação emergencial. Por outro lado, indivíduos emocionalmente saudáveis apresentam menor sentimento de desintegração ou desespero diante da vivência da hospitalização. Faz-se necessário que as intervenções psicológicas sejam precoces, que ultrapassem o saber teórico, possibilitando ao paciente a verbalização dos conteúdos emocionais relacionados ao processo de adoecimento e aumentando as expectativas de recuperação psíquica destes.18
As(os) psicólogas(os) nesse contexto atendem indivíduos atingidos por diversas formas de violência - lesão por arma de fogo, lesão por arma branca, agressão corpo a corpo, violência sexual, acidentes por negligência, autoagressão e tentativas de suicídio, por exemplo. No cuidado a esses pacientes é realizado o acolhimento, o acompanhamento durante a internação e o encaminhamento para a rede de atenção à saúde após alta hospitalar.23
O acolhimento se configura como um momento de escuta inicial em que é aberto espaço para externalização de emoções, além de demonstrar ao sujeito que suas demandas serao ouvidas e respeitadas.23 No acompanhamento a esse sujeito é necessário percebê-lo como capaz de superar as consequências psíquicas advindas da situação de violência, incentivar o exercício da autonomia e propiciar espaço para elaboração dessas questoes.24 O encaminhamento consiste em conduzir o sujeito atendido em determinado serviço para acolhimento em outro serviço da rede, de acordo com as atribuições e competências do serviço e as demandas do paciente.23
No âmbito hospitalar, uma das mais importantes intervenções do serviço de psicologia nas situações que envolvem casos de violência está relacionada ao manejo das famílias das vítimas, que diante da ocorrência de um evento trágico com algum de seus membros pode se desorganizar. Segundo Scremin25, a atuação da(o) psicóloga(o) junto às famílias deve promover apoio, segurança, comunicação clara, suporte para reestruturação e organização familiar, bem como oferta de escuta, acolhimento das ansiedades e demais sentimentos emergentes, permitindo assim espaço para elaboração das vivências.
Há casos também em que se identifica que a própria família e contexto familiar, que em tese deveriam atuar como lugar de proteção, configuram-se como lugar de ameaça, promovendo ou mantendo situações de violência, principalmente contra crianças, idosos e mulheres.25 Nesse sentido, é preciso que os profissionais de psicologia se articulem com os demais serviços da rede para encaminhamento adequado para acompanhamento das vítimas e autores de violência, além da notificação dos casos, tanto aos órgaos de saúde, como aos dispositivos previstos por lei para proteção e amparo das vítimas.25,26
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As discussões realizadas apontam para a necessidade de desenvolvimento de políticas públicas e ações capazes de abordar a questao da violência como fenômeno multifatorial, cuja responsabilidade compete a todos os atores sociais. Reflete-se ainda, sobre a necessidade de constante atualização e capacitação dos profissionais de saúde, em especial a(o) psicóloga(o), de modo a contribuir no atendimento, auxiliando a promoção da autonomia dos sujeitos, na articulação em rede e na notificação dos casos de violência que chegam às instituições de saúde.
Dessa forma, reconhecer a violência como problema de saúde pública, implica que os profissionais da área debatam e questionem as expressões desse fenômeno em seu cotidiano de trabalho, utilizando-se desse aporte de conhecimentos em sua prática profissional para uma abordagem dos sujeitos ditos vítimas da violência, em sua integralidade, considerando os aspectos objetivos e subjetivos que os permeiam.
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