RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 33 e-33208 DOI: https://dx.doi.org/10.5935/2238-3182.2022e33208

Voltar ao Sumário

Artigo de Revisão

Febre maculosa: diagnóstico precoce e sua relevância

Spotted fever: early diagnosis and its relevance

Adelina Machado de Carvalho Nogueira; Cristielen Andrade Dantas Colen; Paola Valeska da Silva Cupertino; Josiane da Silva Quetz

Centro Universitário Newton Paiva, Minas Gerais, Brasil

Endereço para correspondência

Adelina Machado de Carvalho Nogueira
E-mail: adelinamcnogue@yahoo.com.br

Recebido em: 23 Julho 2022
Aprovado em: 8 Fevereiro 2023
Data de Publicação: 07 Agosto 2023

Editor Associado Responsável:

Dr. Alexandre Moura
Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, Belo Horizonte/MG, Brasil

Instituição onde o trabalho foi desenvolvido:

Centro Universitário Newton Paiva.

Fontes apoiadoras: Não houve fontes apoiadoras.

Comitê de Ética: Não se aplica.

Registro de Ensaio Clínico: Não se aplica.

Conflito de Interesse: Os autores declaram não haver nenhum tipo de conflitos de interesse.

Resumo

INTRODUÇÃO: A febre maculosa (FM) é uma doença zoonótica negligenciada, de notificação compulsória, com elevadas taxas de mortalidade, visto que o diagnóstico e o tratamento adequados costumam ser tardios. O principal agente etiológico da FM é Rickettsia rickettsii, um dos mais letais quando comparado aos outros de seu gênero. Os vetores desse organismo são as diversas espécies de carrapatos, o que contribui com uma ampla expansão de transmissão geográfica.
OBJETIVO: Este trabalho tem como objetivo analisar os desafios do diagnóstico clínico e laboratorial da FM, abordando aspectos epidemiológicos e descrevendo os sinais e sintomas apresentados por pacientes acometidos pela doença em casos clínicos descritos na literatura científica, com o intuito de salientar a importância de um diagnóstico clínico precoce, bem como explorar alternativas para o diagnóstico laboratorial que poderiam auxiliar na diminuição do prazo para identificação correta dessa zoonose.
MÉTODOS: Foi realizada uma revisão narrativa sobre a FM e seus aspectos clínicos e epidemiológicos, assim como seus métodos de diagnóstico laboratorial, consultando as bases de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e PubMed. Foram selecionados artigos através da delimitação das palavras-chave pelos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS-BIREME) descritos nas palavras-chave. Foram selecionados artigos relevantes, publicados entre 2011 e 2022, escritos nos idiomas espanhol, inglês ou português.
RESULTADOS E DISCUSSÃO: O diagnóstico laboratorial da FM pode ser realizado por Reação de Imunofluorescência Indireta (RIFI), Ensaio Imunoenzimático (ELISA), Imunohistoquímica (IHQ), Reação de Cadeia Polimerase (PCR) ou Cultura com isolamento da bactéria. Exames complementares incluem o hemograma, coagulograma, avaliação de enzimas como desidrogenase lática (LDH), transaminases hepáticas (ALT e AST), creatinoquinase (CK) e enzimas pancreáticas. O exame de procalcitonina (PCT) pode ser útil para selecionar os casos suspeitos, visto que a procalcitonina é um marcador laboratorial importante nas infecções bacterianas sistêmicas e sua elevação pode direcionar o diagnóstico clínico.
CONCLUSÃO: Fatores como atraso no diagnóstico laboratorial ou imprecisão no diagnóstico clínico dessa doença negligenciada resultam em alta letalidade, o que continua sendo um desafio para as instituições de saúde pública. O presente trabalho demonstrou que a RIFI é o teste considerado padrão ouro para o diagnóstico laboratorial, porém ocorrem problemas como as reações cruzadas com outras doenças exantemáticas, o que causa imprecisão nos resultados. Os dados obtidos ressaltam a necessidade de implantação de novas tecnologias para diagnóstico clínico e laboratorial, com o intuito de agilizar o diagnóstico e o tratamento adequados.

Palavras-chave: Febre maculosa; Diagnóstico; Rickettsia rickettsii.

 

INTRODUÇÃO

A febre maculosa (FM) é uma doença zoonótica negligenciada, de notificação compulsória, com elevadas taxas de mortalidade, visto que o diagnóstico e o tratamento adequados costumam ser tardios1,2. O principal agente etiológico da FM é Rickettsia rickettsii, um dos mais letais quando comparado aos outros de seu gênero. Os vetores desse organismo são as diversas espécies de carrapatos, o que contribui com uma ampla expansão de transmissão geográfica2,3. No Brasil, os principais vetores da Rickettsia rickettsii são os carrapatos da espécie Amblyomma cajennense, conhecidos como carrapatos-estrela, uma das espécies mais comuns e significativas quando se trata de doenças que podem ser transmitidas para os seres humanos, normalmente como hospedeiros acidentais. Os carrapatos parasitam equídeos, roedores, capivaras, gambás, coelhos, cães e outros animais domésticos e silvestres1.

O conhecimento escasso sobre a doença tende a levar ao atraso do diagnóstico, resultando em um número de óbitos que pode chegar até 80% dos casos não tratados. No Brasil, é uma doença que tende a ser mais frequente em Santa Catarina, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo1-4.

O diagnóstico clínico pode ser mascarado pelos sintomas inespecíficos e semelhantes a outras doenças exantemáticas. O principal sintoma é o exantema, que nem sempre está presente nos pacientes acometidos pela doença, o que leva a uma complexidade e um atraso no diagnóstico clínico1-4. Caracterizada como uma doença febril aguda, apresenta sintomas inespecíficos, tais como mialgia intensa, febre alta, mal-estar generalizado, náuseas, vômitos, dor abdominal e diarreia, o que pode ocasionar confusão com outras doenças exantemáticas que apresentam sintomatologia semelhante, tais como dengue, leptospirose, malária e meningoencefalite4,5. Em casos mais graves, pode-se perceber manifestações hemorrágicas como sangramento cutâneo, digestivo e pulmonar4.

O diagnóstico laboratorial da FM ocorre por meio de exames específicos (pesquisa direta da riquétsia, pesquisa de material genético por biologia molecular e pesquisa de anticorpos anti-riquétsia) associado a exames inespecíficos complementares (hemograma e enzimas séricas). Atualmente, o exame sorológico de Reação de Imunofluorescência Indireta (RIFI) é o padrão ouro para o diagnóstico das rickettsioses, porém anticorpos IgM são facilmente deflagrados em reação cruzada com outras doenças e anticorpos IgG são detectados somente a partir de 7 a 10 dias após o surgimento de sinais e/ou sintomas, sendo necessário a coleta de uma amostra de soro nos primeiros dias da doença e outra amostra de soro em um período de 14 a 21 dias após a primeira coleta4.

Este trabalho tem como objetivo analisar os desafios do diagnóstico clínico e laboratorial da FM, abordando aspectos epidemiológicos e descrevendo os sinais e sintomas apresentados por pacientes acometidos pela doença em casos clínicos, com o intuito de salientar a importância de um diagnóstico clínico precoce, bem como explorar alternativas para o diagnóstico laboratorial, com a finalidade de diminuir o prazo para identificação correta dessa zoonose.

 

MÉTODOS

O presente estudo é uma revisão narrativa sobre a FM e seus aspectos clínicos e epidemiológicos, assim como seus métodos de diagnóstico laboratorial. Foram utilizadas para consulta as seguintes bases de dados: Scientific Electronic Library Online (SCIELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e PubMed. Foram selecionados artigos através da delimitação das palavras-chave pelos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS-BIREME). As palavras-chave foram: febre maculosa das montanhas rochosas (D012373); diagnóstico (D012698); Rickettsia rickettsii (D012284); Infecções por Rickettsia (D012282) e Rickettsiose do Grupo da Febre Maculosa (D000073605). Os artigos foram selecionados de acordo com o ano, o idioma e a relevância do assunto. Foram selecionados artigos publicados entre 2011 e 2022. Observou-se poucos trabalhos em português, logo, optou-se pela inclusão de artigos em inglês e espanhol. Boletins epidemiológicos foram utilizados a fim de contribuir com aspectos sobre a expansão de informações sobre a doença. Demais critérios de inclusão envolveram pesquisa sobre relatos de casos que ilustraram a alta letalidade da FM, notificação compulsória, áreas de abrangência, pesquisa sobre o agente etiológico e o vetor, pesquisa sobre o diagnóstico clínico e laboratorial, além das possíveis tecnologias para diagnóstico laboratorial precoce. Os critérios de exclusão foram: artigos publicados fora do continente Americano, artigos duplicados, artigos sem acesso livre e artigos fora da faixa temporal escolhida.

Fisiopatologia da FM

A infecção se dá através da introdução da bactéria Rickettsia rickettsii, sob a derme posterior, adesão à superfície endotelial e disseminação da infecção pelas células endoteliais. A bactéria é gram-negativa, com formato bacilar, possui um tamanho aproximado de 0,3 a 0,5µm por 0,8 a 0,2µm e é obrigatoriamente intracelular4,6-7. Por se tratar de um agente infeccioso com tropismo por células endoteliais, a FM pode ser considerada uma vasculite sistêmica, pois está associada a um estado vascular inflamatório disseminado, acionando as células de defesa fagocitárias, que são direcionadas para o foco da infecção, resultando na ativação de mediadores vasoativos pró-coagulatórios e citocinas pró-inflamatórias que aumentam a permeabilidade vascular e outros efeitos que podem culminar em hemorragia, microtrombos e, em muitos casos, evolução rápida para edema generalizado e falência múltipla de órgãos. Ao infectar as células endoteliais, a bactéria induz a ativação de proteínas dos complexos responsáveis pela resposta imune inata, que possui ligação direta com o processo de autofagia, sendo que, paradoxalmente, o início desse processo favorece a replicação da bactéria6.

Transmissão

A Rickettsia rickettsii é encontrada nas glândulas salivares e nos ovários dos artrópodes transmissores de FM. Os principais carrapatos transmissores são os do gênero Amblyomma, da espécie A. sculptum, denominado anteriormente como Amblyomma cajennense. Essa espécie de carrapatos possui ampla distribuição na América. O vetor possui um hospedeiro preferencial, o cavalo, porém nas fases de larva e ninfa, a especificidade parasitária é baixa, o que pode levar à ocorrência de outros hospedeiros/reservatórios, tais como: boi, carneiro, cabra, cão, porco, veado, capivara, cachorro-do-mato, coelho, cutia, quati, tatu e tamanduá. Os vetores são conhecidos popularmente como "carrapato-estrela", "carrapato de cavalo" ou "rodoleiro", são hematófagos obrigatórios e se infectam no momento que sugam animais silvestres. São considerados reservatórios, uma vez que podem transmitir a bactéria em ovos e larvas e/ou transmissão entre gerações vetoriais, de forma a dar continuidade ao ciclo da doença. A transmissão ao hospedeiro se dá pela picada do carrapato infectado, não sendo necessário levar em consideração o tempo de permanência que este ficou aderido na derme. Após a picada, o tempo para a instalação da bactéria nas células endoteliais pode variar de seis a dez horas7-11.

Epidemiologia e aspectos clínicos da FM

O Ministério da Saúde brasileiro atribuiu a febre maculosa como doença infecciosa de notificação compulsória no ano de 2001 e, posteriormente, de notificação compulsória imediata no ano de 201410. É definido como "caso suspeito" de FM todo o paciente que apresentar sinais e sintomas iniciais inespecíficos, tais como: febre elevada aguda de início súbito, cefaleia, mialgia intensa, mal-estar geral, náuseas, vômitos, surgimento de exantema maculopapular entre o segundo e o sexto dia após o início da infecção, manifestações hemorrágicas e/ou paciente que tenha relato de picada de carrapato ou que tenha frequentado áreas consideradas de risco nos últimos 15 dias. Esses são pontos importantes a se levar em consideração durante a anamnese do paciente. O resumo das principais manifestações clínicas está descrito no Quadro 1 a seguir4,8-10.

 

 

O Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) é o sistema oficial destinado à notificação de casos pelo Ministério da Saúde. Nele são colhidas as informações de registros de casos confirmados, suspeitas clínicas e notificações expressas em número de dias. Para a definição de "caso confirmado", são necessários critérios clínicos, incluindo os indivíduos que apresentem os sinais, sintomas, história pregressa que cumpra as definições de "caso suspeito", além da confirmação laboratorial de infecção por Rickettsias em uma das provas diagnósticas de reação de imunofluorescência indireta (RIFI), imunohistoquímica (IHQ), isolamento em cultura do agente etiológico e/ou técnicas de biologia molecular (PCR). Nos casos em que ocorreu óbito sem confirmação clínica/laboratorial, são usados critérios clínico-epidemiológicos investigativos onde são pontuados indivíduos que tenham apresentado sinais e sintomas compatíveis com a doença; frequentado locais de transmissão de FM; apresentado picada de carrapato; que tenham relatado o contato com animais domésticos e silvestres; contato com pessoas que foram confirmadas laboratorialmente pela infecção. Considerando os casos confirmados no Brasil, o predomínio está nas regiões Sul e Sudeste4,10-12.

 

RELATO DE CASO

Para discorrer melhor a respeito do diagnóstico clínico/laboratorial da FM, foi realizada uma análise preliminar de relatos de casos em diferentes locais do continente Americano, sendo notórias a gravidade e a letalidade da doença, que muitas vezes é confundida com outras condições devido aos sintomas inespecíficos apresentados pelos pacientes acometidos pela FM, o que pode ser constatado na Tabela 113-19.

 

 

Em uma região endêmica, onde o paciente apresenta picadas do carrapato, erupção cutânea, febre e cefaleia, em época climática com referenciada transmissão (sendo, no Sudeste brasileiro, a época de menores índices pluviométricos), o diagnóstico clínico é facilitado. Contudo, em pacientes que apresentam a doença em fase inicial, sem histórico prévio de contato com carrapatos, não apresentando erupção cutânea, pode ocorrer confusão com outras doenças virais. Por ser uma doença que possui sintomas inespecíficos, torna-se difícil fechar o diagnóstico, podendo o paciente ser sintomático com manifestações clínicas compatíveis com outras doenças, ou com características inconsistentes, e ainda pacientes que se recuperam sem tratamento, com infecções subclínicas ou até mesmo podem ser pacientes assintomáticos. Em todos esses exemplos, pode ocorrer o diagnóstico incorreto1,4,7,8,11.

Devido à dificuldade dos diagnósticos clínico e laboratorial, outro fator agravante - que pode ser observado na Tabela 2 - diz respeito ao tratamento incorreto. O atraso da suspeita clínica impacta diretamente no diagnóstico laboratorial. Nos relatos de caso, os testes sorológicos e moleculares, em grande parte, só tiveram resultados quando os pacientes já haviam falecido ou estavam em estado avançado da doença, o que levou ao atraso do tratamento correto. Tal atraso no início da antibioticoterapia adequada tem relação com a dificuldade/atrasos para a conclusão dos resultados dos exames laboratoriais, o que, na grande parte dos casos, pode levar ao óbito devido ao atraso no tratamento ou não administração de doxiciclina nos primeiros dias de infecção9,14-19.

 

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

1. Doença com desafios nos diagnósticos clínico e laboratorial

Atualmente, o diagnóstico laboratorial da FM é majoritariamente realizado por Reação de Imunofluorescência Indireta (RIFI); mas podem também ser utilizados Ensaio Imunoenzimático (ELISA), Imunohistoquímica (IHQ), Reação de Cadeia Polimerase (PCR) ou Cultura com isolamento da bactéria. Exames complementares à RIFI, que auxiliam na definição de certos parâmetros clínicos dos pacientes acometidos, incluem o hemograma, coagulograma, avaliação de enzimas como desidrogenase lática (LDH), transaminases hepáticas (AST, ALT), creatinoquinase (CK) e enzimas pancreáticas20.

O diagnóstico através de RIFI é considerado o padrão ouro para diagnóstico das rickettsioses, porém apresenta algumas características limitantes, a saber: imunoglobulinas M (IgM) são facilmente deflagrados em reação cruzada com outras doenças, o que pode levar a resultados falsamente positivos, com baixa especificidade, devido às reações com lipopolissacarídeos bacterianos não específicos. Já os anticorpos do tipo IgG são detectados a partir do 7º dia da infecção, sendo necessárias coletas pareadas de soro: uma inicial nos primeiros dias da doença e outra amostra entre o 14° e o 21° dia após a primeira coleta3. Os ensaios sorológicos de RIFI apresentam baixa especificidade para a detecção de anticorpos anti-espécies de Rickettsia rickettsii, devido ao compartilhamento de proteínas de superfície semelhantes com outras espécies, portanto podem ser detectados anticorpos que reagem com antígenos diversos, podendo ocorrer, dessa forma, resultados falso-positivos20.

Estudos de rastreabilidade, para detectar anticorpos IgG anti-Rickettsia rickettsii em casos confirmados, demonstraram que apesar de apresentarem soropositividade pelo método de RIFI, com titulação igual ou superior a 1:64 no diagnóstico laboratorial da FM, aplicado em diferentes perfis populacionais, o teste pode não ser tão conclusivo. Dentre eles foram avaliados casos notificados no período de 2010 a 2015, doadores de sangue no período de 2016, casos de infecção aguda por Dengue e Chikungunya, todos entre os indivíduos com soropositividade para anticorpos IgG anti-Rickettsia rickettsii, sendo que não houve evidências significativas para a confirmação da doença. Essa é uma limitação importante dos testes sorológicos20-22 (Tabela 3).

 

 

Sobre os demais métodos laboratoriais com possibilidade de serem empregados no diagnóstico laboratorial de FM, pode-se dizer que ELISA é também um método sorológico que apresenta desafios similares apresentados pelos ensaios por RIFI, relacionados à baixa especificidade para a detecção de anticorpos anti-espécies de Rickettsia rickettsii, além da possibilidade de reações cruzadas com outros patógenos, visto que também se trata de um método sorológico4,20-23.

IHQ, por sua vez, apresenta um fator complicador ainda mais importante, pois necessita de amostras de tecidos obtidas em biópsia de lesões de pele, necrópsia ou fragmentos de órgãos ou tecidos, sendo, na maior parte dos casos, inviável e desnecessária a execução de um procedimento invasivo e não completamente preciso quanto à definição da localização para a obtenção das amostras. Na IHQ se faz pesquisa por antígenos de Rickettsia rickettsii nas amostras (que no caso são de difícil obtenção e de utilidade questionável)4,20-23.

As técnicas moleculares, como PCR, utilizam como material de partida amostras de sangue total, coágulos formados após centrifugação do sangue coletado, tecidos de biópsia ou necrópsia. Podem ser muito úteis na caracterização dos grupos de riquétsias, principalmente no contexto de laboratórios de pesquisa, porém, para diagnóstico na rotina, apresentam dificuldades importantes como a padronização dos iniciadores (primers) e a obtenção de controles positivos adequados4,20-23.

A cultura com isolamento da bactéria, método que seria, presumivelmente, ideal para o diagnóstico laboratorial - pois permitiria o isolamento do agente etiológico em amostras de sangue coagulado ou de fragmentos de tecidos ou órgãos - apresenta o efeito limitador do uso empírico e/ou precoce da antibioticoterapia, que pode inibir o crescimento bacteriano. Ainda, em muitos casos, os requisitos de biossegurança para esse cultivo seriam um empecilho em muitas regiões territoriais que não dispõem de recursos financeiros e/ou estrutura laboratorial adequados, nem mesmo o treinamento profissional suficiente para a interpretação dos resultados4,20-23.

De forma geral, portanto, os ensaios confirmatórios em ambientes tropicais provavelmente estarão concentrados em Centros de Referência de Doenças Zoonóticas. Dito isso, exames confirmatórios como sorologia ou amplificação de ácidos nucleicos podem demorar semanas para retornar e, na maioria das vezes, não ajudarão no direcionamento do tratamento agudo. Portanto, os médicos devem usar pistas clínicas e epidemiológicas para realizar o diagnóstico presuntivo e iniciar o tratamento empírico com antibióticos, enquanto aguardam os resultados dos testes confirmatórios24.

Outro agravante para se obter o diagnóstico laboratorial preciso é o tratamento precoce, que pode mascarar a doença, diminuindo a produção de anticorpos detectáveis pela RIFI, ou mesmo evitando o aparecimento de erupções cutâneas e/ou sinais típicos da FM. Se por um lado o tratamento empírico pode reduzir a gravidade e duração da doença, por outro pode ser motivo de falha terapêutica e suas consequências19,20,24.

2. Exames laboratoriais de importância no diagnóstico da FM

A implantação de novos métodos ou tecnologias a serem empregadas, concomitantemente aos métodos sorológicos de diagnóstico da FM, podem ocasionar melhora na rapidez e na precisão do diagnóstico laboratorial, visto que a FM é uma doença de notificação compulsória, de alta letalidade e diagnóstico geralmente tardio. Em um estudo molecular que utilizou a técnica de imunofluorescência direta, com o objetivo de desvendar uma via de sinalização específica, foi possível revelar a presença Rickettsia rickettsii a partir do lisado de células endoteliais infectadas, comprovando que, sabendo-se o local específico para a coleta de amostras representativas, seria possível a identificação antigênica6. O método direto, porém, ainda é restrito à pesquisa molecular e, se transposto da bancada para o leito hospitalar, a principal dificuldade seria a obtenção de material biológico representativo, visto que o patógeno é intracelular obrigatório. Formas precisas de se obter a área mais representativa com a possível presença das riquétsias precisam ser averiguadas.

Outro achado laboratorial promissor, com maior chance de utilização a curto prazo, porém ainda pouco explorado, compreende o exame de procalcitonina (PCT). Esse marcador pode ser útil para discriminar melhor os casos suspeitos: PCT vem sendo estudado como um marcador sorológico de infecção sistêmica e sepse. PCT é um peptídeo com 116 aminoácidos que pode estar elevado em muitas ordens de magnitude na inflamação sistêmica acompanhada de sepse. Nas infecções bacterianas sistêmicas, a elevação de PCT descartaria infecções virais. Níveis de PCT acima de 1ng/mL indicam infecções bacterianas sistêmicas ou sepse15,19,23.

 

CONCLUSÃO

Fatores como atraso no diagnóstico laboratorial e a imprecisão no diagnóstico clínico da FM, uma doença negligenciada, resultam em alta letalidade o que continua sendo um desafio para as instituições de saúde pública. O presente trabalho demonstrou que a RIFI, mesmo sendo o padrão ouro para o diagnóstico laboratorial, é dependente da geração de anticorpos pelo hospedeiro, o que dificulta a celeridade do processo de diagnóstico, além da possibilidade de reações cruzadas com outras doenças exantemáticas, causando imprecisão nos resultados. As manifestações clínicas são inespecíficas, podendo ser facilmente confundidas com algumas arboviroses, dificultando ainda mais o diagnóstico. Outras situações englobam o fato de ser uma doença endêmica, porém não necessariamente são relatados contato com o vetor, o que resulta no tratamento de início tardio. Os dados obtidos ressaltam a necessidade de estudos de novas tecnologias para diagnóstico, preferencialmente para a detecção direta do patógeno, além de avaliação PCT, com a finalidade de ajudar no diagnóstico mais precoce da doença e, por conseguinte, na instituição do tratamento adequado, visto que a instituição tardia de antibioticoterapia adequada está associada com a piora do prognóstico do paciente com FM.

 

AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de agradecer ao Otto Hanriot por sua ajuda na tradução deste artigo.

 

CONTRIBUIÇÃO DOS AUTORES

As contribuições dos autores estão estruturadas de acordo com a taxonomia (CRediT) descrita abaixo: Conceptualização, Investigação, Metodologia, Visualização & Escrita - Análise e Edição: Adelina Machado de Carvalho Nogueira, Cristielen Andrade Dantas Colen, Paola Valeska da Silva Cupertino; Administração do Projeto, Supervisão & Escrita - Rascunho Original: Josiane da Silva Quetz.

 

COPYRIGHT

Copyright© 2021 Carvalho et al. Este é um artigo em acesso aberto distribuído nos termos da Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Licença Internacional que permite o uso irrestrito, a distribuição e reprodução em qualquer meio desde que o artigo original seja devidamente citado.

 

REFERÊNCIAS

1. Araújo RP, Navarro MBMA, Cardoso TAO. Febre maculosa no Brasil: estudo da mortalidade para a vigilância epidemiológica. Cad Saúde Colet. 2015;24:339-46.

2. Oliveira RC, Fernandes J, Gonçalves-Oliveira J, Guterres A, Lemos ERS. Out of the shadows, into the spotlight: Invisible zoonotic diseases in Brazil. Lancet Regional Health - Americas. 2022;8:100202.

3. Blanton LS. The rickettsioses: a practical update. Infect Dis Clin North Am. 2019 Mar;33(1):213-29.

4. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Guia de Vigilância em Saúde. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019.

5. Amâncio FF, Amorim VD, Chamone TL, Brito MG, Calic SB, Leite AC, et al. Epidemiological characteristics of Brazilian spotted fever in Minas Gerais State, Brazil, 2000-2008. Cad Saúde Pública. 2011;27:1969-76.

6. Sahni A, Narra HP, Sahni SK. Activation of mechanistic target of rapamycin (mTOR) in human endothelial cells infected with pathogenic spotted fever group Rickettsiae. Int J Mol Sci. 2020;21(19):71-79.

7. Oliveira HMR, Paixão LMMM, Toledo PMP. Boletim da Vigilância em Saúde - Febre Maculosa Brasileira (FMB). Belo Horizonte (MG): Secretaria Municipal de Saúde; 2019.

8. Durães LS, Bitencourth K, Ramalho FR, Nogueira MC, Nunes EC, Gazêta GS. Biodiversity of Potential Vectors of Rickettsiae and Epidemiological Mosaic of Spotted Fever in the State of Paraná, Brazil. Front Public Health. 2021;9:161.

9. Fraga KS, Silva ACMP, Sant'anna FS, Soares NK. Choque séptico por febre maculosa: relato de caso. Revista de Saúde. 2021;12(1):27-9.

10. Ministério da Saúde (BR). Gabinete do Ministro. Portaria n. 1.271, de 6 de junho de 2014. Define a lista nacional de notificação compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde e privados em todo território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2014.

11. Muchon JD, Forte GV, Siqueira LD, Arruda JT, Paludo RLR. Aspectos epidemiológicos, diagnóstico e tratamento para febre maculosa brasileira. Res Soc Dev. 2021;10(16):1-16.

12. Oliveira SV, Angerami RN. Timeliness in the notification of spotted fever in Brazil: evaluating compulsory reporting strategies and digital disease detection. Int J Infect Dis. 2018;72:16-8.

13. Bradshaw MJ, Byrge KC, Ivey KS, Pruthi S, Bloch KC. Meningoencephalitis due to Spotted Fever Rickettsioses, including Rocky Mountain Spotted Fever. Clin Infect Dis. 2020;71(1):188-95.

14. Gil-Lora EJ, Patiño-Gallego JJ, Acevedo-Gutiérrez LY, Montoya-Ruiz C, Rodaz-González JD. Infección y enfermedad por Rickettsia spp. del grupo de las fiebres manchadas en pacientes febriles del Urabá antioqueño, Colombia. Latreia. 2019;32(3):167-76.

15. La Mora JDD, Licona-Enríquez JD, Leyva-Gastélum M, La Mora DDD, Rascón-Alcantar A, Álvarez-Hernández G. A fatal case series of Rocky Mountain spotted fever in Sonora, México. Biomédica. 2018;38(1):69-76.

16. Armitano RI, Guillemi E, Escalada V, Govedic F, Lopez JL, Farber M, et al. Fiebre manchada en Argentina. Descripción dos casos clínicos. Rev Argent Microbiot. 2019:51(4):339-44.

17. Drexler NA, Yaglom H, Casal M, Fierro M, Kriner P, Murphy B, et al. Fatal rocky mountain spotted fever along the United States-Mexico Border, 2013-2016. Emer Infect Dis. 2017;23(10):1621-6.

18. Sánchez AP, Verduguez MH, Asis E, Barrojo G, Ortega M, Fuente R. Fiebre manchada de evolución fatal en la provincia de Salta. Medicina (Buenos Aires). 2018;78(5):356-9.

19. Bolaños P, Chacón M. Respecto a un caso de Rickettsia rickettsii en Costa Rica. Med Leg Costa Rica. 2019;36(1):14-21.

20. Straily A, Stuck S, Singleton J, Brennan S, Marcum S, Condit M, et al. Antibody titers reactive with Rickettsia rickettsii in blood donors and implications for Surveillance of Spotted Fever Rickettsiosis in the United States. J Infect Dis. 2020;221(8):1371-8.

21. McClain MT, Sexton DJ. Surveillance for Spotted Fever Group Rickettsial Infections: Problems, Pitfalls, and Potential Solutions. J Infect Dis. 2020;221(8):1238-40.

22. Farovitch L, Sippy R, Beltrán-Ayala E, Endy TP, Stewart-Ibarra AM, Leydet BF. Detection of antibodies to Spotted Fever Group Rickettsiae and Arboviral Coinfections in Febrile Individuals in 2014-2015 in Southern Coastal Ecuador. Am J Trop Med Hyg. 2019;101(5):1087-90.

23. Assink-de Jong E, Lange DW, Oers JA, Nijsten MW, Twisk JW, Beishuizen. Stop Antibiotics on guidance of Procalcitonin Study (SAPS): a randomised prospective multicenter investigator-initiated trial to analyse whether daily measurements of procalcitonin versus a standard-of-care approach can safely shorten antibiotic duration in intensive care unit patients - calculated sample size: 1816 patients. BMC Infectious Diseases. 2013;13(178):1-7.

24. Lowery K, Rosen T. Probable African tick bite fever in the United States. Yale J Biol Med. 2020;93(1):49-54.