RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 18. 2

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Relato de Caso

Diagnóstico e tratamento da Fasciíte Necrotizante: relato de dois casos

Necrotizing Fasciitis diagnosis and treatment: two cases report

Thiago Horta Soares1; Jefferson Torres Moreira Penna2; Letícia Goursand Penna3; Juliano Antunes Machado4; Ivo Ferreira Andrade5; Regina Capanema de Almeida6; Laura Silviano Brandão Vianna7

1. Especialista em Clínica Médica Hospital Mater Dei
2. Coordenador da Equipe e do Curso de Especialização em Clínica Médica do Hospital Mater Dei, Especialista em Clínica Médica
3. Residente da Clínica Médica do HC da UFMG
4. Médico Clínico da Equipe de Clínica Médica do Hospital Mater Dei
5. Cirurgião Plástico da Equipe de Cirurgia Plástica do Hospital Mater Dei, Membro Especialista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica
6. Coordenadora de Estágios e Produção Científica da Equipe de Clínica Médica do Hospital Mater Dei, Doutora em Medicina Tropical pela Universidade Federal de Minas Gerais
7. Médica Patologista Clínica

Endereço para correspondência

Thiago Horta Soares
Hospital Mater Dei
Rua Gonçalves Dias 2700
Belo Horizonte - MG CEP 30140-093
e-mail: thiagohorta@terra.com.br

Hospital Mater Dei, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil

Resumo

São relatados dois casos de pacientes adultos, residentes em Belo Horizonte, com quadro de infecção grave, caracterizada por necrose extensa e rapidamente progressiva do tecido celular subcutâneo e da fáscia muscular, associada à gangrena de pele. Submetidos a desbridamento cirúrgico amplo, combinado à antibioticoterapia, apresentaram evolução favorável. Esta descrição alerta para a necessidade do diagnóstico clínico precoce e abordagem cirúrgica imediata, essenciais ao tratamento desta grave infecção.

Palavras-chave: Fasciíte Necrosante/diagnóstico; Fasciíte Necrosante/cirurgia.

 

INTRODUÇÃO

A Fasciíte Necrotizante (FN) é uma infecção rara e grave, caracterizada por necrose extensa e rapidamente progressiva. Ela acomete o tecido celular subcutâneo e a fáscia muscular.1,2 Foi descrita em 1871 pelo cirurgião militar Dr. Joseph Jones, entretanto, o termo FN somente foi utilizado em 1952, por Wilson Ben, para descrever a principal característica desta infecção, que é a necrose do tecido celular subcutâneo com preservação relativa do músculo subjacente.1,2,3,4

Não existem dados confiáveis quanto a sua real incidência. De acordo com estimativas recentes do Centers for Disease Control (CDC), entre 500 e 1500 casos de FN são diagnosticados anualmente nos EUA.3

A mortalidade relatada varia de 13% a 76%, sendo influenciada pela precocidade do diagnóstico, abordagem cirúrgica e doenças associadas.1,7

Na maior parte dos casos, a extensão da lesão ocorre a partir de pequenos traumas, picadas de insetos ou incisões cirúrgicas. Contudo, em 20% das situações, nenhum trauma prévio pode ser identificado.2

O processo inflamatório necrotizante agudo afeta, a princípio, o tecido subcutâneo profundo e a fáscia. Os tecidos mais superficiais e a pele são acometidos secundariamente, em decorrência da lesão vascular, trombose e isquemia - resultantes da ação das citocinas pró-inflamatórias, proteinases e endotelinas. A destruição de nervos subcutâneos ocorre em fases avançadas.5

Estudos bacteriológicos detalhados levaram Giuliano Et al.6 a classificar a FN em Tipo I, que tem flora polimicrobiana representada por bactérias anaeróbias, anaeróbias facultativas e enterobactérias e Tipo II, monomicrobiana e causada pelo Streptococcus pyogenes ou, mais raramente, pelo Staphylococcus sp.

O diagnóstico é eminentemente clínico e corroborado pelos achados cirúrgicos, que incluem a pouca aderência do tecido subcutâneo, observada à manipulação cirúrgica, ausência de sangramento e liquefação da gordura subcutânea.

Dentre as alterações laboratoriais, observa-se: leucocitose com desvio para a esquerda, anemia, Velocidade de Hemossedimentação (VHS), Proteína C Reativa (PCR) elevadas, hiperglicemia, hipocalcemia e Creatinofosfoquinase (CPK) aumentada, o que sugere extensão da infecção para os músculos.

Hemoculturas e cultura de material colhido, no procedimento cirúrgico, poderão auxiliar durante a identificação dos microorganismos envolvidos e a sensibilidade aos antibióticos.

Os métodos diagnósticos por imagem podem fornecer informações adicionais, úteis ao diagnóstico. Contudo, na maioria das vezes, os achados são pouco específicos e não são imprescindíveis para a abordagem cirúrgica.2-4,9

A biópsia da fáscia é considerada padrão-ouro para o diagnóstico e deverá ser realizada em todos pacientes durante o desbridamento, mesmo naqueles em que seu aspecto macroscópico for normal.

Estabelecido o diagnóstico, o tratamento deve ser instituído imediatamente e consiste em reposição volêmica; desbridamento cirúrgico amplo, com retirada de todo material necrótico, incluindo a fáscia; e a utilização de antibióticos de amplo espectro.

A Oxigenoterapia Hiperbárica (OH) e o uso de imunoglobulinas são adjuvantes e permanecem controversos, ao mesmo tempo, novos estudos são necessários antes que possam ser recomendados.2

 

RELATO DOS CASOS

Caso 1

E.M.B.F., 49 anos, sexo feminino, sofreu traumatismo leve no dorso do pé direito. Dois dias depois, observou hiperemia e dor no local. Ao procurar assistência médica, foi medicada com cefalexina e nimesulida. No dia seguinte, houve piora do quadro da paciente, com extensão do processo ao terço inferior da perna direita (Figura 1), associado à febre não termometrada, calafrios e aparecimento de lesões vesiculares com áreas de necrose.

 


Figura 1

 

O estudo ultra-sonográfico de partes moles revelou edema intenso adjacente à fáscia, sem coleções ou hiperrefringência.

Os exames de sangue mostraram: hemácias 3960000/mm3, hemoglobina 12,5g%, leucócitos 11300/mm3 (600 bastonetes, 100 monócitos, 1200 linfócitos), glicemia 109 mg/dL, Transaminase Oxalacética (TGO) 34U/L, Transaminase Pirúvica (TGP) 24 U/L, PCR de 259 mg/dL, uréia 43,7 mg/dL, creatinina 1,0 mg/dL. Com base nos dados clínicos e laboratoriais, fez-se a hipótese diagnóstica de fasciíte necrotizante.

A partir deste momento, foi iniciado o tratamento com clindamicina (1800 mg/dia) e também com gentamicina (180mg/dia). Realizou-se, também, um amplo desbridamento cirúrgico, com retirada de tecido necrótico, fasciotomia na face lateral do pé direito e terço inferior da perna D (Figura 2).

 


Figura 2

 

Não houve crescimento bacteriano em cultura e o exame anatomopatológico confirmou processo inflamatório agudo, supurativo com necrose e hemorragia acometendo a fáscia. Novas intervenções foram realizadas até eliminação do processo necrótico e, ainda, dez sessões de oxigenioterapia hiperbárica.

Após quinze dias, foram efetuados a correção cirúrgica da úlcera, com retalho cutâneo e o enxerto de pele total na lesão do pé direito (Figura 3).

 


Figura 3

 

Caso 2

HUR, 55 anos, sexo masculino, foi admitido no hospital com quadro de dor intensa, sinais flogísticos no pé direito, febre e calafrios. O paciente era portador de Diabetes mellitus, em uso irregular dos seguintes medicamentos: metformin e repaglimida. Três dias antes, foi observado hiperemia e dor local. Neste momento, o paciente fez precusou utilizar analgésicos e obteve alívio parcial da dor.

Observou, também, extensão da lesão para terço distal da perna direita e o aparecimento de lesão bolhosa, de conteúdo hemorrágico, entre o quarto e o quinto dedos.

Os exames laboratoriais identificaram: leucócitos 13100/mm3 (10700 segmentados, 1200 monócitos, 1200 linfócitos), glicemia 176mg/dL, PCR de 294 mg/dL, uréia 39,1 mg/dL e creatinina 0,9 mg/dL.

Com base nos dados clínicos e laboratoriais, realizou-se a hipótese diagnóstica de fasciíte necrotizante.

Assim, foi iniciado o tratamento com ciprofloxacin (800 mg/dia) e com clindamicina (1800 mg/ dia) e realizado, inclusive, amplo desbridamento cirúrgico, com retirada de tecido necrótico e fasciotomia (Figura 4).

 


Figura 4

 

A cultura isolou Staphylococcus aureus e o exame anatomopatológico confirmou o diagnóstico de FN.

Novas intervenções cirúrgicas foram necessárias nesta etapa (Fig.ura 5) e o paciente submeteu-se, ainda, a mais dez sessões de oxigenioterapia hiperbárica.

Apresentou evolução favorável, recebendo alta após cirurgia plástica reparadora.

 


Figura 5

 

DISCUSSÃO

Em ambos os casos, o diagnóstico diferencial envolveu as infecções de pele e subcutâneo rapidamente progressivas, que foram acompanhadas de manifestações sistêmicas. Dentre elas, podemos citar a celulite, que apresenta uma evolução mais lenta. Além disso, a linfangite e linfadenite satélite geralmente estão presentes e não foram observadas nos casos descritos.

A dor intensa, desproporcional aos sinais flogísticos presentes, e o aparecimento rápido de lesões bolhosas, com área de necrose, sugeriram o envolvimento de tecidos mais profundos e da fáscia, reforçando a hipótese de fasciíte necrotizante.

A história de trauma recente, relatada por um dos pacientes, ocorre na maioria dos casos, embora possa ser banal ou até mesmo imperceptível.1,2

Apesar de a FN ter sido descrita em indivíduos previamente hígidos, a maioria dos pacientes apresenta condição prévia, que os torna susceptíveis à infecção. Dentre elas, podemos citar o Diabetes mellitus, presente em um dos pacientes, além do uso de drogas injetáveis, alcoolismo, corticoterapia e queimaduras extensas.1

Os exames laboratoriais solicitados mostraram leucocitose discreta e PCR elevada, acima dos valores encontrados nos casos de celulite.6

Estudo radiológico pode ser realizado e identifica ar nas partes moles, envolvidas em até 57% dos casos. Sua ausência não exclui o diagnóstico e seu aparecimento, em geral, é tardio.3,4

A ultra-sonografia tem pouca utilidade prática no diagnóstico precoce da FN. Entretanto, pode apontar coleções e orientar punção nos casos complicados3. Embora de valor limitado, o estudo ultra-sonográfico foi solicitado para um dos pacientes e revelou edema intenso adjacente à fáscia, sem coleções ou hiperrefringência, contribuindo para o diagnóstico.

Segundo alguns autores,3,5,9,10 a Tomografia Computadorizada (TC) e a Ressonância Nuclear Magnética (RNM) podem ser úteis, quando existe dúvida quanto ao diagnóstico.

A TC fornece informações adicionais, como espessamento assimétrico da fáscia e alterações da gordura subcutânea, assim como a presença de gás e abscessos. Já a RNM, é considerada superior aos demais métodos de imagem. Ela apresenta sensibilidade elevada e permite delimitar a área de necrose da fáscia e programar o procedimento cirúrgico. A ausência de alterações na fáscia profunda, praticamente, exclui o diagnóstico9. Vale ressaltar que a condição crítica do paciente, freqüentemente, impossibilita o transporte para realização do exame, limitando sua utilização.

A cultura do material necrótico evidenciou Staphylococcus aureus em um dos casos, sendo que, no outro, não foi isolada bactéria, pois, quando avaliado, diagnosticado e encaminhado para a abordagem cirúrgica, já se encontrava em uso de antibiótico.

Apesar de didática, a classificação da FN, em tipo I e tipo II, apresenta pouca utilidade prática e não deve ser decisiva na escolha dos antimicrobianos.1,2,3 A forma polimicrobiana é responsável por 80% dos casos, o que justifica a antibioticoterapia inicial empírica, de amplo espectro, formada pela associação de clindamicina, com aminoglicosídeo ou ciprofloxacin, empregada nos casos relatados. Recentemente, a Sociedade Americana de Doenças Infecciosas indicou a associação de ampicilina-sulbactam, clindamicina e ciprofloxacin como esquema de escolha para infecções comunitárias2. Nos casos de infecção hospitalar, é indicada a associação de carbapenêmico a anaerobicida, de acordo com o perfil de sensibilidade das bactérias mais prevalentes na instituição.2

O exame anatomopatológico confirmou a hipótese de Fasciíte Necrotizante, como geralmente ocorre, novas intervenções cirúrgicas fizeram-se necessárias, até que o processo necrótico fosse eliminado. Convém salientar que as amputações podem ser necessárias nos casos de FN, acometendo extremidades.

A oxigenioterapia hiperbárica foi empregada nos dois pacientes, embora sua indicação seja controversa. O substrato fisiopatológico, para sua utilização, consiste na manutenção de níveis de oxigênio necessários para promover o metabolismo, defesa e cicatrização tecidual. Entretanto, novos estudos são necessários para definir seu verdadeiro papel no tratamento.8

O uso de imunoglobulina venosa, em pacientes com Fasciíte Necrotizante monomicrobiana, causada pelo Streptococcus pyogenes, é defendido por alguns autores.2

Entretanto, a quantidade de anticorpos neutralizantes nos diferentes lotes de imunoglobulina é variável, limitando sua eficácia.

Estes casos nos levam a refletir sobre esta infecção rara, verdadeira emergência médica, cuja evolução favorável depende de alto grau de suspeição clínica associado ao tratamento cirúrgico adequado.

 

REFERÊNCIAS

1. Swartz MN. Cellulitis and subcutaneous tissue infectious. In:Mandell GL, Bennett JE, Dolin R. Principles and practice of infectious diseases. New York: Churchill Livingstone; 2005. p.1172-94.

2. Stevens DL, Bisno AL, Chambers HF, Everett ED, Delinger P, Goldestein EJC et al. Pratice guidelines for the diagnosis and management of skin and soft-tissue infections. Clin Infec Dis. 2005;41:1373-406.

3. Kuncir EJ, Tillou A, Hill CRS, Petrone P, Kimbrell B, Asensio J. Necrotizing soft-tissue infections. Emerg Med Clin N Am. 2003;21:1075-87.

4. Hasham S, Matteucci P, Stanley PR, Hart NB. Necrotising fasciitis. BMJ. 2005;330:830-3.

5. Schneider JI. Rapid infectious killers. Emerg Med Clin N Am. 2004;22:1099-1115.

6. Neto GPB. Fasciíte necrotizante. In: Tavares W, Marinho LAC. Rotinas de diagnóstico e tratamento das doenças infecciosas e parasitárias. São Paulo: Atheneu; 2005. p. 421-6.

7. Bisno AL, Stevenes DL. Streptococcal infection of skin and soft tissues. N Engl J Med. 1996;334:240-45.

8. Jallali N, Withey S, Butler PE. Hyperbaric oxygen as adjuvant therapy in the management of necrotizing fasciitis. Am J Surg. 2005;189:462-6.

9. Schmid MR, Kossmann T, Duewell S. Differentiation of necrotizing fasciitis and cellulites using MR imaging. Am J Roentgenol. 1998;170:615-20.

10. Wysoki MG, Santora TA, Friedman AC. Necrotizing fasciitis: CT characteristics. Radiology. 1997 jun; 203(3):859-63.