RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 18. 1

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Atualização Terapêutica

Transferência e iatrogenia na relação médico-paciente

Transference and iatrogeny in the relationship doctor-patient

Eder Schmidt1; Gustavo Ferreira da Mata2

1. Professor Adjunto da Disciplina de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da UFJF
2. Médico

Endereço para correspondência

Eder Schmidt
Avenida Rio Branco, 3699/202 Alto dos Passos
Juiz de Fora - MG 36021-630
ederschm@medicina.ufjf.br phguto@yahoo.com.br

Universidade Federal de Juiz de Fora
Faculdade de Medicina

Resumo

Todo indivíduo que procura cuidados médicos tem a expectativa de que, paralelo ao cuidado dedicado ao corpo, o médico restaure também a noção de integridade do Eu - que se apóia na integridade do corpo. Todo processo mórbido conduz o paciente à regredir às expectativas infantis de cuidado, no modelo vivido na infância e que será presentificado na dimensão transferencial própria da relação médico-paciente. Sendo a transferência um elemento de absoluta relevância na efetividade de qualquer tratamento, ela possui, intrinsecamente, potencial iatrogênico que poderá levá-la a contribuir para o fracasso do tratamento e para o agravamento ou a persistência de um processo mórbido.

Palavras-chave: Doença Iatrogênica; Transferência (Psicologia); Relações Médico-Paciente.

 

Em seus "Estudos Sobre a Histeria"1, Sigmund Freud apresentava algo como um corpo simbólico que, diferentemente do corpo anatômico com que lidava a Medicina até entao, fazia referência às fantasias inconscientes que se representam e se apóiam neste último. Sua proposta naqueles textos iniciais era demonstrar que, para a Psicanálise, as leis que regem a percepção do corpo eram totalmente distintas daquelas até entao reconhecidas pelo saber médico. A doença histérica se instalaria em um corpo imaginário, alcançado apenas por intermédio do discurso do paciente e, portanto, fora da observação por meio do olhar clínico.1

A partir da noção de um corpo abstrato para além do anatômico, percebeu-se que o padecimento deste vai desencadear reações afetivas individualizadas. Indubitavelmente, a queixa de um paciente e seu posicionamento frente à doença serao traduções particulares de mobilizações inconscientes nem sempre correspondentes ao positivamente observável ou partilhável. Cada doença representa, entao, uma vivência individual na qual mesmo as reações entendidas como seus componentes comuns serao matizadas pela dinâmica interna da pessoa que adoece. A rigor, cada indivíduo traz em si uma história inconsciente de cuidados ao corpo e de vínculos primitivos que ele estabeleceu por meio do corpo.

Quanto às circunstâncias em que esta história se escreve, ela parte da vulnerabilidade, característica do bebê humano em seu longo período de dependência vital em relação a um outro que desempenhe a função de cuidar. Cuidar corresponde, inicialmente, a dotar de sentido as experiências corporais do bebê em sua vulnerabilidade, atendendo-o, ao mesmo tempo em que se formam imagens afetivas do vínculo entre ele e sua mae ou aquele que exerce o cuidado. Portanto, os primeiros registros afetivos surgem das sensações corporais, inaugurando uma ponte de mão-dupla entre o somático e o psíquico.2

A princípio, o cuidado materno pretende uma adaptação completa às necessidades do bebê. Pouco a pouco, no entanto, esta adaptação materna vai diminuindo, à medida que aumenta no bebê sua capacidade de utilizar os mais diversos expedientes que o permitam, em uma crescente autonomia, tolerar tensões desencadeadas pelos limites na função da mae.2 São esses limites que levam à diferenciação entre mae e bebê e, enquanto diminui a ligação corporal entre ela e seu filho, a mae abre espaço para que, em sua ausência, construam-se representações psíquicas da ligação entre os dois.

Inicialmente, a percepção da criança em sua relação com a mae atribui a esta um caráter onipotente frente a todos os males. A gradativa constatação dos limites naturais do cuidado materno desfaz pouco a pouco esta ilusão, ao mesmo tempo em que produz na criança a noção crescente de que ela mesma terá que fazer frente às suas conveniências, contornando sua vulnerabilidade. Para isso, adotará como padrao o modelo de atendimento que recebeu e resquícios da suposta onipotência materna serao internalizados dando suporte a esse padrao. As articulações entre incontáveis imagens afetivas irao compor seu mundo interno, incluindo representações de prazer e desprazer, dor e alívio, capacidades e impotências, entre outras tantas transformadas em registros a partir de sensações corporais. Tudo isto irá caracterizar um Eu, um narcisismo cuja sede tenderá a ser o corpo. Assim, a sobrevivência deste Eu se confundirá com sobrevivência do corpo, de forma que um abalo físico poderá desencadear algum abalo subjetivo.

Trazendo de volta a consciência da vulnerabilidade na qual habitualmente não se quer pensar, e de uma dúvida quanto à capacidade para garantir a própria continuidade, a doença conduzirá o indivíduo a um movimento regressivo na direção dos expedientes psíquicos com que encarava primitivamente sua própria impotência. É neste contexto psicológico que se instala a figura do médico, estabelecendo com o paciente uma relação.

Ao lidar com a dúvida quanto à autonomia para a promoção do próprio bem-estar, o indivíduo elege alguém que, como a figura primeva, supostamente garanta sua estabilidade, transferindo a onipotência materna para um outro. E se o desencadeante disto tudo é a perda da integridade do corpo, este outro tende a ser o médico que, sem perceber, recebe do indivíduo doente não só um corpo, mas, primordialmente, um Eu a reparar.

O que ocorre é que, uma vez despertado pelo abalo físico, as questoes imaginárias seguem rumo próprio, exigindo para a sua restauração intervenções que se desprendem das que se dirigem ao corpo.

A relação médico-paciente, em virtude dessas circunstâncias descritas, pelas posições assimétricas em que se encontram os dois pólos do vínculo, tende a ser particularmente carregada de elementos transferenciais, de parte a parte. Se o paciente, no momento em que adoece, vê-se às voltas com tudo o que foi exposto, o outro pólo do vínculo, pelo simples fato de ter-se tornado médico, revela o alto grau de importância inconsciente que atribui ao corpo e à doença.

O abalo da imagem corporal íntegra leva, entao, o paciente ao deslocamento de sentimentos, expectativas e apreensões inconscientes derivados de imagens, tanto asseguradoras quanto frustrantes, imprimindo a essa relação movimentos, muitas vezes, totalmente alheios às condições objetivas do vínculo. A transferência que se instala poderá apresentar características positivas ou negativas, ou seja, basicamente de adesão ou de oposição ao médico, mas, de uma forma ou de outra, são e serao sempre movimentos tao poderosos que levaram Michel Balint a afirmar que a medicação mais utilizada na clínica é o próprio médico. E se a relação médico-paciente é, em si, um tratamento, há o risco indissociável de ela vir a se converter em algo iatrogênico.

Geralmente, em maior medida, instalam-se vínculos positivos de confiança e simpatia que conduzirao à adesão ao tratamento. A palavra do médico e suas afirmativas de sucesso avalizarao a terapêutica ministrada, favorecendo o êxito.

Nem sempre, porém, o inventário de recordações inconscientes do paciente o habilita a um vínculo primordialmente positivo e a regressão pelo adoecer traz de volta sentimentos de ameaças e desconfianças guardadas das primeiras relações com a figura que cuida. O mais esperado nessas circunstâncias é que haja resistência a aceitar a dependência e a aderir ao tratamento, ou mesmo uma aberta rejeição à figura do médico ou à terapêutica ministrada. Inconscientemente, é imposta ao profissional a prova de vir a desfazer apreensões arcaicas relativas às imagens primitivas. Esta transferência negativa pode se desenvolver criando ou superdimensionando efeitos colaterais de substâncias ou procedimentos, caracterizando um fracasso que, se por um lado prolonga ou agrava a doença, por outro permite um triunfo sobre aquela figura ameaçadora presentificada pelo tratamento clínico. Destaca-se esta dimensão da transferência como uma condição potencialmente iatrogênica na clínica médica.

Por outro lado, no entanto, não se pode falar na transferência do paciente sem que se aborde a transferência do médico, igualmente determinante dos caminhos do vínculo terapêutico. Em contrapartida à figura do "médico ideal" desejado pelo paciente, o médico também lida, pelo menos inconscientemente, com a figura de um "paciente ideal". Este seria caracterizado pela adesão incondicional ao tratamento, o que deixaria o médico livre em seu caminho para, a partir de sua técnica, afirmar uma capacidade reparadora e de pretensos poderes sobre a doença e a morte que, em parte, o motivaram em sua escolha profissional.

Seja por características inerentes ao próprio paciente ou pela interação problemática das características de ambos, seja por ocorrências no percurso no tratamento, há, entretanto, situações em que a transferência por parte do médico se dá em modalidade negativa. Sem dúvida, é esta a alternativa que se apresenta como a de maior potencial iatrogênico, por induzir o médico a atuações inconscientes que traduzem agressão, desconsideração ou intolerância, o que, por sua vez, agrava as feridas narcísicas próprias do adoecer, reforçando e prolongando o uso do corpo como elemento primitivo de comunicação.

Em outras circunstâncias, a transferência negativa do médico sobrevém a situações em que a doença se mostra refratária às condutas propostas, o que o expoe a sentimentos de frustração e impotência. É nessas circunstâncias que tendem a surgir atuações que vao desde a imposição de diagnósticos psicopatológicos tendenciosos e estigmatizantes até questionáveis procedimentos rudes e dolorosos, pretensamente terapêuticos, mas, na verdade, veículos de uma agressividade que o próprio médico não alcança, dado que os elementos da transferência são inconscientes.

É ingênuo, no entanto, supor que os vínculos ditos "positivos" estejam isentos de iatrogenia. Na verdade, pode-se estabelecer entre paciente e médico um vínculo de satisfações mútuas que conduza à manutenção de uma doença transformada em campo de trocas não percebidas. Nesse caso, caberá ao médico escutar, traduzir e alcançar sua resposta íntima, senão para trabalhá-la em direção à cura, pelo menos para não transformá-la em apoio à doença.

Concluindo, deve-se considerar que embora os caminhos da formação médica conduzam à objetividade do visível, não serao, por certo, os psicanalistas os únicos habilitados a entender que a doença física pode ser um campo privilegiado para a presentificação de conflitos arcaicos. E nem deve ser tido como próprio do clínico o desconhecimento de regressões de maior ou menor intensidade, dependências de maior ou menor amplitude, transferências positivas ou negativas, já que tudo isto faz parte do adoecer.

Mais ainda, é necessário que o médico aceite que também ele mantém expectativas inconscientes no exercício de sua função, o que o obriga à reflexão constante sobre suas posições perante seu paciente. Se a transferência é um elemento poderoso no âmbito de qualquer tratamento, lhe é inerente o risco da produção de efeitos iatrogênicos. Espera-se, portanto, do médico que, renunciando a qualquer pretensão onipotente, faça de si mesmo objeto de observação, sujeitando-se à evidência de que, em qualquer relação humana, existe outra dimensão para além do que é dado a ver.

 

REFERENCIAS

1. Breuer J, Freud S. Estudos sobre a histeria (1895). Rio de Janeiro: Imago; 1976. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v.2.

2. Winnicott DW. Objetos transicionais e fenômenos transicionais (1951). In: Winnicott DW. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978.

3. Balint M. O médico, seu paciente e a doença. Rio de Janeiro: Atheneu; 1975.

4. Winnicott DW. A Mente e sua relação com o psiquesoma, (1949). In: Winnicott DW. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves; 1978.

5. Birman J. Psicanálise, ciência e cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1994.

6. Freud S. Conferências introdutórias sobre psicanálise. parte III (1916). Rio de Janeiro: Imago; 1976. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v. 16.

7. Freud S. A Questão da Análise Leiga (1926). Rio de Janeiro: Imago; 1976. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, v. 20.