RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 16. 4

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Artigos de Revisão

Memória de longo-prazo: mecanismos neurofisiológicos de formação

Long-term memory: neurophysiological mechanisms of formation

Gustavo Camargo Silvério1; Renata Menezes Rosat2

1. Acadêmico (quartanista) da Faculdade de Medicina de Barbacena, mg
2. Profa. Adjunto do Departamento de Fisiologia e do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre, RS

Endereço para correspondência

Gustavo Camargo Silvério
Rua Tupis 122
Montes Claros, mg CEP 39.401-068
E-mail: gustavosilverio@hotmail.com

Resumo

A partir de extenso estudo bibliográfico sobre a consolidação da memória declarativa, este estudo propõe a educação continuada apresentando o interessante tema e seus avanços de forma sintética. É abordado o processo neurofisiológico de formação dessa memória de longo prazo, descrevendo-se os diversos mecanismos favoráveis à estabilização de conexões sinápticas que possibilitem tornar as memórias "mais firmes". Com este intuito, o artigo expõe o tema baseando-se nas mais recentes publicações especializadas da neurociência, possibilitando a compreensão de como a memória de longa duração é formada e quais fatores contribuem para tal processo.

Palavras-chave: Memória; Hipocampo.

 

O processo de formação da memória de longo prazo (ou de longa duração) envolve diversos mecanismos fisiológicos que visam a desenvolver condições favoráveis ao armazenamento de informações através de alterações anatômicas e fisiológicas.1 Nestas últimas décadas, devido ao avanço científico e tecnológico, o surgimento de modernas técnicas de imagem, como a tomografia por emissão de pósitrons (PET) e a imagem por ressonância magnética funcional (fMRI), possibilitou melhor compreensão do processo da elaboração da memória a partir da monitoração de regiões atuantes durante tarefas específicas de memória.2 O estudo e análise dos déficits de memória em animais laboratoriais e o comportamento de pacientes decorrentes de lesões por tumor, trauma, acidente vascular cerebral e cirurgias como a utilizada para o tratamento de distúrbios epilépticos, o desenvolvimento de tratamentos baseados em fármacos também fizeram grandes contribuições para a evolução expressiva dessa área de conhecimento científico, a neurociência.3,4,5 As técnicas empregadas para o entendimento da neurofisiologia da memória têm sido cada vez mais específicas, baseando-se em estudos em âmbito bioquímico, molecular e, inclusive, genético, no qual se constatou a maior contribuição para as correlações fenotípicas entre a inteligência e algumas dimensões da personalidade.6 São tantos os estudos e constantes descobertas sobre o tema, que se torna cada vez mais difícil acompanhar as inúmeras publicações estrangeiras constantemente. Este trabalho visa, então, a auxiliar os leitores no conhecimento atualizado sobre a formação da memória de longo prazo.

 

A MEMÓRIA: CONCEITOS

Entre as características do sistema nervoso, a memória, uma propriedade dos animais e, em particular dos seres humanos, é considerada uma das mais instigantes e que desperta curiosidade em torno de seu funcionamento.7 É definida por ser a capacidade de reter e armazenar informações adquiridas, possibilitando alteração no comportamento com base na experiência ao longo da vida.4 A memória humana possui duas amplas categorias - a declarativa (ou explícita) e a não declarativa (ou implícita). A memória declarativa, objetivo da exposição deste artigo, está associada à rememoração consciente de fatos, conceitos e eventos; a não declarativa opera no inconsciente.3 Fisiologicamente, é possível dividir essa memória declarativa em duas formas, de acordo como a informação foi armazenada, temporariamente (memória de curto prazo) ou por um tempo mais prolongado (memória de longo prazo).8 Essa divisão é uma difícil questão de estabelecimento, já que o limite temporal entre as memórias de curta e longa duração é impreciso; a primeira pode ser estabilizada algumas vezes, sob a forma mais duradoura de longa duração, um processo chamado consolidação.1,8 Então, como estabelecer o "momento" em que uma memória de curta duração passa a ser de longa duração? E quais são os dispositivos necessários para a formação dessa memória de longa duração?

 

A SINAPSE E A SUA CARACTERÍSTICA ADAPTATIVA

Sabe-se que a plasticidade neural, uma qualidade adaptativa do sistema nervoso, consiste na capacidade de desenvolver alterações perduráveis da função sináptica com o objetivo de prolongar ou facilitar a transmissão de um estímulo através da geração de traços de memória que consistem em novas conexões neurais, formando uma via "marcada" por determinado estímulo.1 Dessa forma, as sinapses não são estáticas, podendo modificar-se com o objetivo de tornar compatível a sua resposta com a sua atividade; uma condição possível graças às propriedades estruturais e moleculares que possibilitam tornar a força sináptica mais forte.9

Os dispositivos que permitem fortalecer a sinapse são diversos, porém resumem-se em alterações no terminal pré-sináptico ou na membrana pós-sináptica.10 Isso porque o tamanho do potencial sináptico que é produzido pelo neurônio pré-sináptico depende de vários fatores, que vão desde o número de contribuições sinápticas numa conexão sináptica, a quantidade de neurotransmissor que é liberada a cada sinapse, o tamanho da corrente resultante a cada sinapse, até as propriedades elétricas da célula pós-sinápticas.9 Também deve ser considerado que os eventos elétricos no terminal pré-sináptico dependem da participação dos canais de íons voltagem dependentes, das características da estrutura sináptica e suas variações, assim como das características moleculares e suas diferenças.11 Algumas dessas características das propriedades estruturais pré-sinápticas incluem: o número de zonas ativas por sinapses - local onde há liberação de vesículas com neurotransmissores - quanto mais alto for o número dessas zonas ativas, maior será a capacidade da terminação pré-sináptica de liberar vesículas sinápticas; a densidade de canais de Ca2+ e maior liberação de vesículas sinápticas; o tamanho das vesículas sinápticas que, quando aumentado, satisfaz a exigência da célula pós-sináptica, ativando-se com um número menor de vesículas sinápticas; o espaço entre as vesículas facilmente liberáveis e os canais de Ca2+. Estando o canal de Ca2+ aproximadamente associado a essas vesículas, um número reduzido desses canais abertos é necessário para disparar o evento de fusão de vesículas facilmente liberáveis.9 Quanto à característica molecular que influencia a força da sinapse, pode-se citar a diferença na afinidade do receptor de Ca2+, um mecanismo que permita a elevação rápida e uniforme de Ca2+ para o desencadeamento da fusão das vesículas.12

Esses fatores são capazes de gerar mudanças no potencial de ação pré-sináptica, afetando a liberação de neurotransmissores por alterar a entrada de íons Ca2+ pelos canais de Ca2+ voltagens dependentes.11 Quando a duração do potencial de ação pré-sináptico está prolongada, ocorre longa entrada de íons Ca2+ e conseqüente aumento na liberação de neurotransmissores com destino aos receptores no terminal pós-sináptico.9

 

OS ESTÍMULOS REPETIDOS E SUAS VIAS ESPECÍFICAS DE ATIVAÇÃO

O treinamento repetido, uma repetição de estímulos sensibilizadores por uma hora e trinta minutos, pode induzir a sensibilização de longo prazo, gerando uma memória mais persistente.3 Essa sensibilização consiste em um mecanismo de base molecular no qual as alterações na conexão sináptica derivam da ativação de genes durante a passagem da memória em curto prazo para a de longo prazo e da síntese de proteínas.3 Para isso, basta a repetição de um único estímulo para sensibilizar os receptores na membrana da célula e provocar o aumento intracelular do segundo mensageiro adenosina-monofosfato-cíclico (AMPc) necessário à ativação da cascata de proteína quinase.13 Com isso, genes CREB1 permitem a ocorrência de uma transcrição aumentada do ácido ribonucléico (RNA, de ribonucleic acid) e síntese de novas proteínas específicas com o intuito de aumentar os contatos sinápticos.6 Esse é um lento e frágil processo, já que a plasticidade neural exige verdadeiras mudanças estruturais e funcionais nas sinapses para a consolidação da memória.8,13,14,15

Como resultado de alterações na transmissão sináptica ocorridas na sensibilização, os traços de memória são desenvolvidos com o intuito de estabelecerem-se novas vias capazes de serem ativadas pela mente pensante, no sentido de reproduzir as memórias.1 Esses "traços" comprovam que a memória de longo prazo é resultado de verdadeiras modificações estruturais nas sinapses a partir de mecanismos que amplificam ou suprimem a memória, obedecendo a especificidade em que houve a sua aquisição.16,17 Ou seja, por exemplo, um sinal extracelular como o "gosto" (da gustação) pode ativar cascatas específicas de segundos mensageiros e enzimas como a 1,2-quinase-sinal-regulada (ERK1-2) no córtex insular, culminando na modulação da expressão gênica para a codificação de uma memória de longo prazo de um novo determinado sabor, assim como o sistema de audição é o protagonista no estabelecimento de traços de memória corticais em músicos para o molde de melodias.18,19,20

 

A POTENCIALIZAÇÃO EM LONGO PRAZO: UM MODELO DE ESTÍMULO PERSISTENTE

Uma forma mediada por aumento da eficácia sináptica, a potencialização em longo prazo (LTP, de long-term potentiation), envolve mudanças tanto pré quanto pós-sinápticas, podendo durar horas ou semanas.10 Essa potencialização engloba todos os mecanismos até agora citados no texto, constituindo um importante dispositivo para a fixação da memória. Na LTP, neurotransmissores aminoácidos excitatórios atuam em receptores não-NMDA (não-N-metil-D-aspartato), promovendo o aumento da amplitude de ação dos potenciais propagantes ou a fosforilação de substratos protéicos necessários para alterações duradouras na eficácia sináptica.21,22,23 Há hipóteses de que, entre as modificações pós-sinápticas, o aumento do número de receptores não-NMDA auxilie na LTP.24

A importância desses receptores no mecanismo da LTP na formação da memória de longo prazo foi observada com mais profundidade a partir do desenvolvimento de fármacos atuantes em receptores NMDA. Num estudo realizado na Universidade de Göttingen (Alemanha), homens sadios foram tratados com o 1-amino-3,5-dimetiladantan-hidroclorido, um fármaco de natureza antagonista não-competitivo em receptores NMDA. Esse fármaco produziu consideráveis decaídas no desempenho para o reconhecimento de objetos, demonstrando que existe uma relação funcional entre a atividade dos receptores NMDA e o desempenho para o reconhecimento de objetos.25

 

A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DE LONGO PRAZO: A SUA FORMAÇÃO

Unindo todas as formas que aumentam a eficácia da transmissão sináptica, é possível compreender como ocorre a construção da memória de longo prazo (MLP), que depende da ligação de neurotransmissores a receptores específicos para dar início a uma cascata de reações bioquímicas. Como esses neurotransmissores são a chave para produzir efeitos favoráveis na formação da MLP, o glutamato, quando ligado aos receptores do tipo metabotrópicos, AMPA (alpha-amino-3-hydroxy-5-methylisoxazole-4-propionic acid) e NMDA, ativam a guanilil-ciclase, uma enzima celular. Essa enzima induz o aumento do segundo mensageiro guanidina-monofosfato-CÍCLICO (GMPc), que ativa a proteína quinase G, promotora da formação de óxido nítrico e monóxido de carbono.20 Estes, por sua vez, amplificam a resposta potencializando a ação do glutamato tanto pré como pós-sináptico.19,20

O glutamato unido a seu receptor de membrana também é capaz de ativar a proteína quinase C, que favorece a transmissão glutamatérgica mantendo-a por pelo menos mais meia hora. Outras interações como a ligação glutamato-receptor NMDA e glutamato-receptor AMPA são capazes de prolongar a transmissão sináptica em mais três horas.13 E para que esse estímulo recebido na membrana pós-sináptica firme a constituição de uma MLP, a proteína quinase A promove a ativação de proteínas nucleares do tipo CREB, dando início à transcrição de proteínas de adesão celular capazes de fortalecer as sinapses recém-estimuladas.26 Terminando a aquisição de cada memória, os eventos subseqüentes ao processo de ativação da CREB se estendem por até seis horas.13,15 É interessante entender que o processo de consolidação da memória não é um evento de único momento, portanto, é repetido com a ativação subseqüente das memórias.27

Todo esse processo de formação da MLP ocorre no hipocampo, em uma subárea hipocampal denominada CA1 e constituinte de um circuito integrado ao neocórtex vizinho (córtex entorrinal) e a duas subáreas hipocampais: o gyrus dentatus e a subárea CA3.28 A subárea hipocampal CA1 projeta-se ao córtex entorrinal, formando um circuito reverberante funcionalmente ativo.29 O córtex entorrinal emite e recebe fibras de vários núcleos da amígdala e do septum (ambos registram a cor emocional das memórias regulando a função hipocampal); do córtex pré-frontal ântero-lateral (essencial para a memória de trabalho manter-se sempre online durante o processamento da informação); do córtex parietal associativo; da maior parte do córtex sensorial. Dessa forma, CA1 está interligado a todas as regiões do cérebro e suas diversas regiões relacionadas, inclusive, com funções emocionais.13,29 As interações funcionais entre o hipocampo e as áreas corticais relacionadas são de tal importância que quando modificadas pela deteriorização ou deficiência de transmissores, como ocorre na senilidade, estão associadas ao declínio das habilidades da memória.30 O hipocampo, a amígdala e o córtex entorrinal, pré-frontal e parietal recebem também terminações de vias nervosas vinculadas às emoções, ao estado de consciência (alerta) e ao registro de estímulos que produzem ansiedade ou causam estresse.13 Essas são as vias dopaminérgicas, noradrenérgicas, serotoninérgica e colinérgicas: todas derivadas de seus respectivos neurotransmissores, que são a dopamina, noradrenalina, serotonina (5-HT) e acetilcolina.31 Os receptores 5-HT da via serotoninérgica, por exemplo, quando estimulados pela serotonina, acentuaram a sintonia desses neurônios diante a memorização.32 Já a acetilcolina está relacionada com o aumento da síntese de FNC (fator neural de crescimento) e este com a consolidação de informações.14 Essas vias moduladoras, quando ativadas por diversas experiências, dependendo do nível de emoção ou ansiedade, agem sobre suas estruturas-alvo por meio de seus receptores específicos, com efeito regulador da memória.13

A seqüência de processos bioquímicos na subárea hipocampal CA1 necessária para tornar as memórias "mais sólidas" contém etapas parecidas com as da potencialização de longo prazo, visto anteriormente como um modelo sináptico de memória.31,33 Tal é a importância do hipocampo que, se removido bilateralmente dos lobos temporais, novas memórias não poderão ser armazenadas.10 Porém, os neurofisiologistas acreditam que existem múltiplas formas de memória, cada uma mediada por distintas vias cerebrais. Mesmo que muitos complexos mecanismos já estejam entendidos, não há um consenso tanto para as diversas diferenças entre os tipos de memória como para as contribuições de alterações anatômicas específicas para cada tipo de memória.28 O que se pode afirmar é que na subárea CA1 hipocampal ocorre tudo de acordo com as alterações perduráveis da função sináptica ("plasticidade") na mesma estrutura, induzindo o remodelamento das sinapses, modificando a estrutura sináptica e adicionando novas sinapses com o intuito de aumentar a eficiência e o número de conexões estabilizadas.5,33 A partir da complexidade dos mecanismos da memória de longo prazo e seu tempo gradual de formação, os estudos de imagem funcional em cérebro demonstraram que as alterações internas visam a atingir uma estabilidade funcional que depende do transcorrer do tempo.34 Na formação da memória de longo prazo, então, há diversos mecanismos envolvidos com a função moduladora e outros capazes de potencializar os estímulos e gerar condições para que, quando solicitada, a memória seja evocada.

 

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