RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 13. 2

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Relato de Caso

Linfoma não-Hodgkin primário de vesícula biliar: relato de caso e revisão de literatura

Primary non-Hodgkin lymphoma of the gallbladder: case report and review of the literature

Carlos Marcelino de Oliveira1; Daniela de Oliveira Werneck Rodrigues2; Káthia Lavínia Fajardo de Mello3; André Carvalho Felício4; Cláudia Veiga Chang4

1. Professor Adjunto da Disciplina de Fisiologia da Universidade Federal de Juiz de Fora; Médico-chefe do Serviço de Hematologia do Instituto Oncológico de Juiz de Fora (IOJF); Presidente da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora
2. Médica Hematologista do IOJF; Coordenadora da Fundação Hemominas
3. Médica Hematologista do IOJF; Médica da Fundação Hemominas
4. Acadêmico da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora

Endereço para correspondência

Carlos Marcelino de Oliveira
R. Luiz Antônio Tomaz, 299 Bairro Cidade Jardim
Juiz de Fora - MG CEP: 36026-590
Fax: (32) 3690-8060
E-mail: marcelino@artnet.com.br

Resumo

Os linfomas primários de vesícula biliar são extremamente raros. Relatamos caso de linfoma não-Hodgkin de grandes células B, primário da vesícula biliar, em paciente de 50 anos, do sexo masculino. Os sinais e sintomas foram náuseas, vômitos e emagrecimento de cerca de 8 Kg nos últimos meses, sudorese noturna e dor em cólica no quadrante superior direito do abdome. Na ultrasonografia, observou-se vesícula biliar com presença de "barro" em seu interior. A colangiografia percutânea evidenciou imagem sugestiva de colecistite alitiásica, sendo realizadas laparotomia e colecistectomia. Os exames anatomopatológico e imunohistoquímico definiram o diagnóstico. Além da colecistectomia, realizou-se quimioterapia: ciclofosfamida, hidroxorrubicina, vincristina e prednisona (protocolo CHOP). O paciente faleceu meses após o tratamento. Fez-se revisão da literatura referente ao tema.

Palavras-chave: Linfoma não-Hodgkin; Linfoma de Grandes Células B; Vesícula Biliar.

 

Os linfomas são neoplasias malignas do tecido linfóide, podendo ser nodais ou extranodais. O trato gastrointestinal, principalmente estômago (58%) e intestino delgado (22%), é o sítio mais comum de envolvimento extranodal.1-5

Cerca de 98% das neoplasias da vesícula biliar correspondem a adenocarcinomas6, sendo o linfoma primário desse órgão1,2,6-12 e das vias biliares1,8,13,14 muito raro.

No presente artigo, relatamos caso de linfoma não-Hodgkin de grandes células B, primário de vesícula biliar, com revisão de literatura.

 

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 50 anos, branco, casado, fazendeiro, foi admitido com náuseas, vômitos, emagrecimento (cerca de 8 kg nos últimos meses), sudorese noturna e dor em cólica no quadrante superior direito do abdome. Funções excretoras preservadas. Não havia relato de doença prévia ou história de contato com agentes carcinógenos. História positiva para câncer de estômago e esôfago em familiares de primeiro grau. Não-tabagista e etilista social. Ao exame físico, o paciente estava afebril (36,5ºC), acianótico, ictérico (+++/4), com mucosas hipocoradas (++/4) e hipohidratadas (++/4). Havia dor à palpação superficial e profunda do quadrante superior direito, ausência de linfadenomegalias, baço e fígado impalpáveis. Sem outras alterações no exame físico.

Os exames laboratoriais revelaram: hemoglobina 9,5g/dl (VR:13,5-17,5g/dl), leucócitos globais 8400/mm3 (VR:4,5-11x103/mm3), com diferencial normal, velocidade de hemossedimentação 112 mm/h, desidrogenase lática 553 U/l (VR:208-378U/l), uréia 88 mg/dl (VR:14-36mg/dl), creatinina 1,4 mg/dl (VR:0,7-1,3mg/dl), AST/TGO 85U/l (VR:10-30U/l), ALT/TGP 56U/l (VR:8-20U/l), fosfatase alcalina 168 U/l (VR:53-128U/l), atividade de protrombina 100%, bilirrubina total 14,30 mg/dl (VR:0,2-1,0mg/dl), bilirrubina conjugada (direta) 9,7 mg/dl (VR:0-0,2mg/dl) e bilirrubina não-conjugada (indireta) 4,6 mg/dl.

A ultra-sonografia de abdome evidenciou vesícula biliar dilatada com a presença de "barro biliar" em seu interior e demais órgãos sem alterações. Foi indicada colangiografia percutânea, que evidenciou imagem sugestiva de colecistite alitiásica, sendo realizadas laparotomia e colecistectomia.

No anatomopatológico, à macroscopia, foi evidenciada vesícula biliar medindo 7 cm, parede brancacenta, firme e elástica, revestida por mucosa esverdeada. À microscopia, constatou-se neoplasia maligna de células redondas infiltrando parede de vesícula biliar, sugestivo de linfoma (Figuras 1 e 2).

 


Figura 1 - Neoplasia de células redondas infiltrando parede de vesícula biliar: HE, aumento original 40x

 

 


Figura 2 - Neoplasia de células redondas infiltrando parede de vesícula biliar: Wright, aumento original 40x

 

A imunohistoquímica resultou fortemente positiva na membrana de quase todas as células neoplásicas, quando se pesquisou o antígeno CD20 de linfócitos B (L26). Essa reatividade demonstrou citoplasma relativamente amplo nessas células, que apresentavam núcleos grandes e redondos, com nucléolos exuberantes. O processo inflamatório infiltrava extensamente a parede da vesícula biliar com acometimento de mucosa bem menos intenso que o das demais túnicas, sendo relativamente raras as figuras de agressão do epitélio, de glândulas ou pregas mucosas. Escassos agrupamentos de linfócitos pequenos mostraram positividade para o antígeno CD3 de linfócitos T (policlonal). Não houve positividade para o CD30 (antígeno KI-1 - BER-H2), CD15 (antígeno associado aos granulócitos e a células de Reed-Sternberg - BG 7) e citoqueratinas de alto e baixo peso molecular (AE1/AE3).

Com base, portanto, no perfil imunohistoquímico, a neoplasia foi caracterizada como linfoma não-Hodgkin de grandes linfócitos B. Após exames complementares de imagem (radiografia de tórax e ultra-sonografia de abdome e pelve), mielograma e biópsia de medula óssea, não foi evidenciado envolvimento neoplásico em nenhum outro local, classificando-se o linfoma como IEB de Ann Arbor. O paciente foi submetido a quimioterapia com o esquema CHOP (ciclofosfamida, hidroxorrubicina, vincristina e prednisona). Meses após, apresentou queda progressiva do estado geral, evoluindo para o óbito.

 

DISCUSSÃO

O linfoma primário de vesícula biliar é extremamente raro,1,2,6-12 tendo sido descrito, pela primeira vez, em 1904, por Landsteiner.15 Segundo Chatila et al., até 1996 havia relato na literatura inglesa de 20 casos de linfoma não-Hodgkin de vesícula biliar,2 sendo apenas nove adequadamente documentados: cinco casos eram de linfoma linfocítico, um de linfoma angiotrópico, um caso de linfoma de células reticulares e dois casos de linfoma de tecido linfóide, associado à mucosa (MALT). De 1996 até a presente data, foram relatados apenas mais dois casos na literatura com documentação satisfatória,2,16 sendo um caso de linfoma de grandes células B e um de linfoma MALT.

A revisão sobre linfoma primário de vesícula biliar é extremamente difícil pela diversidade de terminologias utilizadas, principalmente nos relatos de caso que precederam à Working Formulation (1982).8-11,15,17,18 Encontramos apenas dois casos de linfoma de grandes células B na literatura.2,19

Não há acometimento preferencial do linfoma de vesícula biliar por nenhum dos sexos.2 Nota-se, entretanto, discreta prevalência no sexo feminino, com faixa de idade variando de 24 a 79 anos.1,2,6-12,15-18

Entre as manifestações clínicas observadas, a maioria dos pacientes inicia com quadro de náuseas, vômitos e dor no quadrante superior direito do abdome, sendo esta a manifestação mais comum.1,2,6,7,10-12,16-19 Vários autores já relataram colecistite como uma das manifestações das neoplasias de vesícula biliar.1,6,9,11,15,17,19 Icterícia, colelitíase e ascite também podem estar presentes.2,6,7,11,12,15,16 A maioria dos pacientes evolui para o óbito em curto período de tempo após a cirurgia, tendo sido constatado melhor prognóstico naqueles com linfoma MALT.2

Segundo Mosnier et al.7, os linfomas malignos da vesícula biliar se originariam a partir de colecistite folicular crônica, uma variante da colecistite crônica, caracterizada pela presença de folículos linfóides reativos.7 Esse processo seria semelhante ao que ocorre em linfomas MALT de baixo grau de outros órgãos, como na gastrite crônica, tireoidite de Hashimoto e sialadenite mioepitelial.12 Essa fisiopatogenia aplica-se de forma mais plausível aos linfomas MALT, carecendo-se de explicações mais convincentes para origem dos linfomas não-MALT.

Em série de 1269 casos de linfoma, observou-se em trinta o comprometimento da vesícula biliar pelo linfoma decorrente de invasão secundária e nenhum caso de linfoma primário deste órgão,5 o que está de acordo com a literatura, em que a maioria dos linfomas é secundária a um processo disseminado.10,12,14

A maioria dos casos em que se detecta linfoma primário de vesícula biliar correlaciona-se com indicações de colecistectomia.11 Se para o caso aqui relatado não fosse indicada colecistectomia em fase inicial, provavelmente teria sido dado o diagnóstico de linfoma acometendo secundariamente esse órgão. Assim, é válido questionar se o linfoma primário de vesícula biliar não seria entidade subdiagnosticada por sua rápida evolução.

 

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