RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 13. 2

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Relato de Caso

Actinomicetoma exógeno - Caso com evolução favorável

Actinomicetoma - Case with favorable evolution

Andrea Almeida Magalhães1; Mariana Castilho Rassi2; Luísa Patrícia Fogarolli de Carvalho3

1. Médica formada pela Faculdade de Medicina de Itajubá, com Residência em Clínica Médica pelo Hospital Universitário Alzira Velano- Alfenas- MG
2. Médica Residente da Clínica Médica do Hospital Universitário Alzira Velano
3. Médica Coordenadora da Disciplina de Infectologia da Faculdade de Medicina da UNIFENAS

Endereço para correspondência

Andrea Almeida Magalhães
Rua Piauí, 420. Sala 2 Centro
Poços de Caldas-MG CEP: 37701-024
E-mail: aamagal@bol.com.br

Resumo

Relata-se caso de actinomicetoma exógeno com evolução favorável, apesar da gravidade das lesões e do diagnóstico tardio. O paciente, trabalhador rural, necessitou ser submetido a fasciotomia de urgência devido ao desenvolvimento de síndrome compartimental e, na biópsia de pele, constatou-se presença dos "grânulos de enxofre", sendo iniciado tratamento com sulfametoxazol-trimetropim, havendo cura das lesões localizadas na coxa esquerda, após tratamento e acompanhamento ambulatorial por nove meses. Esse diagnóstico só foi feito após um ano do início da doença, depois de ter sido submetido a várias tentativas terapêuticas sem sucesso.

Palavras-chave: Micetoma; Grânulos de Enxofre; Fasciotomia; Síndrome Compartimental

 

Micetoma é uma infecção crônica, geralmente localizada, lentamente progressiva, que provoca destruição da pele, dos tecidos subcutâneos, de fáscia, osso e músculo. Produz lesão circunscrita, elevada, edemaciada, com fístulas que expulsam grãos (grânulos), que são colônias do agente causal.1 São reconhecidos dois tipos de micetomas: os verdadeiros ou eumicetomas, causados por fungos, e os actinomicetomas, provocados pelos actinomicetos, que incluem Nocardia, Streptomyces, Actinomadura, Actinomyces.1,2,3

A posição sistemática dos actinomicetos é ainda confusa e as classificações propostas para enquadrar as diferentes espécies é um pouco subjetiva, refletindo a opinião dos pesquisadores dedicados à sua toxonomia.4 Isso dificulta o diagnóstico etiológico e, muitas vezes, a conduta terapêutica baseia-se em dados epidemiológicos e localização da lesão, não sendo raro o diagnóstico equivocado de lesões causadas por germes mais comuns que afetam a pele, como o estreptococo ou estafilococo, não se conseguindo, nesses casos, adequada resposta clínica com tratamento convencional.5 Daí a importância de se pensar nesse grupo de agentes causadores de actinomicetoma, confirmando-se o conceito de micetoma como síndrome clínica em vez de entidade nosológica.5

Histologicamente, observam-se os "grânulos de enxofre", que representam colônias de bactérias filamentares que, à coloração pela hematoxilina-eosina, são homogêneas e basófilas. Os grânulos são rodeados por neutrófilos.6 O aparecimento de vários grãos no anatomopatológico é tão característico que permite o diagnóstico de micetoma.1

O Actinomyces israelli é anaeróbico de natureza endógena, e já existe no interior do organismo. Por condições as mais diversas exalta sua virulência, tornando-se patogênicos. Sua manifestação primitiva e isolada na pele é raríssima.4 Já a nocardiose é quase sempre exógena, procedendo do meio exterior e penetrando no organismo humano por meio de ferimentos os mais diversos, geralmente provocados por corpos vulnerantes de natureza vegetal4, sendo então um actinomicetoma exógeno.

Alguns pacientes com actinomicetoma, apresentando múltiplas lesões por Nocardia, podem evoluir para amputação dos membros.1,7

 

DESCRIÇÃO DO CASO

Homem, 37 anos, trabalhador rural, deu entrada no nosso serviço com história de que, há aproximadamente um ano, notou aparecimento de lesões nodulares, secretando material purulento, que progressivamente aumentaram de tamanho, com algumas confluindo e ocupando toda a coxa esquerda, principalmente na região posterior. Durante esse período, procurou vários serviços de saúde, sendo prescritos vários antibióticos, os quais não sabia informar, porém sem melhora do quadro. Relatava que há um mês houve piora significativa, com dor de grande intensidade em toda a região, dificultando a deambulação, com aparecimento de eritema, edema e secreção serosanguino-purulenta, já impossibilitado de trabalhar e desempenhar sua função. Havia também presença de miíases.

Ao exame físico (Figuras 1 e 2): lesões localizadas na face posterior da coxa esquerda, que apresentava diâmetro aumentado cerca de uma vez e meia, comparada ao membro contralateral, com presença de sinais flogísticos, fístulas e miíases. Presença de múltiplos nódulos, ulcerados, alguns confluentes, variando de 1 cm a 3 cm de diâmetro, secretando material purulento, espesso, amarelo-esverdeado em algumas áreas. Paciente encontrava-se afebril e com queixa de dor intensa no local, havendo linfonodos inguinais palpáveis e infartados à esquerda, com pulsos periféricos simétricos.

 


Figura 1 - Actinomicetoma exógeno - Lesões com um ano de evolução, com presença de nódulos, ulcerações e fístulas

 

 


Figura 2 - Actinomicetoma exógeno - Nódulos ulcerados e edema intenso evoluindo para Síndrome Compartimental, após um ano de evolução

 

Foi colhida secreção para cultura de bactérias e iniciado tratamento com penicilina cristalina, porém sem melhora do quadro, evoluindo com síndrome compartimental, necessitando fasciotomia de urgência, quando, então, foi realizada biópsia de pele. Na cultura da secreção, houve crescimento de Staphylococcus aureus sensível a oxacilina, sendo suspensa a penicilina cristalina e introduzido esse antibiótico, havendo melhora importante do quadro. Com o resultado da biópsia de pele compatível com o diagnóstico de actinomicetoma, foi associado sulfametoxazol-trimetropim na dose de 800/160mg de 12/12h e mantida a oxacilina por dez dias, sendo que o paciente recebeu alta hospitalar, orientado a continuar acompanhamento no ambulatório de infectologia, em uso do sulfametaxazol + trimetropim na dosagem citada anteriormente.

Exames complementares:

- Elisa anti-HIV - negativo.

- Radiografia da articulação coxa-femural esquerda - presença de processo inflamatório em periósteo (periostite) em fêmur esquerdo - articulação íntegra.

- Radiografia (AP e lateral) de fêmur e coxa esquerda - ausência de sinais de fratura, aumento de partes moles em fêmur com formação de úlceras.

- Cultura de secreção de lesão de coxa - crescimento de S. aureus sensível a oxacilina, vancomicina e ceftazidima e resistente a penicilina cristalina, cefalexina, cefalotina, sulfametoxazol.

- Biópsia de pele (Figuras 3A, 3B e 3C): quadro histológico compatível com o diagnóstico de actinomicetoma, havendo presença de "grãos de enxofre" à coloração por hematoxilina - eosina, visualizando-se colônias de bactérias gram-positivas. Realizada coloração de Ziehl - Nielsen sendo que foram visualizados alguns bastonetes ácido-resistentes.

 


Figura 3 A - Colônia bacteriana em menor aumento
Biópsia de pele realizada em 22/02/2001, nº origem: B-218/00, exame nº 01000006EX. Figura gentilmente cedida pelo Dr. Haroldo Garcia de Figueiredo.

 

 


Figura 3B - Colônia bacteriana e numerosos neutrófilos
Biópsia de pele realizada em 22/02/2001, nº origem: B-218/00, exame nº 01000006EX. Figura gentilmente cedida pelo Dr. Haroldo Garcia de Figueiredo.

 

 


Figura 3C - Detalhe da colônia bacteriana constituída por bactérias filamentosas
Biópsia de pele realizada em 22/02/2001, nº origem: B-218/00, exame nº 01000006EX. Figura gentilmente cedida pelo Dr. Haroldo Garcia de Figueiredo.
Exame Macroscópico: Fragmento irregular medindo 0,9 x 0,6 x 0,3 cm, firme e acastanhado.
Exame Microscópico: Os cortes mostraram fragmento constituído predominantemente por necrose e exsudato fibrino-leucocitário. Notavam-se de permeio ocasionais acúmulos de bactérias representadas por cocos fortemente basofílicos. Na periferia, observava faixa de epiderme espessada por acantose.
CONCLUSÃO: PROCESSO INFLAMATÓRIO COM CARACTERES DE BORDA DE LESÃO ULCERADA, INFECTADO. AUSÊNCIA DE NEOPLASIA.
Observação: 1- Quadro histológico compatível com diagnóstico de actinomicetoma (infecção bacteriana por Nocardia brasiliensis ou Streptomyces somaliensis (madurae). 2- A revisão da biópsia posterior (B315/01) confirmou o diagnóstico já estabelecido.

 

Após acompanhamento por nove meses e uso contínuo da sulfa, verificou-se regressão completa do quadro, restando apenas áreas cicatriciais hipotróficas na coxa esquerda, tendo o paciente recebido alta ambulatorial, considerando-se a cura clínica.

 

DISCUSSÃO

A freqüência dos actinomicetomas no Brasil é maior que a dos eumicetomas, dominando os casos provocados por actinomicetos aeróbios, dos gêneros Nocardia, Actinomadura e Streptomyces.1,2,8 Devido ao pouco número de casos registrados no Brasil8, os micetomas não são considerados problema de saúde pública em nosso país, porém não se deve esquecer de que esses dados não correspondem à realidade pelo pequeno número de estudos existentes e, principalmente, pelo provável número de casos não-diagnosticados, já que não é doença de notificação compulsória.

De acordo com casuística do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, do período de outubro de 1944 a janeiro de 1978, foram registrados 113 casos de actinomicetomas, num total de 154 casos de micetomas (73,38%)8, o que equivale a um caso atendido a cada três meses, ou quatro casos por ano. A localização nos membros inferiores foi a dominante8 e a Nocardia brasiliensis foi o actinomiceto mais freqüentemente isolado8.

Considerando epidemiologia, localização das lesões e resposta ao sulfametoxazol, estabeleceu-se o diagnóstico de actinomicetoma, provavelmente por Nocardia, mas não podendo ser descartada a hipótese de infecção por outra espécie de actinomiceto, já que não foi realizada cultura, pela inexistência de meios específicos no nosso serviço, bem como por não ser aventada essa hipótese diagnóstica até a realização da biópsia. Vale ressaltar que a cultura é definitiva, mas pode ser positiva em menos de um quarto dos casos9.

Com a possibilidade do actinomicetoma ter evolução desfavorável, como a amputação de membros1,7 e até mesmo óbito por disseminação hematogênica generalizada por Actinomyces israelli1,2,10 ou Nocardia2, principalmente em pacientes imunodeprimidos, podendo atingir 85% de mortalidade2, o diagnóstico dessa doença deve estar sempre incluído, mesmo não sendo de incidência comum. Além disso, a faixa etária mais atingida é a de indivíduos com função economicamente ativa, o que não deixa de representar prejuízo para a sociedade.

Outro ponto que dificultou o diagnóstico desse paciente foi a secreção da cultura positiva para Staphylococcus aureus no início da internação, havendo melhora com uso de oxacilina, o que mascarou o diagnóstico de actinomicetoma. Caso não tivesse sido realizada a biópsia de pele juntamente com a fasciotomia, provavelmente não seriam utilizados outros meios de cultura que permitissem identificação do actinomiceto.

Esse caso clínico vem demonstrar a importância de se considerar a hipótese dessa doença, principalmente em trabalhadores rurais que apresentarem lesões de pele de evolução crônica, tendo em vista a comorbidade que representa. Neste caso, apesar da necessidade de internação prolongada, afastamento do trabalho e fasciotomia, felizmente, não foi necessária a amputação e a doença, apesar desses transtornos, teve evolução favorável. Contribui para prognóstico ruim o diagnóstico tardio, que em nosso relato ocorreu após um ano, provavelmente por ser doença pouco diagnosticada e não muito comum.

Daí a importância dos profissionais da área de saúde estarem sempre atentos para diagnóstico de afecções menos prováveis, pois elas ocorrem e podem comprometer uma vida, nossa maior prioridade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1- Mandell GL, Bennett JE, Dolin R. Infections diseases. 4th. ed. New York: Churchill Livingstone's; 1995.

2- Veronesi R, Focaccia R. Tratado de Infectologia. São Paulo: Atheneu; 1997. p.1029-32;1047-8.

3- Zaias N, Taplin D, Rebell G. Mycetoma. Arch Dermatol 1969;99:215-25.

4- Lacaz CS, Porto E, Martins JE. Micologia médica. 8a ed. São Paulo: Sarvier; 1991. p.59-84.

5- Gatti JC, Cardama JE, Ocampo LA, Ricagno LA, Ialed M, Bianchi O. Pseudomicetomas: a propósito de dois casos. An Bras Dermatol 1981;56(3):215-8.

6- Lever WF, Schaumburg-Lever G. Histopathology of the skin. 7th ed. Philadelphia: JB Lippincott; 1990.

7- Bennet JC, Plum F. Cecil. Tratado de Medicina Interna: 20ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1997. p.2023-4.

8- Lacaz CS. Distribuição geográfica dos micetomas no Brasil. An Bras Dermatol 1981;56(3):167-72.

9- Prado FC, Ramos J, Valle JR. Atualização terapêutica. 19a ed. São Paulo: Artes Médicas; 1999.

10- Wee SH, Chang SN, Shim JY, Chum SL, Park WH. A case of primary cutaneous Actinomycosis. J Dermatol 2000;27:651-4.

11- Sampaio AS, Rivitti EA. Dermatologia. 2a ed. São Paulo: Artes Médicas; 2000.