RMMG - Revista Médica de Minas Gerais

Volume: 26. (Suppl.8)

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Artigo de Revisão

Reflexoes a respeito da experiência do trabalho interdisciplinar em um serviço de referência em hanseníase

Reflections on the experience of interdisciplinary work in a referral service in leprosy

Nidia Bambirra1; Maria Mônica Freitas Ribeiro2; Ana Regina Coelho de Andrade3; Cynthia Rossetti Portela Alves2; Luciana Miranda Barbosa Mello2; Marcelo Grossi Araújo1

1. Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Faculdade de Medicina - FM, Programa de Pós-Graduaçao em Promoçao de Saúde e Prevençao da Violência; UFMG, Hospital das Clínicas - HC, Serviço de Dermatologia. Belo Horizonte, MG - Brasil
2. UFMG, FM, Programa de Pós-Graduaçao em Promoçao de Saúde e Prevençao da Violência. Belo Horizonte, MG - Brasil
3. UFMG, HC, Serviço de Dermatologia. Belo Horizonte, MG - Brasil

Endereço para correspondência

Nídia Bambirra
E-mail: nbambirra@gmail.com

Instituiçao: Faculdade de Medicina da UFMG Belo Horizonte, MG - Brasil

Resumo

O objetivo deste manuscrito foi enfatizar a relevância e a experiência do atendimento em equipe interdisciplinar no controle da hanseníase em um centro de referência. A perspectiva histórica e cotidiana do trabalho em equipe em unidade de referência é tomada como ilustração. Os aspectos clínicos, sociais e psicológicos também têm grande impacto na vida dos pacientes. A articulação e o envolvimento dos diversos profissionais em um trabalho interdisciplinar possibilitam melhorias efetivas no acompanhamento e na busca da quebra do arquétipo cultural que a hanseníase representa. A inserção do centro de referência em uma instituição de ensino proporciona o treinamento de futuros profissionais para atender em equipe e para o acompanhamento dos casos de hanseníase.

Palavras-chave: Hanseníase; Equipe; Relações Interpessoais.

 

INTRODUÇÃO

O Brasil, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, é o segundo país do mundo em número de casos de hanseníase.1 Embora, entre as doenças contagiosas, seja doença passível de diagnóstico, tratamento e cura, sua abordagem ainda causa muita insegurança entre os indivíduos acometidos e entre os profissionais de saúde de todos os níveis. O diagnóstico tardio, com sequelas, e as diversas intercorrências resultantes da resposta imune de alguns indivíduos acabam por contribuir para o processo histórico de preconceito, negação e estigma que a acompanham. Nesse contexto, o papel da equipe multidisciplinar na abordagem da hanseníase tem sido preconizado e discutido.

Em um contexto de declínio da endemia, os Centros de Referência (CR) para o atendimento da hanseníase têm papel relevante, tanto na referência e contrarreferência para a atenção primária, onde é preconizado o tratamento do doente, quanto para o ensino de graduação e pós-graduação em saúde e para a educação continuada dos profissionais que atuam na atenção à doença.2 Os CRs concentram profissionais com experiência no manejo das diversas complicações da doença e são locais onde a pesquisa e o ensino devem ocorrer, além da assistência.

Em 1989, o Serviço de Dermatologia do Hospital das Clínicas da UFMG (SD-HC/UFMG) se estabeleceu como referência estadual para acompanhamento clínico da hanseníase no estado de Minas Gerais. A implantação da poliquimioterapia trouxe inovação no tratamento, com um processo de intervenção interdisciplinar, o que tornou essencial o trabalho de diversos profissionais e a efetiva participação do usuário.3 Nessa ocasiao houve a criação da equipe multidisciplinar, parte essencial do processo. Hoje, o serviço é referência para o Sistema Unico de Saúde e para os médicos que demandem orientações para o cuidado de seus pacientes. A reflexão sobre os desafios e as conquistas da equipe multidisciplinar para o tratamento, ensino e pesquisa da hanseníase, nesse centro de referência, constitui o objetivo deste trabalho.

Para subsidiar a reflexão proposta sobre o atendimento interdisciplinar na hanseníase, foi realizada pesquisa bibliográfica, na Biblioteca Virtual em Saúde com os termos hanseníase, leprosy, equipe, care team, interprofissional e interprofessional, bem como na releitura de outros textos considerados importantes.

 

A EQUIPE MULTIDISCIPLINAR NA ABORDAGEM DA HANSENIASE

Na revisão da literatura, o cotidiano do trabalho em equipe na abordagem da hanseníase não se destaca, apesar dos diversos artigos relacionados à atuação de profissionais nas diversas áreas: Enfermagem, Medicina, Fisioterapia e Terapia Ocupacional.4,5 Entretanto, o trabalho em equipe na área de saúde, especificamente na abordagem da hanseníase, tem sido discutido e valorizado.

Peduzzi6, em artigo sobre o trabalho em equipe na perspectiva da gerência, acrescenta que há necessidades não contempladas na atenção à saúde pela lógica tecnocientífica e pela atuação fragmentada de profissionais, sem considerar as ações dos demais colegas. A valorização da atuação de cada profissional incorporada aos saberes da equipe de trabalho e da comunidade envolvida no processo, bem como no compromisso com o projeto institucional, produz melhoras efetivas no acompanhamento dos indivíduos.6,7

Lana et al.8 chamam a atenção para o fato de o trabalho interdisciplinar e o atendimento integral não poderem estar inseridos apenas nos atendimentos em serviços especializados e nos CRs, reforçando a importância de o Programa de Controle da Hanseníase estar inserido no Programa de Saúde da Família. Para os autores, a interdisciplinaridade deveria envolver todos os níveis de atenção, adequando-se à complexidade e à realidade de cada um deles.

 

OS DESAFIOS NO COTIDIANO DO TRABALHO EM EQUIPE NO CENTRO DE REFERENCIA: RELATO DA EXPERIENCIA

No SD-HC/UFMG, desde a implantação da equipe multidisciplinar na abordagem da hanseníase, buscou-se a perspectiva de atuação interprofissional integrada. O primeiro grande desafio enfrentado foi a criação da própria equipe em um momento histórico em que as equipes interdisciplinares ainda não eram parte do cotidiano dessa instituição. Trabalhar em equipe no atendimento de pessoas, particularmente daquelas que apresentam hanseníase, exigia um processo participativo no qual era necessário construir uma nova concepção, saindo do imaginário de uma doença deformante e incurável para o de uma doença que tem tratamento e cura. Isso demandou disponibilidade, escuta, desejo de construir atendimento integral e partilhado, em que todos conhecessem as particularidades do atendimento de cada profissional, com o objetivo de usar a mesma linguagem e partilhar um conhecimento comum com os usuários.

Costa salienta que, para trabalhar em equipe, os profissionais devem ter clara a importância de haver um processo reflexivo sobre sua prática, inserção e autonomia de decisão nos serviços em todas as etapas do atendimento.9 Na construção desse processo, houve necessidade de reunioes frequentes e de construção de um projeto conjunto, com troca de informações e organização do trabalho, estabelecendo o acolhimento e o fluxo dos pacientes.

O atendimento realizado no Ambulatório de Hansenologia do SD-HC/UFMG foi construído em parceria entre Coordenadoria Estadual de Hanseníase de Minas Gerais, Universidade Federal de Minas Gerais (Faculdade de Medicina, Escola de Enfermagem) e serviços do HC-UFMG (dermatologia, enfermagem, fisioterapia, serviço social, farmácia, laboratório, terapia ocupacional), buscando interação interprofissional e interinstitucional. O serviço conta atualmente com profissionais da área médica, de enfermagem, de terapia ocupacional e fisioterapia, de serviço social e tem o suporte da farmácia e do laboratório.

Ponto primordial do processo tem sido a presença da coordenação do ambulatório, que assegura a comunicação entre os diversos profissionais, o intercâmbio com as diversas instituições de atendimento e a negociação intrainstitucional para atender às necessidades de agendamentos, referências e especificidades do atendimento.

O trabalho em equipe permite atendimento global ao usuário, que não se sente fragmentado, mas partícipe do processo. Cada paciente e os desdobramentos do seu caso são discutidos entre os profissionais durante o atendimento e fora dele. Esse intercâmbio no momento do atendimento faz com que os usuários tenham respostas imediatas às suas demandas. A participação da equipe em treinamentos de profissionais da rede de saúde contribui para a capacitação desses e descentralização do atendimento ao usuário.

Por estar inserida em um serviço de hospital universitário, a equipe tem importante papel no ensino. Para estudantes de graduação, é um espaço onde se vivencia o trabalho em equipe, como preconizado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação em Saúde,10,11 além de ser um espaço de prática no cuidado do paciente com hanseníase. Para a residência médica, seja em Dermatologia ou em Saúde da Família e Comunidade, é espaço de treinamento, onde se aprende que tratar do paciente vai muito além da prescrição de medicamentos, envolvendo o trabalho integrado de diferentes profissionais. Para os profissionais da equipe, os trabalhos de extensão e pesquisa, vinculados a essa experiência interdisciplinar, estimulam a própria educação continuada e produz material de qualidade para a comunidade e profissionais de saúde.

Muitas são as dificuldades encontradas desde a implantação do trabalho em equipe para atendimento de pessoas com hanseníase. A rotatividade dos profissionais na instituição gera dificuldades pela descontinuidade do atendimento, tanto pela necessidade do treinamento do novo profissional para assumir o trabalho em equipe, quanto pelo preconceito ou o medo em relação à doença. É um desafio a rotatividade de médicos-residentes, em formação, que, além de terem seu primeiro contato com a hanseníase, não passaram por treinamento anterior sobre o conhecimento das especificidades do funcionamento da equipe no serviço.

Mesmo inseridos em uma instituição de ensino, pesquisa e assistência, há falta de ferramentas e de tempo para verificar o alcance do trabalho e o impacto prático dessa relação de colaboração entre profissionais e usuários e sua repercussão nas condições crônicas e no contexto familiar dos usuários.

Outro desafio que se apresenta é a motivação e formação de novos profissionais para assumir o trabalho em CR frente às inúmeras novas demandas e responsabilidades presentes, em especial na sua assessoria à atenção básica e treinamentos. A perda de expertise para lidar com uma doença complexa como a hanseníase é uma preocupação já relatada na literatura9 e não é especifica do serviço em questao.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o relato de experiência no trabalho com hanseníase, pretendeu-se enfatizar a importância da atuação das equipes multidisciplinares e os desafios vivenciados na sua prática.

Certamente tem o viés do olhar de quem participou da construção inicial, atua e valoriza o trabalho em equipe. Espera-se que ele possa estimular a criação de outras equipes em um momento em que a efetivação da interdisciplinaridade não pode se desvincular da responsabilidade individual, da necessidade de partilha e inserção e, mais importante, de assumir as novas formas de responsabilidade pelo social que devem se fazer presentes.

 

REFERENCIAS

1. World Health Organization.Global leprosy situation, 2016. Week Epidemiol Rec. 2016; 35(91): 405-20.

2. Alves CRP, Ribeiro MMF, Melo EM,Araújo, MG. Ensino da hansenologia: desafios atuais.An Bras Dermatol. 2104;89(3):454-59.

3. Bambirra N. O atendimento multiprofissional da hanseníase no serviço de dermatologia do Hospital das Clínicas da UFMG. In: Anais do 2º Congresso Brasileiro de Extensão Universitária. Belo Horizonte: UFMG; 2004.

4. Silva MCD, Paz EPA. Educação em saúde no programa de controle da hanseníase: a vivência da equipe multiprofissional. Esc Anna Nery Rev Enferm. 2010;14(2):223-9.

5. Lana FCF. Organizaçäo tecnológica do trabalho em hanseníase com a introduçäo da poliquimioterapia. Rev Bras Enferm. 1993;46:199-210.

6. Peduzzi M, Carvalho BG, Mandú ENT, Souza CG, Silva JAM.Trabalho em equipe na perspectiva da gerência de serviços de saúde: instrumentos para a construção da prática interprofissional. Physis. 2011;21(2):629-46.

7. Costa MDH. O trabalho nos serviços de saúde e a inserção dos(as) assistentes sociais. In: Mota AE. Serviço social e saúde: formação e trabalho profissional.Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social. Organização Pan-Americana de Saúde; 2006.

8. Lana FCF, Davi RFL, Lanza FM,Amaral EP. Detecção da hanseníase e índice de desenvolvimento humano dos municípios de Minas Gerais, Brasil. Rev Eletrônica Enferm. ,2009;11(3):539-44.

9. Helene LMF, Pedrazzani ES, Martins CL,Vieira CSCA, Pereira AJ. Organização de serviços de saúde na eliminação da hanseníase em municípios do estado de São Paulo. Rev Bras Enferm. 2008;61:744-52.

10. Ministério da Educação (BR). Conselho Nacional de Educação Câmara de Educação Superior. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina. Brasília: ME; 2014.

11. Ministério da Educação (BR). Parecer CNE/CES nº 1.133/2001, aprovado em 7 de agosto de 2001.Diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em enfermagem, medicina e nutrição. Brasília: ME; 2001.