ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Acidente Vascular Encefálico isquêmico em paciente jovem: relato de caso e revisão de literatura
Ischemic Encephalus Vascular Accident in young patients: case report and literature review
Juliano Terra Lauar1; Luiz Henrique de Lima Araújo1; Luciana Diniz Silva2; Roberto Eduardo Salum2
1. Médicos Residentes e Preceptores
2. Serviço de Clínica Médica Hospital Júlia Kubitschek (HJK) Rede FHEMIG - Belo Horizonte - MG
Juliano Terra Lauar
Endereço: Av. Artur Bernardes 1300/202 Bairro: São Bento
Belo Horizonte - MG CEP : 30350-310
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Hospital Júlia Kubitschek (HJK)
Resumo
O acidente vascular encefálico (AVE) é responsável por aproximadamente 9,6% dos óbitos a cada ano em todo o mundo e representa a terceira causa de morte nos países ocidentais. Na população jovem, é evento relativamente raro e menos de 5% dos casos acometem indivíduos com idade inferior a 45 anos. Nessa faixa etária, não se demonstra uma causa evidente em 50% dos casos. Paciente de 29 anos, sexo feminino, admitida no Hospital Júlia Kubitschek com sinais e sintomas que sugeriam AVE isquêmico. Foi solicitada endoscopia digestiva alta, identificando-se lesão sugestiva de adenocarcinoma gástrico, que foi confirmado pelo exame histopatológico.
CONCLUSÃO: a presença de neoplasias deve ser considerada entre as possibilidades etiológicas de AVE em jovens. O raciocínio clínico deve orientar propedêutica individualizada nesses casos.
Palavras-chave: Acidente Cérebro-vascular; Neoplasias Gástricas; Adenocarcinoma
INTRODUÇÃO
O acidente vascular encefálico (AVE) é uma síndrome clínica com duração superior a 24 horas, caracterizada pelo desenvolvimento súbito de sinais e sintomas associados à perda focal e algumas vezes global da função cerebral, sem outra causa aparente que a origem vascular.1 É responsável por aproximadamente 9,6% óbitos a cada ano em todo mundo e representa a terceira causa de morte nos países ocidentais.1 Saposnik et al.2, na América Latina, a partir de estudo com base populacional, observaram que a prevalência e a incidência anual de AVE variam entre 1,7 / 6,5 e 0,4 / 1,8 para 1.000 indivíduos, respectivamente.
Na população jovem, o AVE é um evento relativamente raro e menos de 5% dos casos acometem indivíduos com idade inferior a 45 anos. Na Itália e nos EUA, foi demonstrado que a incidência anual de AVE nessa faixa etária varia de 10 a 23 para 100.000 indivíduos.3,4
Nos indivíduos jovens com AVE observa-se menos freqüência dos fatores de risco do idoso e em até 50% dos casos não se demonstra causa evidente. A formação de trombos cardíacos, que ocorrem nas cardiopatias adquiridas e congênitas, é responsável por 14 a 33% dos casos de AVE em jovens.4,5 Entre as causas das cardiopatias adquiridas envolvidas na gênese do AVE estao a doença isquêmica, a doença reumática, a endocardite bacteriana, a fibrilação atrial e o mixoma atrial. Em relação às cardiopatias congênitas, as principais etiologias são doença valvular, forame oval patente e defeitos do septo atrial. Em 15% dos casos, outras situações contribuiriam para a gênese do AVE, como a gravidez e o puerpério, os distúrbios da coagulação e vasculites, o abuso de drogas, a doença de moyamoya e meningite.5,6
DESCRIÇÃO DO CASO
NPS, 29 anos, multípara, natural de Belo Horizonte, previamente hígida, foi admitida no Hospital Júlia Kubitschek com quadro de hemiplegia à esquerda de início havia 24 horas. Apresentava-se hipocorada, hidratada, eutrófica, sem edema e com taquipnéia discreta. O exame do aparelho cardiorrespiratório era normal. Ao exame do abdome, foi detectado nódulo endurecido palpável em regiao epigástrica. O fígado e o baço não eram palpáveis. Pela tomografia computadorizada (TC) de encéfalo foi verificada imagem sugestiva de AVE isquêmico extenso, em topografia da artéria cerebral média direita (Figura 1).
Ao ecocardiograma transtorácico não foram evidenciadas alterações de dimensões das câmaras ou trombos intracardíacos. Não foram demonstradas mudanças do ritmo ao eletrocardiograma. Os exames laboratoriais evidenciaram anemia microcítica hipocrômica; anticardiolipina IgG de 2,1 (VR: até 10 GPL) e IgM de 3,8 (VR: até 10 MPL); antitrombina 3 de 83,0% (VR: 80 a 120%) e fator 5 de Leiden negativo. A endoscopia digestiva alta, foi identificada lesão vegetante com úlcera central, no corpo gástrico, sugestiva de adenocarcinoma gástrico, que foi confirmado pelo exame histopatológico. Ao exame tomográfico do abdome, foi identificada uma massa, em topografia do corpo gástrico, ocasionando defeito de enchimento da grande curvatura. Foram observadas também linfonodomegalias e lesão hipodensa em lobo esquerdo hepático, sugestivas de disseminação tumoral para linfonodos e fígado, respectivamente.
Após o estadiamento da neoplasia, a paciente foi considerada fora de possibilidade terapêutica oncológica. Acometida por episódios repetidos de melena, evoluiu para o óbito em 35 dias.
DISCUSSÃO
No presente caso, após anamnese detalhada e exame físico minucioso, foi possível direcionar a propedêutica de forma individualizada. A hemiplegia apresentada pela paciente foi associada ao AVE isquêmico em território da artéria cerebral média direita. Com base nos achados clínicos descritos anteriormente, nodulação palpável em regiao do epigástrio e anemia microcítica, a propedêutica foi direcionada para o trato gastrintestinal. A EDA foi visibilizada lesão vegetante com características de malignidade, sugestiva de adenocarcinoma gástrico, que foi confirmado pelo exame histopatológico. O AVE, nessa paciente com 29 anos de idade, provavelmente estaria relacionado ao tumor gástrico.
Em pacientes com neoplasia, o AVE tem etiologia predominantemente embólica e relaciona-se ao estado de hipercoagulabilidade.7 Armand Trousseau, médico francês que viveu no século XIX, foi o primeiro a descrever a associação entre tromboembolismo e malignidade. Ao estudar três pacientes com manifestações tromboembólicas, aventou a hipótese de que tais fenômenos poderiam estar associados às alterações da coagulação que se desenvolveriam devido às neoplasias. Posteriormente, o diagnóstico de câncer gástrico foi comprovado em dois dos três casos avaliados por Trousseau. Em janeiro de 1867, o próprio pesquisador observou a presença de sinais sugestivos de trombose em seu membro superior esquerdo. Na ocasiao, Trousseau disse a um de seus alunos: "estou desenganado, pois a flebite que me acometeu não deixa dúvidas sobre a natureza da minha doença".8 Depois de alguns meses veio a falecer, acometido por tumor gástrico.
As alterações da coagulação relacionadas a neoplasias podem ser explicadas por alguns mecanismos: secreção de substâncias pró-coagulantes pelas células tumorais; estados pró-trombóticos devido a estase e lesão endotelial.8,9 A grande maioria dos pacientes com doenças malignas apresenta alterações laboratoriais que sugerem distúrbio da hemostasia, como concentrações séricas elevadas de fibrinogênio, fatores de coagulação, produtos de degradação da fibrina (dímero-D) e plaquetas.9 A endocardite trombótica não-bacteriana, ou endocardite marântica, é uma manifestação de hipercoagulabilidade, envolvida no mecanismo de embolia arterial em pacientes com neoplasia. Entretanto, menos de 50% dos pacientes manifestam sopros cardíacos; e lesões pequenas podem não ser identificadas ao ecocardiograma.10
As neoplasias mais associadas ao surgimento de AVE são pulmonar (30%), cerebral (9%) e prostática (9%). Os tumores de origem gástrica são responsáveis por 6% dos eventos isquêmicos cerebrais.7
CONCLUSÃO
A presença de doenças malignas deve ser considerada entre as possibilidades etiológicas de AVE na população jovem. O raciocínio clínico deve orientar propedêutica individualizada em pacientes jovens com AVE.
REFERENCIAS
1. Warlow CP, Dennis MS, van Gijn J. Stroke: a practical guide to management. Oxford: Blackwell Scientific; 1996.
2. Saposnik G, Dell Brutto OH. Stroke in South America: a systematic review of incidence, prevalence and stroke subtypes. Stroke. 2003;34(9):2103-7.
3. Marini C, Totaro R, De Santis F, Ciancarelli I, Baldassarre M, Carolei A. Stroke in young adults in the community-based L'Aquila registry: incidence and prognosis. Stroke. 2001;32:52-6.
4. Jacobs BS, Boden-Albala B, Lin I-F, Sacco RL. Stroke in the young in the Northern Manhattan Stroke Study. Stroke. 2002;33:2789-296.
5. Chan MTY, Nadareishvili ZG, Norris JW. Diagnostic strategies in young patients with ischemic stroke in Canada. Can J Neurol Sci. 2000;27:120-4.
6. Lee TH, Hsu WC, Chen CJ, Chen ST. Etiologic study of young ischemic stroke in Taiwan. Stroke. 2002;33:1950-5.
7. Cestari DM, Weine DM, Panageas KS, Segal AZ, DeAngelis LM. Stroke in patients with cancer: incidence and etiology. Neurology. 2004;62(11):2025-30.
8. Khorana AA. Malignancy,thrombosis and Trousseau: the case for an eponym. J Thromb Haemostasis. 2003;1:2463-5.
9. Rickles FR, Levine M, Edwards RL. Hemostatic alterations in cancer patients. Cancer Metastasis Rev. 1992;11(3-4):237-48.
10. Gonzáles Quintela A, Candela MJ, Vidal C. Non-bacterial endocarditis in cancer patients. Acta Cardiol. 1991;46(1):1-9.
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