ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
O entendimento da violência escolar na percepção de adolescentes
Understanding school violence from the adolescents' point of view
Luciana de Lourdes Queiroga Gontijo Netto Maia1; Alisson Araújo2; Adelino da Silva Santos Júnior3
1. Enfermeira. Professora da Universidade Federal de São João Del Rei. Divinópolis, MG - Brasil
2. Enfermeiro. Professor da Universidade Federal de São João Del Rei. Divinópolis, MG - Brasil
3. Estudante do Ensino Médio. Bolsista FAPEMIG - PIBIC Jr. Divinópolis, MG - Brasil
Luciana de Lourdes Queiroga Gontijo Netto Maia
Rua Sebastião Gonçalves Coelho, 400 - sala 301.4 Bloco D. Bairro: Chanadour
Divinópolis, MG - Brasil CEP: 35501-296
E-mail: luciananetto@ufsj.edu.br
Recebido em: 22/06/2011
Aprovado em: 29/06/2012
Instituição: Escola Estadual Armando Nogueira Soares Divinópolis, MG - Brasil
Resumo
INTRODUÇÃO: a compreensão de casos de violência pelos profissionais da saúde e da educação é fundamental, por exercerem papel crucial na sua detecção e pela ação em sua prevenção, no acompanhamento dos vitimados e na promoção da saúde.
OBJETIVO: conhecer a percepção do adolescente sobre a violência no contexto escolar.
MÉTODO: estudo descritivo, qualitativo, a partir dos depoimentos de adolescentes, alunos de escola pública do município de Divinópolis, Minas Gerais. As entrevistas foram transcritas e analisadas pelo conteúdo.
RESULTADOS: a violência foi percebida pelos adolescentes nas dimensões física e psicológica. A violência física como: direta pessoa-pessoa, pessoa-objeto-pessoa e pessoa-arma-pessoa, sendo predominante no contexto escolar a violência direta pessoa-pessoa. Os relatos evidenciaram que a violência escolar faz parte do cotidiano e pode começar com a violência psicológica e se concretizar na violência física.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: o adolescente está sujeito à violência física e psicológica no contexto escolar, envolvendo seus colegas seus professores e familiares. Nesse envolvimento, o adolescente pode ocupar tanto o lugar de vítima quanto de agressor. É importante integrar o ambiente escolar a uma rede de parcerias para o acompanhamento dos casos de violência ocorridos quanto para a realização de atividades educativas voltadas para a cultura da paz e prevenção da violência, com a participação do adolescente, e dos demais sujeitos envolvidos no processo: a família e a comunidade escolar.
Palavras-chave: Pesquisa Qualitativa; Violência; Adolescente; Estudantes.
INTRODUÇÃO
A compreensão da violência pelos profissionais da saúde e da educação é fundamental, por exercerem papel crucial na detecção dos casos e também pela ação importante na promoção da saúde, na prevenção do agravo e no acompanhamento dos vitimados.1 Ricas e Donoso1 concordam com Minayo2 que a visão do setor saúde sobre a questao da violência necessita valorizar tanto a reflexão filosófica e teórica quanto a operacional fundamentada na constatação de danos biológicos, emocionais e físicos, que em sua dinâmica causa repercussões na qualidade de vida das vítimas.
Portanto, há de se pensar na necessidade de integrar esses dois aspectos na produção de conhecimentos com base em dados epidemiológicos aliados aos dados qualitativos para que se possa compreender os contextos geradores e mantenedores da violência, permitindo abordagem ampliada do fenômeno.2
A atividade docente da unidade curricular Prática de Integração Ensino, Serviço e Comunidade (PIESC) dos cursos de Enfermagem e de Medicina do Campus Centro-Oeste da Universidade Federal de São Joao Del-Rei (UFSJ-CCO) em Divinópolis - MG., depara com situação especial, que merece atenção: a violência na escola.
Observou-se, durante o desenvolvimento dessa unidade curricular, ao serem realizadas avaliação antropométrica e teste de acuidade visual em alunos de uma escola, relacionamento conflituoso entre os estudantes, professores e funcionários. Apesar de não ser o objetivo da prática naquele momento, pôde-se observar a íntima relação desses comportamentos dos adolescentes com possíveis desfechos trágicos de violência dentro da escola.
No contexto da mortalidade, ao avaliar uma série histórica do banco de dados do Sistema Unico de Saúde (DataSUS), dos anos de 2000, 2005 e 2008, o estado de Minas Gerais apresentou, respectivamente, 50,8, 64,0 e 65,1% de mortes por causas externas na faixa etária dos 10 aos 19 anos, e o município de Divinópolis 60,0, 65,0 e 55,6%, evidenciando-se encontrar-se na faixa alta do impacto da violência no total de mortes entre adolescentes.3
Em se tratando da magnitude do problema, no ano de 2010, no estado de Minas Gerais, a hospitalização pelo grupo de causas externas ocupou o segundo lugar, representando 13,3% do total de internações, ao passo que em 2000 representava 9,6%. Ao observar essa proporção retirando o grupo de gravidez, parto e puerpério, nota-se que o grupo das causas externas representou 24,3% das internações. Já em Divinópolis - MG., nesse mesmo grupo populacional, as causas externas representaram 10,2% do total de internações em 2010 e 9,5% em 2000.3 Assim, percebe-se que, apesar do percentual da mortalidade em Divinópolis ter sido reduzida de 2000 para 2008, o mesmo não aconteceu com as internações, que tiveram aumento de 0,7%, com acréscimo de 24 internações de um período para outro.
Diante disso, acredita-se que as ações intersetoriais podem ser importantes aliadas no contexto das práticas no cotidiano da escola. Entre os diversos campos de atuação dos profissionais de saúde, a educação, mais precisamente a educação feita no interior das escolas, onde estudam os adolescentes envolvidos nas situações de violência, pode servir de palco interessante para a articulação com as equipes de saúde da família. Pensar a escola como espaço viável para assistir o adolescente é um ponto estratégico. Essa parceria saúde-educação permite melhor captação da clientela e otimização da assistência, com ênfase na individualidade, integralidade e humanização, além da possibilidade de trabalhar com recursos que permitem mais adesão dos adolescentes. Partindo do pressuposto de que a escola é espaço do adolescente, pensa-se que o desenvolvimento de instrumentos que contemplem as demandas específicas desse público são medidas eficazes para melhorar o status de saúde do adolescente.4
Nesse sentido, torna-se necessário conhecer a percepção dos estudantes sobre a violência para que se possa intervir de maneira favorável nesse cenário descrito anteriormente.
MÉTODO
Trata-se de estudo qualitativo, de caráter descritivo, realizado em escola pública do ensino fundamental e médio do município de Divinópolis, Minas Gerais. O município de Divinópolis situa-se na regiao centro-oeste do estado de Minas Gerais, com cerca de 220.000 habitantes.
O estudo contou com a participação de 10 adolescentes de ambos os sexos (50% masculino e 50 feminino) com idade entre 11 e 17 anos, alunos regularmente matriculados e frequentes do 4º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio, sendo 90% do turno da manha, todos solteiros e residentes no mesmo bairro da Escola, com média de tempo de estudo na escola de 7,2 anos (3-10 anos).
Foram elegíveis os adolescentes que aceitaram participar da pesquisa e assinaram o termo de consentimento juntamente com os pais ou responsáveis. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FUNEDI/UEMG sob Parecer nº. 56/2010, de 04/10/2010.
Os dados foram coletados por meio de entrevista individual aberta e gravada, realizada na respectiva escola, conduzida pelas seguintes questoes norteadoras: "Conta para mim o que é para você a violência na escola? Você presenciou alguma situação de violência nesta escola? Fale sobre essa experiência".
O critério para o término da coleta de dados foi quando os relatos se tornaram repetitivos, com queda da qualidade das informações (divergências e semelhanças) obtidas nos depoimentos, mostrando a saturação dos dados.
As entrevistas foram transcritas e depois analisadas pelo conteúdo segundo referencial de Bardin5, autora que utiliza técnicas organizadas e sistematizadas para traduzir discursos. O conjunto de técnicas objetiva mais entendimento do pesquisador na interpretação de material qualitativo, adquirindo melhor compreensão e classificação dos depoimentos, revelando, assim, os aspectos mais importantes com fidedignidade na tradução desses relatos.
Por meio do método eleito, os relatos dos adolescentes foram categorizados segundo seus entendimentos sobre a violência escolar, organizados por seus núcleos de sentido, apresentados e discutidos a seguir.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Mesmo se tratando de questao aparentemente simples, sabe-se que não é fácil definir o que se entende por violência. Os discursos que permitiram construir essa categoria mostram que, para os adolescentes, a violência praticada dentro da escola constitui-se basicamente em dois tipos: a violência física e a psicológica.
Violência psicológica consiste em ação ou omissão que pode causar dano à autoestima, à identidade ou ao desenvolvimento da pessoa.6 Diante dos discursos obtidos, verificou-se que, apesar dos adolescentes escolares desconhecerem que esse tipo de violência é caracterizado como psicológico, eles consideram os atos de humilhar, xingar palavroes, colocar apelidos, amedrontar, como atos de violência, envolvendo principalmente os colegas e os professores:
Violência tem de vários tipos, né? Verbalmente, falar o que "num" te agrada, uma coisa que você não gostaria de ouvir, falar alguma coisa que te ofende. Eu acho isso tudo uma violência, com certeza (E2).
Pra mim, violência é alguma coisa que você diz que pode afetar a pessoa, já é uma violência (E3).
Ah, depende... porque tem vezes que a pessoa não fez nada, aí, mesmo assim, é humilhada, agredida e também pode ser porque talvez a pessoa não acha que ela é a pessoa ideal, entao fica brincando, fica xingando, humilhando a pessoa (E9).
Eu penso que é um desrespeito às professoras e ao próprio aluno (E10).
A literatura mostra que existe associação de múltiplos fatores com a violência, que vao desde fatores individuais, passando pelos familiares até chegar aos sociais, históricos, culturais e ambientais ligados aos envolvidos neste processo. Entre os fatores individuais, as características físicas estao entre as principais fontes geradoras de violência psicológica, somadas a outras questoes como idade, gênero, características emocionais, de comportamento e personalidade1. Essa situação confirmou-se no presente estudo. Os adolescentes entrevistados, do mesmo modo, reafirmam a dificuldade de aceitação das diferenças físicas como sendo dos principais motivos para o desencadeamento de situação de violência psicológica no contexto escolar. Isso ficou evidenciado nos discursos:
Minha colega não é muito bonita. Aí os meninos ficam implicando com ela, chamando ela de apelido, filhote de passarinho, de periquito, essas coisas. [...] Tem um menino do ano passado, todo mundo chamava ele de cabeção, porque a cabeça dele era um pouquinho maior [...] (E1).
Os meninos estavam falando você é "oreiudo". Aí eu falei: você é pequenininho, você é dentuço, eu sou grande (E5).
Eles me chamam de apelido, muito. Ah, eles ficam me chamando muito: ô cabeção! [...] Aí tem um menino lá que eu chamo ele de "Chico Xavier" (E6).
Os discursos apresentam, ainda, algumas consequências do ato de violência psicológica, como o isolamento, a evasão e a repetência escolar, o revide com a própria violência psicológica e a retirada do aluno da sala de aula:
Mas é apelido assim que até a pessoa vai indo acostuma. A pessoa fica sentida. [...] Mas ele também não fala nada não. Ficava mais quieto, no canto dele. Deve ter medo, né!? Medo de se expressar. Deve que os meninos "xinga" ele, bate nele. Ele fica incomodado porque ninguém gosta de ser chamado de apelido, né? Ele tomou bomba e mudou de sala e agora eu não vejo mais ele (El).
Eu não gosto disso. Eu coloco apelido quando eles me irritam (E6).
Ela me colocou pra fora da sala, mas já estava acabando o horário e quando eu cheguei aqui embaixo ali na escada, bateu o sinal, ela mandou eu subir e falou para eu prestar atenção na próxima aula (E6).
As situações de intolerância ao outro em relação às suas características físicas, comportamentais e cognitivas (dificuldade de aprendizagem, timidez, agressividade, isolamento) e perfil de estrutura familiar (aceitação de determinados conceitos de família, ausência de figuras parentais) configuram-se como subsídio para geração de situações de violência no interior da escola. O perfil próprio de determinado aluno pode servir de motivo para se tornar vítima de violência e essa situação acaba por reforçar o isolamento, a evasão, o revide e a repetência escolar.
Outro aspecto que marcou o relato dos adolescentes foi o conflito com figuras de autoridade na escola, o que gera também a violência psicológica.
Essas relações conflituosas, vivenciadas no interior da escola, encontram respaldo no contexto histórico em que a escola deixa de ocupar um lugar de apoio à família e passa a incorporar mais rapidamente os saberes científicos. Esses saberes acabam por se contrapor aos saberes domésticos, gerando uma situação de poder com base na ciência. A partir desse momento a escola passa a ser vista e reconhecida pela sociedade como instância de poder, uma vez que são valorizados, na contemporaneidade, os valores científicos em detrimento dos familiares. Outro fator histórico importante é a disciplina rígida herdada da influência do poder religioso nas escolas que usava dos castigos para manter a ordem entre os estudantes.1 Apesar das questoes pedagógicas inovadoras terem sido direcionadas às escolas, essas raízes históricas ainda encontram lugar nas relações da comunidade escolar. Apesar dos avanços, a ocorrência desses conflitos, principalmente nas relações dos adolescentes, pais e professores, ainda é marcante. Os adolescentes relatam:
As vezes os alunos acham os professores chatos, mas na verdade eles querem ensinar o melhor pra gente! Aí alguns alunos xingam os professores com palavroes, essas coisas [...] (El).
Agora com certeza deve ter aqueles alunos que sempre enfrenta professor, sempre xinga, sempre (E3).
Era uma professora que a gente tinha, uma professora que era muito faltosa, aí sempre tinha a substituta. Tinha um aluno na sala que no dia falou: eu vou fazer essa professora chorar hoje! (E4).
Lá na minha sala também tem isso. [...] ele respondeu tanto a minha professora que ela até começou a chorar (E5).
As maes vai lá. Brigar, brigar assim não brigam não... só de boca mesmo. [...] a menina lá da minha sala, tem um irmão menor [...] e o menino da minha sala não viu ele não, bateu (esbarrou) nele assim. Aí a mae dele começou a ir lá falar com a professora: se "ocê" não vai cuidar disso pode deixar que eu cuido [...]. Aí minha professora ficou chateada (E5).
Desrespeitar a professora... porque eu estava conversando muito e ela pediu para eu ficar calado aí depois de um tempinho eu comecei a conversar de novo (E5).
(Falar mal) por trás do professor, porque dificilmente fala na cara. [...] Mas eu lembro que tempos atrás a gente brincava muito, falava muito do professor, sempre tem essas coisas assim... (E9).
Os conflitos existentes nas relações da comunidade escolar, principalmente entre professor e aluno, são exemplos de violência psicológica e estao muito ligados ao papel que cada um espera do outro (o professor deve mandar e o aluno obedecer). O que ocorre, na verdade, é que esses conflitos são, por vezes, reflexos de um currículo oculto elaborado na base familiar de cada um dos envolvidos nesse processo. Acredita-se que essa relação deva ser fundamentada com base no diálogo e no respeito mútuo. Mais que mandar e o outro obedecer, é preciso adotar postura acolhedora e escuta qualificada.
Por outro lado, a violência física ocorre quando uma pessoa provoca dano intencional, por meio do uso da força física ou de algum tipo de arma que pode provocar ou não lesões externas, internas ou ambas.6
Para os adolescentes, a violência física é também uma das formas mais comuns em seu cotidiano. Os relatos a seguir demonstram o entendimento dos adolescentes a respeito desse tipo de violência, exemplificando o que vem a ser violência física:
Discussão e brigas, ameaças (E7).
Física!?... Ah, um simples tocar com maldade já é agressão física, aí... até a morte, até... (E9).
A partir dos discursos dos adolescentes, a violência física pôde ser descrita como: direta pessoa-pessoa, pessoa-objeto-pessoa e pessoa-arma-pessoa. Observa-se que entre as três classificações a violência pessoa-pessoa é a mais relatada entre os adolescentes no contexto escolar. Sobre a violência física praticada diretamente de pessoa contra pessoa, os entrevistados relataram:
É briga mesmo, batendo, chute, eu acho isso... (E2).
[...] começaram a bater no menino da minha sala, dentro da sala, "rancou" sangue no menino, quebrou um nariz [...] (E3).
[...] briga, rola no chão, "ranca" cabelo (E3).
[...] dá um tapinha assim e pronto (E7).
Outro tipo de violência física encontrado nos discursos foi a violência pessoa contra pessoa, mediada por um objeto:
Quando você fala essas brincadeiras de ficar jogando "trem" pra mim também é uma violência, você acaba agredindo a pessoa (E3).
Aquelas brincadeiras bobas de ficar jogando "negócio" uma na outra, jogando bola, jogando esses "trem", borracha, nossa tem demais (E3).
Jogaram cadeira um no outro, só que um estava junto com a gente na Educação Física, aí jogou na direção dele. Podendo acertar qualquer um que tivesse lá (E4).
Pegou e começou a mandar bala nela, aí a bala acertou a cabeça dela, acertou o rosto dela [...] (E4).
A violência física mediada por arma, apesar de pouco descrita, esteve presente nos relatos dos adolescentes:
[...] encontraram ele (morto), tinham colocado fogo nele (E2).
[...] partir para a agressão até usar arma [...], essas coisas assim (E4).
Alguns autores apresentam em seus trabalhos a relação dessa violência física com dados epidemiológicos de morbimortalidade nessa faixa de idade e seu impacto na demanda e nos custos dos serviços de saúde, reforçando a importância de medidas de prevenção desse agravo.
Avanci et al.7 apresentam em seus estudos dados estatísticos que demonstram a magnitude do impacto das violências no dia-a-dia das crianças e adolescentes, tanto no mundo como no Brasil. Dados alarmantes retratam a convivência de adolescentes com homicídios, assaltos/furtos, violência física e sexual, tanto dentro como fora de casa, na comunidade e podem ser facilmente constatados na mídia. No Brasil, as crianças e os jovens pertencentes a estratos menos privilegiados social e economicamente são os que reportaram mais vitimização. Esse grave cenário de violência repete-se no cenário escolar, com relatos de estupros, roubos, agressões físicas ou ferimentos com ou sem arma de fogo ou arma branca. Outras formas de vitimizações no ambiente escolar também podem ser reportadas como humilhações, ameaças, destruição de objetos pessoais, o uso de drogas, a venda de drogas e agressão sexual.7, 8
De certa forma, o cenário escolar tem relação com os dados apresentados anteriormente. Quando a situação de violência não ocorre especificamente na escola, ela pode ocorrer em casa ou na comunidade, mas as suas manifestações acabam por acontecer no interior da escola. Assim, a escola acaba por participar de alguma forma desse processo de violência, seja como local de ocorrência seja como instituição onde as repercussões são manifestadas por meio de comportamento agressivo, dificuldade de aprendizagem, lesão corporal, luto por perda de colegas, entre outros.
Devido às limitações dos dados disponíveis, não é possível calcular diretamente a parcela referente ao tratamento de vítimas da violência. Porém, Rodrigues et al.9, por meio de uma proposta metodológica, estimou o custo da violência para o sistema público de saúde. Esses autores utilizaram as informações do Sistema Unico de Saúde, dos orçamentos estaduais e municipais e estimativas sobre a demanda por atendimento ambulatorial da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Os resultados mostraram que no ano de 2004 o tratamento de vítimas de causas externas, de agressões e de acidentes de transporte teria custado ao setor público R$ 2,2 bilhoes, R$ 119 milhoes e R$ 453 milhoes, respectivamente. Esses valores são cerca de quatro vezes mais altos que aqueles verificados em trabalhos que computaram apenas os custos com internações. É importante salientar que esses gastos acontecem em decorrência de situações evitáveis e, caso esses agravos fossem prevenidos, esses recursos poderiam ser utilizados em outras áreas, como a promoção da saúde, tendo a escola como uma instituição parceira.
Um fato que chamou a atenção foi a transformação da violência psicológica em física no contexto escolar. Os entrevistados mencionaram, por diversas vezes, que os xingamentos e provocações verbais evoluíam em determinadas situações para brigas com socos, tapas, pontapés e puxoes de cabelo:
Foi na nossa Educação Física, a gente estava na quinta série quando dois rapazes mais velhos, que já tinham fama de violento, começaram a discutir e aí começou a mandar cadeira no outro. A gente estava na quadra e ele mandou uma cadeira no meio da quadra, sem preocupar com o que ia acontecer, se ia machucar quem estava de fora da situação (E4).
Eu acho que começa desde a agressão a insultos, é falar mal das pessoas, mesmo que seja pela frente, pelas costas, depois vem a agressão física mesmo, que às vezes acontece muito (E4).
Já presenciei muita situação de violência nessa escola. Desde insulto físico, insulto à família, partir para a agressão até usar arma, cadeirada, essas coisas assim (E4).
Os meninos estavam falando você é "oreiudo", você não joga bem futebol. Aí eu falei: você é pequenininho, você é dentuço, eu sou grande. Aí começou (o desentendimento), aí no final da aula é, ele: e agora quem é dentucinho!? "Ocê!" até hoje você não me surpreende. Aí começou a briga (E5).
Com a possibilidade de transformação da violência psicológica em violência física, ficou também evidente no trabalho a importância do papel dos educadores na intervenção rápida e precisa dos casos de violência psicológica dentro da escola. É necessário também que os mesmos reconheçam que a violência física que acontece nas proximidades da escola tem sua origem, muitas vezes, em situações de violência psicológica iniciadas no interior da escola.
É briga mesmo assim dentro de escola - igual eu estou falando pra você que eu nunca vi - já vi mesmo em porta de escola, sabe... briga mesmo, batendo, chute, eu acho isso... (E2).
Se a pessoa não gostar, aí no caso resolve lá fora, né? Igual eu "tô" te falando, aqui dentro da escola mesmo não acontece porque chama pai, chama mae, né? E pode dar problema pra quem brigar dentro da escola, por isso que é do portao pra fora (E2).
Aqui na escola eu nunca vi não. Eu já vi na rua, na porta (E6).
Aqui dentro não, mas fora sim (El0).
Assim, é de fundamental importância a compreensão de que a escola, como instituição social, é um espaço onde as diferenças se encontram e, portanto, local permanente de potenciais conflitos. É na escola que as diferentes formas de educação e valores familiares, culturais, étnicos, religiosos, entre outros, se encontram. Neste sentido, uma importante parte da função social da escola seria ensinar a conviver em grupo, necessidade que se torna ainda mais preeminente quando se considera a necessidade de se relacionar e conviver com grupos cada vez mais amplos e diversificados.10
Os relatos evidenciam que a violência escolar faz parte do cotidiano e pode começar com a violência psicológica (verbal - apelidos, ofensas, insultos, palavroes) e se concretizar na violência física (agressões, socos, tapas). Essa concretização do ato violento pode ter sua origem em situações de abuso psicológico na própria escola, na relação com os próprios colegas, professores e funcionários, na família ou nos grupos sociais de adolescentes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O interesse contemporâneo em abordar especificamente a perspectiva mais abrangente se deve à constatação de que a criança ou o adolescente que sofre de violência tem alto risco de vivenciar subsequentes ou simultâneos episódios violentos, no mesmo ou em outro ambiente (revitimização ou ciclo da violência), dificultando ainda mais o rompimento dessa cadeia de vivências violentas.7,11-13
Ao término desta investigação, foi possível constatar a relevância do tema violência voltado para o cenário escolar, especificamente na perspectiva do adolescente. Observa-se que a violência na atualidade ultrapassou os limites de um ambiente no qual outrora era considerado seguro. Em relação ao adolescente, o estudo mostra que os mesmos podem ser vistos como autores e vítimas dos atos de violência, contrariando a premissa de que no imaginário social o adolescente é sempre visto como o agente agressor. Mostra-se, assim, a necessidade de se preocupar com o indivíduo que se encontra em fase de transição, que requer da sociedade mais proteção: a adolescência.
Outro fato relevante encontrado no estudo foi de que a escola tem potencial de identificação precoce dos casos de violência que acontecem no seu interior. No entanto, ela necessita estabelecer parcerias com os demais seguimentos da sociedade, como conselho tutelar, família, saúde, assistência social e psicológica, entre muitos, uma vez que não consegue resolver sozinha todos os problemas decorrentes da situação de violência. Dessa forma, essa rede de parcerias pode contribuir, de fato, para restaurar a segurança no ambiente escolar e assegurar a permanência do adolescente na escola, preservando seu futuro.
Assim, é importante usar o ambiente escolar como espaço para a realização de atividades educativas voltadas para a cultura da paz e prevenção da violência, com a participação não só do adolescente, mas também dos demais sujeitos envolvidos no processo: a família e a comunidade escolar.
Ao verificar a existência de alguma violência psicológica, seria interessante que a rede de parcerias interviesse precocemente para prevenir a violência física, lembrando que, muitas vezes, uma violência verbal dentro da escola origina uma violência física fora da escola.
Perante o exposto, a rede de parcerias pode criar estratégias para melhorar relacionamentos e enfrentamento da violência, favorecendo uma maior conscientização das pessoas a respeito da melhoria da qualidade de vida em sociedade, produzindo um futuro menos violento no interior das escolas. Assim, pode-se mudar o entendimento de que o adolescente não é o futuro da nação, mas sim um presente comprometido que necessita de intervenções.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi aprovado com bolsa, pelo Edital do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica Júnior - PIBIC-JUNIOR/FAPEMIG/CNPQ, 2009-2010.
Agradecemos, ainda, a toda a comunidade da Escola Estadual Armando Nogueira Soares de Divinópolis/MG., pelo incondicional apoio tanto nesta pesquisa quanto nas atividades de ensino/extensão do cotidiano do nosso trabalho e aos adolescentes, que nos permitiram adentrar em seus mundos e explorar sua percepção da violência no contexto escolar.
REFERENCIAS
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