ISSN (on-line): 2238-3182
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CAPES/Qualis: B2
Neurotuberculose na infância
Neurotuberculosis in childhood
Christóvao de Castro Xavier1; Luís Fernando Andrade Carvalho2; Marcelo Militao Abrantes3; Renato Pacheco de Melo4
1. Preceptor adjunto da Residência de Neurologia Infantil do Centro Geral de Pediatria- FHEMIG; Neurologista Infantil do Hospital Gov. Israel Pinheiro (IPSEMG) e do Hospital Felício Rocho
2. Pediatra e Residente de Terapia Intensiva Pediátrica-FHEMIG
3. Pediatra e Residente de Nefrologia-HC/UFMG
4. Médico Residente de Pediatria do Centro Geral de Pediatria-FHEMIG
Rua Timbiras, 1958 aptº 12 Centro
Belo Horizonte, MG CEP: 30140-061
E-mail: lorenazebral@bol.com.br
Centro Geral de Pediatria - FHEMIG
Resumo
É relatado o caso clínico de uma criança, previamente hígida, que evoluiu com manifestações neurológicas inespecíficas. O diagnóstico obtido, após investigação intervencionista, foi de neurotuberculose. Instituído tratamento preconizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), com boa resposta clínica. O objetivo é alertar os pediatras para inclusão da neurotuberculose no diagnóstico diferencial de doenças infecciosas e lesões expansivas do sistema nervoso central.
Palavras-chave: Neurotuberculose; Tuberculomas intracranianos; Diagnóstico/tratamento
A tuberculose, que nos últimos anos vem apresentando um aumento significativo de sua incidência, continua a ser uma doença infecciosa grave, sobretudo em regiões em desenvolvimento, a despeito da implantação de programas de controle e prevenção. O envolvimento do sistema nervoso central (neurotuberculose) pode se apresentar como meningoencefalite, tuberculoma intracraniano e aracnoidite basal, sendo esta última mais freqüente em adultos. A complicação mais grave da tuberculose, e também a forma mais freqüente de acometimento do sistema nervoso central na infância, é a meningoencefalite tuberculosa.1 Visto que os sinais e sintomas clássicos da neurotuberculose são pouco freqüentes, seu diagnóstico clínico, muitas vezes, é feito de forma tardia, piorando muito a evolução da doença. Os mais importantes fatores determinantes de prognóstico compreendem o estágio da doença, à época do diagnóstico, e a instituição de terapêutica adequada.2
O envolvimento do sistema nervoso central (SNC) na tuberculose é mais freqüente em crianças com idade entre seis meses e seis anos, contudo, pode ocorrer em qualquer idade.3
O tuberculoma é uma lesão sólida, granulomatosa, relativamente avascular, geralmente envolvida por uma cápsula, que pode ser única ou múltipla e de tamanho variado que constitui um foco caseoso ou proliferativo isolado de tuberculose. É mais comum em adultos, perfaz um percentual de 3% dos casos de neurotuberculose, e pode ser visto em crianças seguindo-se a um quadro de meningoencefalite. Nos países em desenvolvimento, os tuberculomas representam 15% a 20% de todos os tumores cerebrais.4,5 Ocasionalmente, após resposta inicial satisfatória à terapêutica tuberculostática, esses surgem, geralmente nos três primeiros meses, devido a um mecanismo ainda não esclarecido. Acredita-se que seja secundário a acúmulo de macrófagos e linfócitos em focos microscópicos pré-existentes, quando o tratamento é iniciado.6
Na faixa etária pediátrica, a invasão do SNC ocorre após contágio pela via respiratória e disseminação hematogênica, podendo coincidir com a presença do complexo primário pulmonar. Estudos de neuroimagem já mostraram a presença de granulomas no cérebro de pacientes neurologicamente assintomáticos.7
A sintomatologia da meningoencefalite é composta por período prodrômico de cerca de duas semanas que cursa com febre, apatia, distúrbios do sono, dores abdominais e mialgia. A seguir, a criança evolui com manifestações neurológicas mais específicas, iniciando, então, com meningismo, náuseas, vômitos, alterações sensoriais e de comportamento. Aproximadamente 30% delas apresentam sinais neurológicos focais. Comprometimento de nervos cranianos ocorre em aproximadamente 25% dos casos, e hemiplegia, hemiparesia e crises convulsivas podem ocorrer em 10% a 15%.8 As manifestações clínicas decorrentes dos tuberculomas dependem da localização destes; em crianças predominam as lesões infratentoriais. Crises convulsivas e alterações do campo visual ocorrem nos tuberculomas hemisféricos, ataxia e hipertensão intra-craniana, nos de localização cerebelar, e síndrome de nervos cranianos e comprometimento de tratos longos, nos tuberculomas localizados no tronco cerebral.9
É importante lembrar que houve consentimento dos pais da criança para publicação deste relato de caso.
CASO CLÍNICO
Identificação: V.L.L; 12a e 9m; feodérmica; sexo feminino; naturalidade: Lajinha; residência: Lajinha, MG. História clínica: Criança previamente hígida, até agosto de 2001, quando apresentou episódio súbito, relatado pela mãe, de movimentação involuntária da cabeça, sem perda da consciência, acompanhado de contração de musculatura periorbicular esquerda, com resolução espontânea. Após três dias apresentou novo episódio semelhante ao anterior, seguido por parestesia de mão esquerda, quando, então, procurou assistência médica. Permaneceu em observação hospitalar na cidade de origem por um dia, sendo, então, avaliada por neurologista em cidade vizinha. Na história pregressa não havia informações relevantes, e a história familiar era negativa para tuberculose. A mãe relatava imunizações atualizadas, contudo não apresentou cartão vacinal e a criança tinha cicatriz de BCG de cerca de 5mm de diâmetro transversal. Realizado EEG em 05/09/01 que evidenciou traçado com alteração moderada generalizada por disfunção córtico-subcortical difusa, sendo iniciado ácido valpróico (50mg/kg/dia). Encaminhada para Belo Horizonte, onde foi realizada tomografia computadorizada (TC) de crânio em 04/10/01 que exibia lesão expansiva fronto-têmporoparietal direita (figura l), e ressonância magnética de crânio (08/10/01): lesão expansiva intra-axial frontoparietal direita (figuras 2 e 3). Em 11/10/01 foi submetida a craniotomia fronto-parietal direita com exérese de somente pequena parte da lesão, visto que apresentava consistência amolecida. A paciente recebeu alta hospitalar após cinco dias, em uso de prednisona (2mg/kg/dia) e fenobarbital (3mg/kg/dia). Uma semana após a alta, evoluiu com parestesia significativa em membro inferior esquerdo, associada a febre elevada (39ºC), afasia e paralisia facial central à esquerda, quando, então, foi orientada a procurar atendimento no Centro Geral de Pediatria-FHEMIG, Belo Horizonte. Ao exame de admissão no CGP, apresentava-se hipocorada (+/4), discreta rigidez de nuca; AR: murmúrio vesicular fisiológico sem ruídos adventícios FR:16 irpm; FC:80 bpm; SN: pupilas2+/2+, disartria leve, hemiparesia, hiperreflexia e reflexo cutâneo plantar indiferente à esquerda, marcha hemiparética, fundo de olho sem alterações. A radiografia de tórax não evidenciava alterações compatíveis com tuberculose pulmonar. Após informação de ter sido realizada craniotomia, foi providenciado contato com hospital onde fora feito o procedimento e obtido o resultado anatomopatológico; macroscopia: "vários fragmentos irregulares e pardo-amarelados, medindo em conjunto 6,5 x 6,0 x 4,0 cm. Aos cortes são sólidos, brancacentos, de consistência macia," e à microscopia: " intensa reação inflamatória granulomatosa (granulomas centrados por células gigantes do tipo Langhans e envolvidos por histiócitos epitelióides e coroa externa linfocitária) em torno de extensas zonas de necrose caseosa. A pesquisa de BAAR foi positiva, confirmando, assim, o diagnóstico de meningite tuberculosa associada a neurotuberculoma. A paciente, após seis meses de evolução, com terapêutica em curso, ainda apresentava discreta hemiparesia à esquerda. Atualmente, já retomou suas atividades escolares com alguns sinais de déficit de aprendizagem, sem demais intercorrências.
DISCUSSÃO
O quadro clínico de envolvimento do sistema nervoso pela tuberculose é bastante pleomórfico. Dessa forma, os exames complementares são de crucial importância para o diagnóstico. O exame do líquido cefalorraquidiano (LCR), não realizado nesse caso, mostra caracteristicamente pleocitose do tipo mista, mas com predomínio linfocitário, aumento discreto dos níveis de proteína e baixos teores de glicose. A dificuldade em se observar o Micobacterium tuberculosis pelos métodos diretos reside no fato de o LCR conter poucos bacilos, de 10 a 103/mm3. A utilidade e eficácia da detecção de anticorpos antimicobactéria pelo antígeno A-60 no soro ou no LCR consiste em potencial auxílio diagnóstico. Contudo, atualmente, a técnica de PCR é o melhor método para detecção precoce de meningoencefalite tuberculosa. A pesquisa de infecção prévia ou tuberculose concomitante pode ser útil, e estudos recentes têm documentado positividade do teste tuberculínico em 50% a 85% de pacientes de áreas endêmicas e não endêmicas.10 Entre 33% e 80% dos pacientes com tuberculoma apresentam evidências de tuberculose à radiografia de tórax, entretanto a história de diagnóstico prévio de tuberculose é obtida em menos de 50% dos casos.11
A avaliação por imagem evidencia como anormalidade mais comum, nos casos de meningite, o realce das meninges na região da cisterna basal ou na convexidade.12
Os tuberculomas podem ser visualizados, múltiplos ou isolados e, preferencialmente, na junção córtico-subcortical. Na TC de crânio, estes aparecem como lesões hiperdensas, que captam contraste em sua periferia (Figura 1), raramente se calcificam ou são acompanhadas de edema.13
O diagnóstico diferencial deve ser feito com toxoplasmose, criptococose, sífilis, abscessos piogênicos, meningites linfomonocitárias e carcinomatosas, neste caso, o exame do liquor mostra células com características neoplásicas.
As complicações mais freqüentes da meningoencefalite/tuberculoma compreendem os infartos isquêmicos que podem ocorrer em até 40% dos pacientes, hidrocefalia em 50% a 70%, além de hemiparesia/hemiplegia, alterações visuais, epilepsia e atraso do desenvolvimento neuropsico-motor.14
A intervenção cirúrgica teria boa indicação no sentido de se estabelecer o diagnóstico correto nos casos duvidosos e para os casos em que o tuberculoma apresenta localização crítica de modo a ocasionar hidrocefalia obstrutiva ou compressão do tronco cerebral.15
A terapêutica instituída corresponde à recomendada pela Organização Mundial de Saúde: nos primeiros dois meses , utiliza-se associação de rifampicina (20mg/kg/dia), isoniazida (20mg/kg/dia), pirazinamida (35mg/kg/dia), associada a prednisona (2mg/kg/dia) com objetivo de prevenção de fibrose meníngea e vasculite. Nos dez meses subseqüentes, mantém-se a associação de rifampicina e isoniazida. A regressão das lesões é bastante lenta e não significa, necessariamente, resistência medicamentosa ou falta de aderência ao tratamento.16
A vacinação com BCG em recém-nascidos e crianças de baixa idade reduz o risco de tuberculose em mais de 50% dos casos. A proteção tem sido observada contra a tuberculose, principalmente contra as formas graves (meningite e miliar). Os índices de proteção contra casos confirmados por testes laboratoriais, que reduzem a possibilidade de erros de classificação da doença, apresentam valores mais acurados da eficácia do BCG e são superiores a 83%.17
Apesar da disponibilidade da vacina BCG, da quimioprofilaxia com isoniazida, de drogas tuberculostáticas e de técnicas diagnósticas mais desenvolvidas, a mortalidade por neurotuberculose mantém-se em níveis elevados, variando de 20% a 50%.18 Conseqüentemente, é muito importante incluirmos no diagnóstico diferencial de doenças infecciosas e de lesões expansivas do sistema nervoso central a neurotuberculose, devido à sua incidência e à possibilidade de melhora do prognóstico com diagnóstico e tratamento precoces.
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