ISSN (on-line): 2238-3182
ISSN (Impressa): 0103-880X
CAPES/Qualis: B2
Porfiria intermitente aguda em um homem de 23 anos: relato de caso
Acute intermittent porphyria in a 23-year-old man: case report
Tarcísio Silva Borborema; Leticia Utsch Araujo; Manoel Bruno Pereira Lima; Lucas Muller Fonseca; Juliana Mattos Tavares
Hospital João XXIII, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil
Endereço para correspondênciaTarcísio Silva Borborema
E-mail: tborborema@hotmail.com
Recebido em: 11 Agosto 2022
Aprovado em: 17 Julho 2023
Data de Publicação: 5 Outubro 2023.
Editor Associado Responsável:
Dr. Mário Benedito Costa Magalhães
Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Sapucaí
Pouso Alegre/MG, Brasil.
Comitê de Ética: Número do Parecer: 5.575.999 (Plataforma Brasil), CAAE: 61253422.2.0000.5119
Conflito de Interesse: Os autores declaram não ter conflitos de interesse.
Instituição onde o trabalho foi desenvolvido: Hospital João XXIII. Av. Prof. Alfredo Balena, 400 - Centro, Belo Horizonte/MG, Brasil, CEP: 30130-100.
Resumo
INTRODUÇÃO: Porfirias são desordens metabólicas causadas por alterações enzimáticas na biossíntese do grupo heme de heme-proteínas. O espectro clínico das porfirias associa-se à localização do dano na cadeia de formação do heme, podendo variar de manifestações neuroviscerais a alterações cutâneas relacionadas à fotosensibilidade. O diagnóstico desta patologia pode ser laborioso considerando-se a sua raridade e a inespecificidade dos sintomas.
OBJETIVOS: O presente estudo relata as etapas diagnósticas e a suspeição clínica diante de um caso de porfiria intermitente aguda.
RELATO DE CASO: Um paciente do sexo masculino de 23 anos se apresentou inicialmente com uma dor abdominal inespecífica no Pronto Atendimento do Hospital João XXIII. A investigação diagnóstica tornou-se mais direcionada diante da história familiar positiva para porfiria e até a percepção dessa informação houve dificuldade na abordagem do caso. A precisão diagnóstica torna-se fundamental considerando-se o risco de uso de medicações comumente usadas no pronto-socorro e que são agravantes para a porfiria. O caso foi manejado com suporte de sintomas e aporte calórico, até a aquisição da medicação definitiva (hematina) por meio de judicialização.
CONCLUSÃO: As porfirias hepáticas agudas são um grupo de doenças extremamente raras e com manifestações graves e inespecíficas. Entretanto, pacientes com dores abdominais sem causa aparente, principalmente associada a sintomas neuropsiquiátricos e história familiar positiva, devem ser submetidos à pesquisa de porfirinas urinárias, porque o reconhecimento da doença é essencial e a terapia com hematina deve ser prontamente instituída.
Palavras-chave: Porfiria intermitente aguda; Dor abdominal aguda; Hematina; Ácido Δ-aminolevulínico; Porfobilinogênio.
INTRODUÇÃO
Porfiria aguda intermitente (PAI) é um membro de uma rara família de doenças hematológicas resultante de uma deficiência parcial da enzima porfobilinogênio desaminase (PBGD), a qual está envolvida na biossíntese do grupo heme1-3. A função inadequada do PBGD leva ao acúmulo de intermediários da síntese do heme como o ácido Δ-aminolevulínico (ALA) e porfobilinogênio (PBG)4. Esses dois metabólitos, por sua vez, induzem alterações bioquímicas degenerativas nos sistemas nervoso central e periférico5. Por isso a PAI se manifesta como uma doença neurovisceral com espectro clínico multissistêmico e, como tal, o padrão sintomatológico é inespecífico e amplamente variável2,5.
Geneticamente, a PAI se caracteriza por uma herança autossômico dominante com baixa penetrância em que os sintomas são afetados por uma variedade de fatores exacerbantes3. Apesar de sua genética molecular bem caracterizada, o diagnóstico de PAI é desafiador por ser uma doença rara, com sintomas inespecíficos, apresentando assim múltiplas possibilidades de diagnósticos diferenciais6. Além disso, as pistas da história familiar podem não ser evidentes pela ausência de sintomas na maioria dos portadores da mutação3,5,6.
Mesmo que a PAI seja considerada, muitos médicos não estão familiarizados com a propedêutica adequada podendo atrasar o diagnóstico e manejo terapêutico correto da doença7,8. Assim, o objetivo deste relato é exemplificar e esclarecer alguns pontos importantes para o diagnóstico da PAI de forma a instituir um tratamento mais precoce para seus portadores. Além disso, é importante que a equipe multidisciplinar e multiprofissional de saúde esteja atenta aos dados expostos na literatura em relação a possibilidade da PAI entre pacientes com sintomas neurovesical.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo masculino, 23 anos, branco, deu entrada no setor de emergência do Hospital João XXIII (Belo Horizonte/MG) no dia 07 de Janeiro de 2022, queixando-se de dor abdominal, principalmente em mesogástrio e hipogástrio, de evolução há cerca de 20 dias da admissão. Referia episódio de vômito no começo do quadro, sem recorrência. Informava urina escura/avermelhada e constipação associadas. Negava febre ou queixas álgicas em outros sítios. Apresentava humor deprimido com ideação suicida e parestesia em membros inferiores. História pregressa de tabagismo, etilismo, uso abusivo de cocaína e hipertensão, sem saber precisar a época do diagnóstico ou uso de anti-hipertensivos. Relatou internação por 1 semana no ano anterior por quadro de dor abdominal semelhante.
Inicialmente, questionou-se quadro de abdômen agudo inflamatório, com utilização de ceftriaxona e metronidazol empíricos por três dias (08 à 11 de janeiro de 2022). Propedêutica de imagem da admissão descartou abdômen agudo e isquemia mesentérica, com achados de ultrassonografia abdominal e endoscopia digestiva alta dentro da normalidade e angiotomografia computadorizada de abdômen e pelve apenas com achados pulmonares inespecíficos (secreção mucoide em brônquios e nódulos centrolobulares). Em relação às alterações laboratoriais, inicialmente foi questionada a hipótese de síndrome nefrítica, devido a achados de hematúria, hipertensão arterial e elevação de escórias renais. Todavia, tais achados se normalizaram em exames posteriores e a dosagem de complemento sérico estava dentro da normalidade. Também foi solicitada propedêutica para hepatite B e hepatite C, com HbsAg e anti-HCV negativos. A sorologia para HIV também se mostrou negativa. Auto-anticorpos como fator antinúcleo e anticorpo antiestreptolisina O também foram negativos.
Em anameses posteriores, constatou-se história familiar positiva para porfiria (provável diagnóstico de sua irmã, falecida aos 17 anos em virtude de complicações dessa doença). Nesse cenário, somando-se a história familiar aos achados clínicos de dor abdominal, vômito, constipação, hipertensão, insuficiência renal, urina amarronzada, parestesia e alterações psiquiátricas, questionou-se a hipótese diagnóstica de porfiria. Em parceria com laboratórios externos, foi feita dosagem qualitativa de PBG e ALA na urina de 24 horas. O resultado foi positivo, estabelecendo-se o diagnóstico definitivo de porfiria aguda (Tabela 1).
Diante da hipótese diagnóstica provável de porfiria (enquanto ainda não havia resultado oficial de ALA e PBG) foram feitos manejo de sintomas com ajuste de medicações de acordo com listas de medicamentos não danosos buscados no site da Associação Brasileira de Porfiria, UpToDate e Lista de Medicações Potencialmente seguras do serviço UK Porphyria Medicines Information Service (UKPMIS) e Cardiff Porphyria Service. A lista de medicamentos permitidos foi anexada ao prontuário do paciente e a equipe foi orientada, assim como o próprio paciente, acerca do risco de medicamentos indevidos.
O paciente apresentou melhora dos sintomas com tratamento inicialmente paliativo, tendo em vista dificuldade na aquisição da hematina, atentando-se às medicações permissivas. O manejo concentrou-se em analgesia via oral e intravenosa à base de morfina, dieta controlada em acompanhamento com nutricionista (ingestão de 300g/dia de carboidratos), fisioterapia motora e apoio psiquiátrico (com uso de nortriptilina associada a psicoterapia). Recebeu alta para seguimento ambulatorial com clínica médica e ambulatório da dor. O resultado dos exames de ALA e PBG foram liberados em fevereiro de 2022. Diante da confirmação diagnóstica, foi feito relatório para que o paciente pudesse conseguir a aquisição da medicação hematina por meio de judicialização.
DISCUSSÃO
Porfirias são doenças hereditárias caracterizadas pela deficiência de enzimas envolvidas na síntese do heme, o qual constitui o núcleo de moléculas chamada de heme-proteínas (i.e., hemoglobina e mioglobina)1. A deficiência de qualquer uma das oito enzimas envolvidas nessa cadeia anabólica acarreta o acúmulo dos seus precursores. Os intermediários que se acumulam passam a atingir níveis tóxicos, e dependendo da enzima deficiente – e consequentemente de qual metabólito se concentra – ocorre o desencadeamento de quadros clínicos distintos1,9. Na maioria dos casos, a mutação causadora da porfiria afeta o gene que codifica alguma enzima relevante da síntese do heme. No entanto, a mutação pode afetar também um gene regulador e não a própria enzima10,11. Nesse estudo, não verificamos a origem da mutação genética do paciente.
Das oito porfirias existentes, quatro produzem manifestações clínicas restritas à pele11, e as outras quatro podem precipitar ataques agudos com manifestações sistêmicas, sendo por isso classificadas como porfirias agudas12. Dentro desse último grupo se destaca a PAI, cuja etiologia está ligada a mutação de perda de função da enzima PBGD1-8. Essa é a terceira enzima da via biossintética do heme, codificada por duas espécies distintas de mRNA que são expressas de uma maneira tecido-específica a partir de um único gene4. Diferentes classes de mutações foram descritas influenciando o nível desta proteína, sugerindo que se trata de uma doença heterogênea3,12.
A PAI tem prevalência de 1-2 casos a cada 100 mil habitantes, porém devemos considerar fatores limitantes para essa estimativa como: diferenças geográficas, casos não diagnosticados, e a penetrância incompleta13. Aproximadamente 80% dos portadores da desordem permanecem assintomáticos. Entre os sintomáticos, a doença raramente se manifesta antes da puberdade, sendo comum em mulheres com mais de trinta anos expostas a situações ou fatores que predisponham à queda da atividade enzimática3,13. Esse perfil epidemiológico pode ajudar a justificar o diagnóstico do paciente desse relato de caso somente durante a fase adulta (23 anos).
As crises porfiríticas constituem uma importante emergência médica, ocorrendo quando os fatores desencadeantes não são retirados ou controlados1,9,11. Geralmente elas apresentam-se com dor abdominal contínua de grande intensidade, acompanhadas por manifestações neurológicas como parestesias, paralisias, coma e, se não tratadas precocemente, podem ocasionar a morte ou deixar sequelas neurológicas irreversíveis5,6,12. No caso da PAI, existem quatro grupos de fatores precipitantes que podem desencadear uma crise aguda sintomática. Estes incluem certas drogas e medicações, esteroides, jejum e infecções1,6,13. O relato do uso de anfetaminas (heroína) pelo paciente desse estudo pode estar associado à crise porfirítica apresentada por ele, durante a admissão no nosso centro de saúde.
Apesar do quadro sintomatológico ser bastante amplo e inespecífico, a PAI apresenta alguns sinais relevantes. Dor abdominal é o sintoma mais frequente. Esta é difusa e não localizada e, muitas vezes, é acompanhada de outros sintomas como náuseas, vômitos, distensão, constipação e, às vezes, diarreia14. Nesse caso, verificamos muitos desses sinais no momento da admissão do paciente. Dentre outros sintomas, incluem-se insônia (muitas vezes um sintoma precoce), palpitações, convulsões (às vezes devido à hiponatremia), inquietação, alucinações e outros sintomas psiquiátricos agudos como o reportado nesse relato de caso (i.e., depressão e ideação suicida)13. A hiponatremia pode ser decorrente do envolvimento dos centros hipotalâmicos e secreção inadequada de hormônio antidiurético13 ou ainda como resultado de uma perda excessiva de sódio pelas vias gastrointestinal e/ou renal14. A neuropatia na PAI é predominantemente motora e é reconhecida por paresia distal, com queda característica do punho e queda do pé. A paresia é muitas vezes simétrica, mas pode ser assimétrica ou até marcantemente focal. Leves manifestações sensitivas frequentemente acompanham a neuropatia motora, com áreas de parestesia, disestesia e perda de sensibilidade5,15.
Entre as principais complicações agudas da PAI se destaca a morte súbita de origem presumivelmente arritmogênica13. Um ataque grave pode também progredir para neuropatia periférica que em certos casos se assemelha a síndrome de Guillain-Barré5,15. As complicações a longo prazo incluem hipertensão arterial crônica, insuficiência renal e insuficiência hepática2. Alguns pacientes experimentam dor neuropática crônica, que pode ser responsável por um risco aumentado de depressão e suicídio6, como foi observado no nosso paciente.
O tratamento padrão mais eficaz, há várias décadas, é a administração de hemina (hematina) humana7-9. A hemina, sendo o produto final da cadeia metabólica do heme, inibe as reações de síntese dessa molécula por mecanismo de feedback negativo, impedindo o acúmulo dos metabólitos intermediários tóxicos (ALA e PBG). Quando administrada precocemente nas crises agudas, a hemina impede a progressão das lesões neurológicas possibilitando a reversão do quadro e muitas vezes salvando a vida do paciente16. O tratamento com hemina não deve ser retardado em busca de confirmação diagnóstica. Todavia, as amostras para a realização de testes laboratoriais devem ser coletadas antes do início da terapia considerando que os níveis urinários de PBG e porfirinas na urina irão reduzir1. Devido aos benefícios terapêuticos proporcionados pela hemina o paciente do presente relato foi orientado para o tratamento com esse fármaco sendo necessário o acesso por meio da judicialização.
No entanto, outras opções terapêuticas se encontram atualmente disponíveis contra a PAI podendo ser consideradas nos casos de indisponibilidade da hemina. O givosiran é um pequeno RNA interferente (siRNA) que inibe a aminolevulinato sintetase 1 (ALAS1) hepática, que por sua vez atua na síntese do heme, reduzindo o acúmulo dos metabólitos tóxicos (ALA e PBG)17. Outra opção terapêutica é a infusão venosa de carboidrato. Essa estratégia pode ser usada como medida provisória, mas não definitiva, pois seus efeitos terapêuticos são mais discretos comparados ao da hematina e do givosiran7-9. A glicose e outros carboidratos inibem a ALA sintetase, com consequente diminuição da formação de ALA e PBG18. A quantidade de carboidratos deve ser de 300 gramas por dia e a administração costuma ser bem tolerada. Todavia, a infusão de solução glicosada pode aumentar o risco de hiponatremia e hiperglicemia, com necessidade de monitorização de tais distúrbios por exames clínicos e acompanhamento regular com dosagens laboratorias8.
Após uma crise adequadamente tratada, os pacientes devem ser informados quais medicamentos não podem utilizar, bem como algumas recomendações de alterações específicas de mudança no estilo de vida. Caso essas medidas sejam realizadas é possível que em grande parte dos casos se consiga prevenir novas crises1,13. Por esse motivo nós orientamos a equipe multiprofissional, bem como o paciente, sobre as substâncias terapêuticas e nutricionais que ele deviria evitar.
CONCLUSÃO
As porfirias hepáticas agudas são um grupo de doenças extremamente raras e com manifestações graves e inespecíficas, carecendo, assim, de alto grau de suspeição para o diagnóstico. Pacientes com dores abdominais sem causa aparente, principalmente associada a sintomas neuropsiquiátricos e história familiar positiva, devem ser submetidos à pesquisa de porfirinas urinárias. O reconhecimento da doença é essencial e a terapia com hematina deve ser prontamente instituída nas crises. A educação do paciente sobre fatores desencadeantes das crises agudas é preponderante para evitar recorrência destas.
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